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As relações Estado-fronteiras e o conflito

CAPÍTULO 2. CONFLITO DE CASAMANSA

2.7. As relações Estado-fronteiras e o conflito

A fronteira é uma realidade anterior ao Estado mas incorporado por este através de demarcação territorial. A fronteira e o território têm existência que antecedem às realidades humanas e incorporadas por estas. O Estado constrói-se e muda-se com a fronteira e toda a evolução de suas atividades se desenvolve num determinado espaço territorial.

O conceito de fronteira é passível de várias abordagens, como de considerar que é linha natural ou convencional de separação de Estados (Caetano, 1983: 126) ou ainda, linha de tensão entre Estados. Mas em África as fronteiras artificiais embora separaram universos culturais com a divisão das etnias, não constituem simplesmente linhas de tensão ou barreiras (Dubois et al, 1998), mas são permeáveis permitindo a circulação das pessoas, o desenvolvimento das relações interétnicas transfronteiriças e constituição de espaços económicos e de integração sub-regionais.

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Informações constantes do Observatório Geopolítico das Drogas.

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A delegação governamental guineense foi chefiada pela então Ministra da Justiça, ora autora desta obra e a senegalesa pelo então Ministro de Defesa do Senegal.

Linha de fronteira é a direção contínua, embora certamente variada, que separa o território de um Estado do outro. O Estado forma-se com o território e alarga-se pela conquista de mais território; e, território do Estado é o espaço no qual os órgãos do poder exercem a autoridade política.

O reconhecimento que a relação Estado - território é de carácter pessoal e não de carácter jurídico real é um dos mais importantes resultados da doutrina moderna do direito político (Jellinek, 2000: 376). A conceção patrimonial do Estado foi uma prática desde a Idade Média, em que a ideia de domínio do rei sobre todas as propriedades na Inglaterra e na França antes da Revolução expressava a doutrina patrimonial de Estado. Na Alemanha a teoria patrimonial do Estado subsistiu até fim do império no século XIX.

O Estado patrimonial carece, antes de tudo, da distinção burocrática entre a esfera privada e a pública. Pois a Administração Pública é considerada como uma questão puramente pessoal do Soberano e a posse e exercício do seu poder político são estimados como uma parte integrante da sua fortuna pessoal, que resulta beneficiosa em virtude dos emolumentos e contribuições (Weber, 1994: 722.

O Estado nasce com existência efetiva de um território sobre o qual exerce poder de domínio; a anexação de território por parte de um Estado ou a secessão de território a um Estado exprimem carácter de domínio pessoal do Estado. A questão de territorialidade coloca-se como uma necessidade de aferição das fronteiras do Estado nacional e criação de um espaço cultural autónomo e uma comunidade sólida, sob pena de surgimento de conflitos com diferentes motivações: recusas de grupos étnicos a pertencerem um determinado território; linha da divisão na zona dos recursos minerais entre dois Estados como os casos do Mali e Burquina Faso e da Guiné-Bissau e Senegal relativo à fronteira marítima; ou a divisão entre antigas entidades históricas em duas, destruindo sua unidade orgânica, que são os exemplos da população haoussa entre Níger e Nigéria e das populações éwé entre Togo e Gana (Igue, 1995: 28).

A conflitualidade de Casamansa enquadra-se na primeira hipótese, ou seja, recusa dos Jolas casamansenses em pertencerem o território senegalês. O Estado na sua forma mais antiga de organização é caracterizado em primeiro lugar, pela delimitação de jurisdição territorial e em segundo lugar, pela instituição de uma autoridade pública especial com poder de coação que todos devem obediência.

Do ponto de vista da sociologia política o Estado é considerado uma superestrutura, ou seja, um conjunto integrado de instituições com objetivos diversos, que atua através de persuasão ou coerção com a finalidade de manter a sua identidade (Lara, 1987: 74).O poder

político é inerente a qualquer sociedade, impõe o respeito pelas normas que o fundamentam e o defendem contra as suas próprias imperfeições (Balandier, 1980 (1967).

A conceção histórica do Estado sofreu evolução, sendo que na Idade Média diferentemente da conceção antiga, o elemento territorial – a terra passou a constituir o fundamento do Estado, principalmente quando se refere ao predomínio de grandes territórios, que resultaram na organização política e propriedade do solo. Esta conceção não foi totalmente abandonada na contemporaneidade, a maior parte das investigações científicas sobre o Estado considera-o na sua forma objetiva uma comunidade política. O Estado é instituição suprema na medida em que, nenhuma outra possua poder integrado igual ou superior. O conceito de Estado como estrutura hierarquicamente superior advém da sociologia e da politologia, sendo que os antropólogos preferem a utilização de conceito genérico político. A conceção de Estado pré-colonial difere da conceção colonial, pois enquanto aquela baseava-se na posse da terra, que permitira os reis e imperadores exercerem seus poderes, esta tinha fundamento no controle efetivo do território demarcado em mapa. A Etiópia era a única sociedade africana que tinha tradição significativa de mapa, por ser das poucas sociedades africanas historicamente com tradição de escrita.

A colonização provocou alterações nos modelos tradicionais de organização de poder, com importação e aplicação de formas de gestão político-administrativas das metrópoles coloniais configuradas no modelo repressor da dominação político-económica e social. Pretendia-se com a política colonial baseada no etnocentrismo, a submissão total dos nativos à administração colonial e sua assimilação dos valores culturais da potência colonizadora. Mas longe de construir uma sociedade africana homogénea, com padrões culturais uniformizados, a aculturação forçada acabou por criar resistências, que produziram zonas periféricas fechadas à sua própria cultura (Cooper, 1996: 6-7).

