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O GIRO COMPUTACIONAL E AS HUMANIDADES DIGITAIS

Quando Fragoso e Recuero (2011) publicaram Métodos de pesquisa para in-

ternet, as questões postas pela comunidade científica sobre o tema do livro

elegiam as próprias tecnologias digitais como objeto de pesquisa. Havia uma ênfase na discussão sobre o surgimento da própria internet, matizada por

dicotomias como a oposição entre e real e virtual, on-line e off-line, intera- ções síncronas versus assíncronas. A internet era pensada como uma esfera autônoma e distinta do real, ciberespaço. Naquele contexto, a ênfase da dis- cussão metodológica proposta pelas autoras girava em torno da necessidade de nortear a escolha de técnicas de investigação com base em critérios como possibilidade de obtenção de informação, utilidade e explicitação dos crité- rios de escolha. Em função desses critérios, Fragoso e Recuero (2011) apon- tavam a netnografia como uma ferramenta importante para consecução de pesquisas qualitativas sobre blogs, redes sociais, uso de e-mails e redes sociais.

Mais recentemente, Segata (2014) critica o uso da expressão exatamente por ter como referência a relação dicotômica entre real e virtual. Essa é compre- ensão que tem tomado corpo no campo das Ciências Sociais. Reposicionando o digital na ordem de produção da cultura, Miller e Horst (2015) afirmam a necessidade de diluir a oposição entre o digital e o não digital, uma vez que o digital nada mais é do que aquilo que é redutível a um código binário. De modo análogo à utilização do sistema decimal para as trocas comerciais, o código binário abstrai o real e promove uma simplificação dos processos de comunicação, possibilitando a convergência entre conteúdos e tecnolo- gias que antes eram díspares. E uma que, tanto o dinheiro como o digital são abstrações do humano, são produtos culturais, a distinção entre etnografia e netnografia deixa de ser significativa.

A difusão das tecnologias digitais, em particular das ferramentas de software voltadas para a análise de dados qualitativos – Computer Assisted Qualitative Data Analysis Software (CAQDAS) –, levou Röhle e Rieder (2012) a formula- rem o conceito de giro computacional. Não se trata mais apenas da pesqui- sa sobre o digital, mas da adoção de métodos automatizados de análise dos artefatos tradicionais (livros, filmes) digitais (programas, publicações, jogos) e das realidades humanas a eles associados. A adoção dos métodos digitais é uma resposta da comunidade científica em face de atual produção veloz e massiva de dados digitais e uma tentativa de apreender processo como vestí- gios das práticas dos mais diversos usos da tecnologia digital. Segundo Röhle

e Rieder (2012), as ferramentas computacionais de análise trazem a promessa de aliar um processamento amplo de informações – muito mais vasto e além do que seria possível ser feito manualmente – à alternância entre a micro e a macro perspectiva, de modo a conciliar amplitude e profundidade de análise. A apropriação do uso das tecnologias computacionais originou mudanças substanciais no modo como os cientistas interagem entre si e divulgam o co- nhecimento produzido, suscitando a criação de redes de pesquisadores e uso de redes sociais e plataformas digitais para a divulgação dos resultados das pes- quisas. No entanto, para Röhle e Rieder (2012), as alterações mais profundas dizem respeito à própria produção do conhecimento científico, pois a tecno- logia digital altera o modo como os estudiosos trabalham com seu material, como o veem e interagem com ele. Ao possibilitar a descoberta de padrões, dinâmicas e relacionamentos nos dados, ela oferece não apenas visibilidade a variados feixes de relações, mas possibilita a obtenção de novas perspectivas sobre os fenômenos estudados, gerando problemas epistemológicos complexos.

As humanidades digitais têm se consolidado como um campo interdisciplinar de conhecimento interessado na reflexão sobre produção, apropriação e usos das tecnologias digitais na academia e apontado que, para além do uso, e das questões relacionadas à eficiência e objetividade, é preciso pensar nas mudanças trazidas à própria concepção de ciência. Como sublinha Lupton (2015), é preciso problematizar a construção e o uso dos algoritmos por parte das tecnologias digitais, de modo compreender a sua dimensão política e cultural.

Röhle e Rieder (2012) destacam que, embora os resultados dos usos das ferramentas computacionais sejam visualmente impressionantes e intuitiva- mente convincentes, o status metodológico e epistemológico de sua produção ainda é pouco claro. Uma vez que as tecnologias digitais carregam princípios metodológicos e argumentos, é preciso indagar sobre o modo como as ca- racterísticas técnicas destas novas ferramentas produzem o conhecimento científico. Por exemplo, é preciso evitar adotar a perspectiva de que essas tecnologias proporcionariam um tipo de “objetividade mecânica” de caráter epistemologicamente superior que situaria os processos de interpretação

humana a um plano secundário. Desse modo, não é apropriado tomar os argumentos visuais como válidos por si mesmos, sem submetê-los à devida interpretação e sem colocar em questão o seu mecanismo de produção. Ao

contrário, é preciso criar uma agenda de pesquisa que leve os pesquisadores a indagarem sobre os pressupostos metodológicos presentes, tecnologias

utilizadas, de modo a objetivar o discurso que está oculto no algoritmo dos

softwares e desenvolver modos específicos para tratar as imagens resultantes

dos processos pesquisados.

A discussão acima oferece contribuições importantes para a pesquisa so- bre simulações e jogos digitais ou para a divulgação dos resultados das pes- quisas históricas através de simulações e mídias digitais, das quais os museus virtuais são um bom exemplo. Segundo o argumento apresentado, é preciso evitar ceder ao encanto da linguagem visual e manter a postura crítica in- terrogando sobre a lógica interna do algoritmo, além de manter distância da ingênua atitude de fazer equivaler o simulacional à reconstituição do real, ou atribuir a ele, aprioristicamente, uma precisão ou qualidade superior à en- contrada na expressão textual. Afinal, em ambos os casos, trata-se de textos e publicações. Sendo assim, é preciso dar conta dos desafios epistemológicos específicos existentes em cada um desses meios.

É exatamente essa a preocupação presente na discussão proposta por Kee (2011) ao indagar sobre quais seriam as convenções necessárias para que os jogos digitais, enquanto mídia, sejam capazes de expressar o conhecimento historiográfico. O autor lembra que, no caso dos próprios livros, foi neces- sário um longo tempo de adaptação até encontrar as convenções adequadas para que neles os conhecimentos científicos fossem expressos. Dito de outro modo, é preciso indagar sobre as convenções específicas utilizadas no pro- cesso de produção específico de cada mídia.

No caso do uso das imagens oriundas da pintura, do cinema e da fotogra- fia, Burke (2004) sugeriu considerar elementos como a fórmula visual utili- zada, as intenções do artista, o plano de referência da imagem e as possíveis distorções. E quanto aos jogos digitais? A compreensão das fórmulas neles

empregadas exige a aproximação do historiador do campo interdisciplinar conhecido como Game Studies, que promoveu importantes reflexões sobre as convenções adotadas pelos game designers pautou o desenvolvimento de propostas metodológicas específicas para a investigação dos jogos eletrônicos.