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3 EXPLORANDO OUTRAS NOTAÇÕES NOS MESMOS ESPAÇOS E TEMPOS:

3.1 A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO: POSIÇÃO DE UM SUJEITO/OBJETO NO ESPAÇO

3.1.1 As relações espaciais contidas nos objetos

Segundo o RCNEI (BRASIL, 1998, p.230) nos esclarece que “As relações espaciais contidas nos objetos podem ser percebidas pelas crianças por meio do contato e da manipulação deles”, ou seja, podem ser percebidas por meio da observação de características dos objetos e a identificação de atributos como quantidade, tamanho e forma.

Para iniciar a discussão da noção de espaço, trazemos o episódio 10 - o recheio e a cobertura da torta de bolacha. Este recorte fez parte da aula do dia 22/04/2009, quando um grupo de seis alunos e as professoras (Professora 1 e 2) preparavam uma receita de torta de bolacha. Cabe esclarecer que a mesma aula foi utilizada para exemplificar outras notações matemáticas no capítulo 2.

Episódio 10- O recheio e a cobertura da torta

(1) (...) (A Profª. 2 traz o recheio - creme de chocolate- e coloca na mesa). (2) Profª. 1: Vamos espalhar o creme em todo espaço (mostra com as mãos). (3) A: Ele espalha outra, ela espalha outra... (referindo-se a participação de todo o grupo)

(4) Profª. 1: O que tem que fazer com esse espaço? (Mostrando para a torta de bolacha)

(5) A: Cobrir.

(6) Profª. 1: R onde você tem que colocar? Você precisa pensar.

(7) Grupo: Aqui, aqui... (iam apontando com o dedo onde era para a colega colocar creme)

(8) (repetiram a atividade nas quatro camadas da torta de bolacha)

(9) Profª. 1: Vamos colocar o chocolate granulado num lugar só?(referindo-se a cobertura da torta)

(10) Grupo: Em toda torta. (11) Profª. 1: Onde está faltando?

(12) Grupo: Aqui, aqui... (apontam com o dedo).

Neste episódio, após cada camada de bolacha que era colocada na travessa, os alunos tinham que espalhar o recheio de forma que preenchesse todo o espaço e todas as bolachas ficassem cobertas, ou seja, a professora propôs que os alunos resolvessem um problema (linha

2). O aluno A (linha 5) compreendeu que preencher todo espaço significava cobrir as bolachas enquanto que R necessitou da mediação da professora e dos colegas para que soubesse onde colocar o creme.

Duhalde e Cuberes (1998, p.62) afirmam que “A partir de repetidos ensaios e enquanto resolvem problemas irão paulatinamente construindo o espaço”, ou seja, foi necessário repetir a atividade outras vezes (linha 8) para que a aluna R explorasse e identificasse o que era preencher todo o espaço. Duhalde e Cuberes (1998) complementam o que traz o referencial, afirmando que a criança começa a construir a noção espacial através dos sentidos, através da ação que deve ser contextualizada e compartilhada com o grupo através da linguagem. Notamos que a ideia de utilizar todo o espaço da bandeja volta no final do trabalho, com outro desafio, colocar a cobertura (chocolate granulado – linhas 9, 10,11 e 12) e necessitaram, novamente, da ação para realizar a tarefa.

Supomos que este caso refira-se às relações espaciais contidas nos objetos, ou seja, na travessa em que foi elaborada a receita da torta. As crianças puderam observar a forma da travessa (oval) e das bolachas (redondas) que ocupavam o espaço interno da mesma, a quantidade de creme necessária para cobrir todas as bolachas dentro do espaço limitado, bem como as características do chocolate granulado e o espaço que ocupa dentro da travessa.

Observamos que esse episódio é marcado pela participação de todo o grupo na maioria das respostas (linhas 7, 10, 12) e pela ação de todos os participantes na hora de colocar o recheio. Nesse caso, o trabalho foi coletivo e organizado pela professora que participou da atividade propondo a resolução do problema espacial e fazendo questionamentos, mas o grupo é que realizou as tarefas para responder aos questionamentos e significar as relações espaciais contidas nos objetos. Garnier et al (2003, p.216) argumenta que na atividade coletiva

(...) as interações sociais encontram sua expressão através de diferentes formas que, conforme o caso, podem ser complementares. O trabalho entre colegas pode ser organizado e dirigido pelo professor, com o adulto participando, ou pode realizar-se somente entre os alunos.

3.1.2 – Relações espaciais entre os objetos e entre sujeitos e objetos

Duhalde e Cuberes (1998, p. 68) esclarecem que “a construção dos conceitos que organizam a orientação no espaço implica o estudo das posições relativas de um sujeito observador, ou um objeto, em relação consigo mesmo ou com outros objetos em repouso ou

movimento”. Essas relações podem ser expressas pelas palavras: “em cima de”, “entre”, “sobre”, “dentro”, “fora”, ou seja, distinguir se os objetos estão próximos ou distantes, acima ou abaixo.

Para Duhalde e Cuberes (1998), na segunda perspectiva no que se refere às experiências com o espaço, estão as relações espaciais entre os objetos. Tomamos a liberdade de acrescentar neste item as relações espaciais entre sujeito – objeto ou sujeitos-objetos. Na ilustração 6 do capítulo dois, o aluno A registrou suas compreensões do espaço a este respeito. Ao desenhar a posição de cada objeto na mesa quando estavam elaborando a receita da torta de bolacha, acreditamos que estabeleceu relações espaciais entre os objetos dispostos na mesa (a travessa estava no “meio” da mesa e os pacotes de bolacha um em cada “metade”), e entre os objetos dispostos na mesa e os colegas quando indicou a posição do prato de leite (que estavam “no meio”) em relação aos três colegas, por exemplo.

