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AS REPRESENTAÇÕES DA GUERRA FRIA NOS VIDEO GAMES

Como dissemos anteriormente, os video games foram produtos desenvolvidos no ambiente da Guerra Fria e alguns dos primeiros jogos, tais como Space War (1962), tinham o conflito entre as duas superpotências como fator principal da sua história. Ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, o número de jo- gos com foco no ambiente da Guerra Fria aumentou significativamente em função da própria expansão da indústria e do mercado civil de video games, e também em virtude do estreitamento da relação entre o Pentágono e os produtores de jogos eletrônicos. Já existem uma série de estudos acadêmicos que analisam essas produções interpretando-as como elementos da própria história dos video games.

Jogos como Missile Command (1980) e Wasteland (1989) recriaram ce- nários de uma provável guerra nuclear na época. Segundo Burgess (2016), esses jogos foram bastante populares quando lançados. Burgess argumenta que Missile Command foi o primeiro vídeogame que representou uma guerra nuclear, enquanto Wastland teve como foco o mundo após um conflito entre as potências nucleares da época.

Missile Command (1980) e Wasteland (1988) são dois dos videogames mais influentes e renomados de seu tempo, com Misile Command sendo o primeiro videogame para descrever a guerra nuclear e Wasteland sendo a primeira representação detalhada de um pós-apocalipse nuclear nos videogames.10 (BURGESS, 2016, p. 63, tradução nossa)

De acordo com Burgess estes jogos permitem interpretar como a per- cepção sobre uma hipotética guerra nuclear foi alterada ao longo dos anos. Essa observação de Burgess coaduna com a reflexão feita por Kelly Wenig no trabalho Fighting the Cold War in the virtual streets: video games as a source for

a social and cultural history (2011), que ao analisar alguns dos jogos com en-

redo no contexto da Guerra Fria, também defendeu o uso dos games como fontes históricas para o entendimento de processos históricos nos campos da história cultural e da história social.

Diversos estereótipos sobre as populações de países que eram adversários dos EUA durante a Guerra Fria foram aplicados nas representações de alguns títulos de video games nas últimas décadas. Wenig (2011) destaca que os per- sonagens de Street Fighter resumem uma série de estereotipias, construídas pelos países do ocidente sobre os habitantes dos países do bloco soviético e do terceiro mundo. O personagem brasileiro, Blanka, foi representado como um monstro verde, capaz de dar choques elétricos nos seus adversários. Guile, a representação do herói norte-americano, foi apresentada como um típico militar, tatuado, loiro e com corte de cabelo moderno. Já o personagem sovi- ético foi representado com características que remetem aos estereótipos que ocidente possuía sobre os soviéticos: selvagem, bestial, violento, desajeitado, sujo e repleto de cicatrizes. (WENIG, 2011)

10 “Missile Command (1980) and Wasteland (1988) are two of the most influential and renowned video games of their time, with Missile Command being the first video game to depict nuclear war and Wasteland being the first detailed representation of a nuclear post apocalypse in video games”.

A luta entre o soldado americano e ex-lutador soviético é reveladora. Guile é um Major na Força Aérea dos Estados Unidos. Ele usa plaquetas de identificação militar, calças de camuflagem e botas do exército, enquanto sua camisa é uma camiseta das armas militar. Ele é tem cabelos loiros, olhos azuis, mede 1.80m, pesa 82kg kg e tem tatuagens com a bandeira americana nos dois ombros. Ele é o prototípico militar americano; alto, musculoso, limpo e barbeado. Ele representa a forte natureza física dos Estados Unidos, sem se tornar uma caricatura da hiper-masculinidade. Em contraste, o personagem da URSS, Zangief, é um ex-lutador profis- sional russo que foi expulso do esporte por trapaça. Ele usa a roupa de um lutador profissional e tem muitas cicatrizes em seu corpo. Ele tem cabelos castanhos escuros que são raspados em um moicano, uma barba cheia, uma massa de cabelos no peito, mede 2.16 m de altura e pesa 116 kg. Seu físico é prototípico da percepção ocidental do guerreiro soviético; desajeitado, acima do peso, bestial e selvagem.11 (WENIG, 2011, p. 7-8 )