Por consequência as estruturas políticas de organização de Estados africanos pré- coloniais sucumbiram-se parcialmente cedendo espaço às estruturas coloniais implantadas, herdadas pelos Estados pós-coloniais com todas as consequências de conflitualidade. O sentido do termo pós-colonial não se refere só a noção de tempo, mas envolve um certo número de relações e configurações de acontecimentos visíveis, percetíveis por vezes difusos “policéfalos”, mas que podem testemunhar a contemporaneidade, desde que estejam presentes na consciência (Mbembe, 2000: 33 – 34).

Os Estados pós-coloniais não conseguiram afirmar-se como Estado-nação, para gerir e promover de forma homogénea os interesses de grupos pertencentes às suas áreas territoriais. A ideia de Estado-nação continua sendo um tema bastante polémico nas sociedades africanas, sobretudo nos casos de conflitos gerados por fações internas étnicas ou religiosas de carácter identitário ou secessionista como é o caso do conflito de Casamansa. Outros exemplos são a guerra étnica entre Hutus e Tutsis no Ruanda em 1994;

os confrontos inter-religiosos na Nigéria; a rebelião tuaregue104 no norte do Níger para afirmação de identidade particular e mais recentemente no norte do Mali. Estes conflitos provam as dificuldades dos Estados pós-coloniais em conciliar os interesses de várias entidades que partilham o mesmo espaço territorial e construir Estado-nação.

Nação é uma “comunidade cultural de base” à qual “ pertencem todos quantos nascem num certo ambiente cultural feito de tradições e costumes, geralmente expresso numa língua comum, atualizado num idêntico conceito da vida dinamizado pelas mesmas aspirações e futuro e os mesmos ideais coletivos” (Caetano, 1983: 123).

Na maioria dos países da África Subsaariana formada por sociedades heterogéneas fontes de divisões étnicas, a Nação e o Estado-nação são conceitos que não se enquadram nas estruturas sociais tradicionais. E por outro lado, a transferência ou melhor, a herança de valores sobretudo culturais, político-ideológicos e da burocracia administrativa do Estado colonial para o Estado pós-colonial, obstaculizam a unidade nacional e o desenvolvimento (Goldthorpe, 1996: 213).

Várias nações formam o Estado, mas Estado- nação, pressupõe existência de um território, um governo legítimo e uma população étnico-cultural homogénea. Uma sociedade heterogénea na qual perfilam várias identidades étnicas, como é o caso do Senegal e de muitos outros países africanos torna-se difícil a tarefa de construção de Estado-nação. O Estado coincide com a nação quando existe uma hegemonia cultural e política (Boudon et al, 2003: 89-90), mas as sociedades africanas são culturalmente heterogéneas.

A nação se define por um conjunto de características objetivas, hereditárias e exteriores aos indivíduos num território determinado. A raça, a etnia, a língua, os costumes, a religião e a consciência de coesão, destacam-se como elementos essenciais ao conceito de nação. A consciência comum de unidade e coesão é tida como essência da nação, de tal sorte que uma etnia pode não ser considerada nação se lhe faltar esta consciência. É nesta perspetiva de análise que o Estado como entidade política não coincide com a nação, ou ainda, porque é composto por pessoas de diferentes proveniências que falam idiomas diferentes, têm hábitos, costumes, tradições e religiões diversificados; e normalmente não têm sequer a consciência de unidade e coesão por ausência de sentimento de origem étnica comum.

Baseado na política colonial do controlo do território, alguns estudiosos cometem erro de análise ao afirmar que a África pré-colonial não tinha nem Estados, nem sistemas de Estados, (Herbst, 2000: 36), contudo as conceções de Estados modernos continuam a estar

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Os tuaregues são grupos nómadas sobretudo pastores cuja economia e modo de vida baseiam-se na criação de animais domésticos.

vinculadas ao controlo do território. Assumir que os Estados não existiam na África pré- colonial simplesmente porque não seguiam modelos de Estados europeus, demonstra uma conceção bastante específica da organização do poder político, na medida em que, existiam reinos e impérios que são formas de organização de Estados formados por grupos tradicionais e culturalmente heterogéneos. O modelo híbrido da administração colonial formou-se utilizando algumas estruturas locais ora existentes, como o regulado que contribuiu na mobilização das massas, para o apoio ao aparelho administrativo e da repressão colonial.105

Não obstante a retórica da recuperação do passado africano, as tradições pré- coloniais não predominaram e os Estados pós-coloniais foram constituídos nos moldes constitucionais da conceção ocidental, que fundamenta o exercício da soberania com base no território. Contudo alguns priorizam a etnicidade como é o caso do Estado somaliano na sua insurgência contra à Etiópia (1960-1964) e o Quénia (1975-1976), mas paradoxalmente estes dois países exercem a soberania com base no território (Clapham, 1996: 216).106 Estas conceções diferenciadas do exercício da soberania influenciam as relações Estado- fronteiras e nas suas relações com os grupos étnicos ou religiosos que muitas vezes assumem posições separatistas.

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Os régulos são autoridades tradicionais com poderes locais, embora não tivessem enquadramento estatutário na administração colonial, colaboravam na mobilização das populações de sua área de jurisdição para o apoio à máquina colonial.

106 A Somália país do litoral conhecido como “chifre da África” fica situada no Leste da África; ao

Norte faz fronteira com a Etiópia, ao Oeste com Djibouti e ao Sudoeste com o Quênia e no extremo Oriente tem o Golfo de Áden.