Para continuar esta análise trazemos outro episódio, recortado de uma aula no ateliê, outro tempo e espaço de aprendizagem. Este episódio foi recortado da aula do dia 2/7/2009, quando seis alunos foram para o ateliê para confeccionar O jogo dos dentes e surgiu uma problematização com relação ao espaço a ser ocupado e o espaço disponível para a atividade. O grupo de alunos que interagiram nessa atividade foram A, C, CS, R, V e as professoras 1 e 3.

Episódio 11– O espaço necessário para confeccionar o jogo dos dentes

(1) (quando chegam ao ateliê, as mesas estão nos cantos da sala e o espaço no meio do ateliê está livre).

(2) Prof.ª 1: Onde estão as mesas? Por que as professoras tiraram as mesas? Vamos usar...

(3) CS: O chão.

(4) Prof.ª 1: Cada um acha um lugar para sentar no chão.(todos sentam no chão do ateliê)

(5) (Prof.ª 3 distribui folhas de papel pardo entre as crianças – retângulo grande e solicita que coloquem o papel na sua frente, surge então um problema...).

(6) Prof.ª 1: E agora, não temos espaço para o V e o A? (7) R: Lá.

(8) C: E o V lá.

(9) (Prof.ª 1 continua a fazer questionamentos enquanto A e V tentam encontrar um lugar para sentar).

(10) Prof.ª 1: Por que precisamos do chão? (11) C: Não cabe o papel na mesa.

(12) CS: Tem um buraco.(referindo-se ao que aconteceria no caso de juntar duas mesas)

(13) Prof.ª 1: Um buraco entre as duas mesas? (14) (CS acena que sim)

(15) (A acha um lugar para ele e V fica parado sem saber o que fazer e precisa do auxílio da professora que questiona onde tem um lugar que possa se organizar).

No início do episódio, as professoras (professora 1 e professora 3) haviam tirado as mesas para que as crianças observassem que o espaço estava diferente, com o chão do centro do ateliê livre, pois iriam utilizar papel pardo de cerca de um metro de largura e um metro e meio de comprimento. A aluna CS sugeriu que utilizassem o chão (linha 3) e a professora solicitou que encontrassem um espaço no chão para sentar (linha 4) e todos os alunos o fizeram. O problema surge quando a professora começa a distribuir os papéis para que realizem o trabalho e dois colegas (V e A) ficaram sem saber onde colocar seus papéis, já que o espaço onde estavam sentados fora ocupado pelos papéis dos outros colegas. Segundo o RCNEI (BRASIL, 1998, p.230) “As relações espaciais entre os objetos envolvem noções de orientação, direcionalidade (...)” e, essa orientação, que foi necessária para que as crianças se localizassem na sala em relação a sua posição no espaço e a posição do papel que deveria ficar “na frente” de cada criança.

Os alunos A e V ao ficar sem espaço, foram auxiliados pelos colegas R e C que tentaram indicar onde podiam sentar. O aluno A encontrou um lugar para sentar e colocar o papel a sua frente, mas V ficou parado e não soube onde se assentar. A mediação através da linguagem oral, que foi um dos grandes destaques dos estudos de Vigotski, tornou-se necessária, neste caso, para que o aluno V encontrasse o seu lugar no espaço, pois a mediação se constitui num elemento auxiliar externo de fundamental importância no processo de ensino e aprendizagem.

Percebemos que a percepção do espaço exterior à criança não é algo fácil para ela e que a noção de espaço é algo que vai sendo significado quando ela necessita resolver algum problema espacial, na interação com os outros colegas e os adultos. Smole et al (2003, p.16) denominaram de “competência espacial” essa capacidade do indivíduo de orientar-se no espaço. Para essas autoras

O conhecimento do seu próprio espaço e a capacidade de ler esse espaço pode servir ao indivíduo para uma variedade de finalidades e constituir-se em uma ferramenta útil ao pensamento tanto para captar informação quanto para formular e resolver problemas.

Outro aspecto que analisamos é a problematização realizada pela professora com relação ao porque do uso do chão e não das mesas (linhas 10-14). A aluna C concluiu que usaríamos o chão porque o papel não caberia na mesa (linha 11) e CS observou que se juntássemos duas mesas ficaria um buraco entre elas (linha 12). Nesta parte do episódio, bem como quando A e V não conseguem encontrar um lugar no chão do ateliê para trabalhar trazemos a noção de “devolução didática” assim apresentada por Brousseau (1986, apud

PAIS, 2006, p.29): “(...) o professor deve intensificar as relações no sentido de induzir a devolução de um problema para o aluno, em vez de acreditar na transmissão de conhecimentos”, ou seja, ao professor cabe levar o aluno a um envolvimento direto com a sua aprendizagem e com o conhecimento, interagindo com o saber matemático.

No dia seguinte à aula no ateliê, todos os alunos do grupo três foram desafiados a recortar os círculos e a noção do espaço a ser ocupado pelos objetos e a localização do sujeito em relação aos objetos voltou à tona. Cada criança procurou um lugar no chão da sala para colocar o retângulo grande com o círculo desenhado para que pudesse ser recortado. A aluna J não conseguia achar um espaço então solicitou à professora para trabalhar no corredor “na frente” da sala. Dessa forma, o conceito pode ser explorado também em outra atividade, a de recortar os círculos que haviam sido desenhados no papel pardo (conforme relatado no episódio), em outro tempo e espaço, o da sala de aula. Para finalizar essa análise sobre as três perspectivas da exploração das relações espaciais, trago as relações espaciais nos deslocamentos.