É importante ressaltar, que Street Fighter é apenas um dos títulos que possuem seu enredo ambientado na guerra fria e utilizam de preconceitos na construção dos seus personagens. Call of Black Ops I e II, Supreme Ruler Cold War, e Command Conquer retrataram os soviéticos como inimigos do ocidente, construindo seus personagens de forma caricata, atrelando os co- munistas a estereótipos construídos pela indústria de propaganda ocidental durante a Guerra Fria. Nos games citados, podemos afirmar que os comu- nistas foram representados como inimigos da liberdade, do modo de vida ocidental e uma ameaça permanente ao “mundo livre”.

11 “The fight between the American soldier and Soviet ex-wrestler is revealing. Guile is a Major in the United States Air Force. He wears dog tags, camouflage pants and army boots, while his shirt is a military issue tank top. He is blond-haired, blue-eyed, stands 6’1”, weighs 191 pounds and has an American flag tattoo on either shoulder. He is the prototypical American military man; tall, muscular, clean-cut, and clean shaven. He represents the strong, physical nature of the United States, without becoming a caricature of hyper-masculinity. In contrast, the character from the USSR, Zangief, is a Russian ex-professional wrestler who was kicked out of the sport for chea- ting. He wears the outfit of a professional wrestler and has many scars on his body. He has dark brown hair shaved into a mohawk, a full beard, a mass of chest hair, stands 7’ tall and weighs 256 pounds.9 His physique is prototypical of the Western perception of the Soviet warrior; hulking, oversized, beastly and wild”.

Em Call of Duty Black Ops, primeiro game da franquia Call of Duty12

ambientado na Guerra Fria, existe uma releitura da história factual a exem- plo da morte de Fidel, representada no video game como fruto de uma ação necessária do mundo livre contra o comunismo. Os personagens principais desse jogo estiveram envolvidos com a tentativa de assassinato de Fidel du- rante a invasão da Baía dos Porcos em 1961. O jogo, inclusive, começa com uma representação de uma cena de tortura em que um agente da CIA está sendo torturado em função das suas ações relacionadas a um programa de assassinatos desenvolvido pela CIA.

Nos outros dois jogos citados, as representações relativas aos estereóti- pos associados aos comunistas pela indústria cultural no ocidente são mais sutis, pois tratam-se de jogos de estratégia em que é possível escolher o lado comunista e jogar contra o ocidente. Em Command Conquer Red Alert, há cenas introdutórias diferentes, tanto para quando se escolhe o lado capita- lista ou o lado comunista. Na cena introdutória da primeira missão do lado ocidental, chamado pelos desenvolvedores do jogo de aliados, há um filme no qual é possível apreender alguns detalhes da missão inicial. Nesse simu- lacro de preparação para a primeira missão, dois comandantes militares con- versam com uma câmera que está transmitindo a reunião em que o jogador está sendo representado no enredo pelo sujeito que vai liderar a tarefa e que consiste no resgate do cientista Albert Einstein de uma base de pesquisas mi- litares na URSS. Ou seja, a primeira missão aliada é envolta em uma pseudo causa nobre, o resgate de um dos maiores cientistas da história do século XX. Já o vídeo introdutório da primeira missão, quando o usuário escolhe o lado comunista, é protagonizado por Stalin e dois oficiais, que começam o vídeo estipulando quanto tempo um determinado gás, ainda em produção, demo- raria para matar as pessoas, inclusive crianças. Durante a apresentação dos

12 Call of Duty é uma franquia de jogos de video games multiplataformas e que possuem reconheci- mento no mundo gamer. Existem vários estúdios que produzem ou que já produziram episódios de Call of Duty. A história dos episódios não possui uma linearidade temporal nem possuem relação com os enredos dos games da franquia que possuem sequências.

dados estatísticos tenebrosos sobre as mortes causadas pelos experimentos desse gás, um dos oficiais presentes na reunião com Stalin revela que há uma rebelião que deve ser suprimida. De imediato, Stalin ordenou que a cidade fosse destruída e que os seus habitantes fossem mortos. Tal diferença de dis- curso motivador para a primeira missão revela que Command Conquer Red Alert possui a função de reproduzir preconceitos e propagar uma concepção antissoviética da história, pois inexistem fontes que atestem o que o jogo in- dica como natural na concepção estratégica da União Soviética.

Existe uma necessidade relativa à justificativa discursiva para que o ca- pital se reproduza na sua fase imperialista e as teorias geopolíticas tiveram um papel chave nisso. Esse discurso legitimador de ações imperialistas de- senvolvidas pelos Estados nos quais há uma preponderância dos interesses do capital na sua organização não é imutável, ele se adapta ao momento conjuntural e histórico e extrai desse contexto elementos que justifiquem a adoção de estereótipos. Assim, em virtude da ameaça de países continentais, como a Rússia e China, para a hegemonia dos EUA como potência global foi necessário que ações de soft power dessem legitimidade aos movimentos ge- opolíticos das potências da Otan, que visavam, no período da Guerra Fria, a destruição do bloco comunista que poderia se tornar hegemônico na Eurásia trazendo sérias consequências para as pretensões norte-americana nessa re- gião do globo. Nessa ótica, a Rússia sempre será adversária dos EUA, porque possui condições naturais de ameaçar o papel de potência global com influên- cia nos cinco continentes desempenhado pelos EUA no século XX e início do século XXI. Mais recentemente, a China também passou a ser incluída nesse conjunto de países que sofrem representações estereotipadas, a exemplo de Call of Duty Black Ops II, que simula uma guerra fria entre o gigante asiático e os EUA. Quando relacionamos o enredo de Call of Duty Black Ops II com o enredo de Call of Duty Modern Warfare, percebemos que há uma inten- ção da empresa desenvolvedora em situar estas duas nações (Rússia-China) como uma ameaça as pretensões geopolíticas norte-americanas no século

XXI, reproduzindo no tempo presente, estereótipos que foram construídos para estigmatizar os soviéticos.

Ao estudar os jogos sobre Guerra Fria, é importante que tenhamos o mí- nimo de conhecimento sobre as teorias geopolíticas que nortearam a atuação geoestratégica do império-estadunidense no período, para que possamos in- terpretar corretamente a presença de militares dos EUA em locais distantes do seu território, a exemplo do leste europeu, oriente médio e sul do pací- fico. Sem o mínimo do conhecimento teórico que lastreia a atuação geoes- tratégica, caímos no risco de naturalizar determinados comportamentos e reproduzir estereotipias construídas para mascararem as reais intenções que nem sempre são nobres. Nem todos os jogos sobre a Guerra Fria conseguem reproduzir, em uma macro perspectiva geopolítica, o teatro de operações e o grande tabuleiro no qual a URSS e os EUA se enfrentaram durante a segunda metade do século XX.

No caso dos jogos, que se debruçam sobre questões geoestratégicas e que simulam conjunturas históricas de conflito entre as superpotências do sé- culo XX, geralmente o tabuleiro é o mapa-múndi, no qual podemos extrair informações acerca da influência direta e indireta de autores importantes da geopolítica anglo-saxã e que possuem grande influência sobre o planejamento do Estado norte-americano. Fazemos referência a teoria da Heartland desen- volvida pelo geógrafo inglês Halford Mackinder e constantemente atualizada e revisada pela escola de pensamento geopolítico dos EUA.

Um destes jogos é Supreme Ruler Cold War, no qual o jogador pode controlar um dos países que faziam parte do mundo durante os anos da Guerra Fria. O teatro de operações é global e o jogo possui uma ênfase na dimensão militar e diplomática do conflito, conseguindo reproduzir o cenário que influenciou o aprimoramento da teoria da Heartland por Nikolas Spykman.

O jogo foi lançado pela Paradox13 e desenvolvido pela BattleGoat Studio.

A data de lançamento de Supreme Ruler Cold War foi em 2011. No Fórum da Paradox, é possível analisar algumas fontes correlatas ao jogo a exemplo dos diários de desenvolvimento postados sobre o processo produtivo dos games.