• Nenhum resultado encontrado

As representações midiáticas sobre a Guerra Fria são abundantes. Existe uma ampla variedade de expressões culturais que abordam fatos ocorridos durante os anos de disputa entre a URSS e os EUA ou que foram inspirados em eventos que ocorreram nesse período. O cinema, a literatura, a música, séries de TV e os video games foram influenciados tanto pela conjuntura da dessa guerra, quanto pelas consequências, cujos desdobramentos ainda são sentidos na atualidade.

O mundo dos games possui forte influência da Guerra Fria, pois os video games, na sua origem, foram desenvolvidos em função das demandas tec- nológicas geradas pela competição entre os EUA e a URSS. Uma quantidade significativa de trabalhos acadêmicos já abordou a relação entre os video ga- mes e o complexo de entretenimento militar, tanto na dimensão que abor- da as origens dos video games, quanto no desenvolvimento tecnológico do complexo que não pode ser dissociado do desenvolvimento industrial dos games, em virtude da relação entre a evolução da tecnologia militar e a sua assimilação pela indústria de games e vice-versa. Ou seja, em virtude da sua natureza, os games possuem relação intrínseca com a tecnologia aplicada no campo militar e que, por sua vez, também é utilizada para que os usuários dos video games possuam uma experiência, realista, imersiva e que seja realista em termos de simulação da realidade. Podemos destacar uma série de traba- lhos que já são referências no estudo destas relações a começar por Play War:

video games and the future of armed conflict (2013), escrito por Corey Mead

e que se debruçou sobre a influência dos video games e suas tecnologias no treinamento de militares norte-americanos e as consequências do impacto

6 “It is improbable that a global conventional challenge to U.S. and Western security will re-emerge from the Eurasian heartland for many years to come”.

dessa relação na estrutura de educação dos EUA. “Como veremos, se os jogos são o futuro da aprendizagem, é um futuro que os militares já habitam. Ao mesmo tempo, o uso dos videogames pelos militares é apenas a última en- trada em sua longa história de inovação em aprendizagem”.7 (MEAD, 2013,

p. 5, tradução nossa)

Também destacamos o trabalho referencial Virtuous War: mapping the

military-industrial media-entertainment (2009) de James Der Derian, no qual

o autor mapeou as relações entre o complexo industrial militar e o comple- xo de entretenimento, assim como a importância do virtual no conceito de guerra moderno, principalmente a perspectiva de guerra permanente, na qual a liderança militar e diplomática dos EUA estaria baseada em modelos de representação das suas normas morais, capacidade de dissuasão e coerção. (DERIAN, 2009) Para Derian (2009), os conceitos de virtuosidade e virtuali- dade possuem uma relação orgânica e estão ligados ao entendimento social da guerra moderna. Assim, Derian analisou a aplicabilidade desses conceitos desnudando o caráter de imparcialidade associado, erroneamente, ao signi- ficado do termo virtual na sociedade contemporânea, bem como o termo virtuoso, cujo significado atual não abarca mais a capacidade de exercer in- fluência pelas próprias capacidades. Porém, para Derian (2009), a caracterís- tica principal da guerra-virtuosa está baseada na capacidade de infligir atos violentos, se necessários, à distância e com poucos danos, bem como no seu imperativo ético. E para que tais atos sejam realizados os ambientes virtuais se tornaram essenciais na atualidade.

Apesar e também por esforços para espalhar uma paz democrática através da globalização e intervenção humanitária, a guerra está subindo para um plano ainda maior, do virtual ao virtuoso. Ao mesmo tempo, as duas palavras – e os dois mundos que representam – dificilmente eram distin- guíveis. Ambos se originaram na noção medieval de um poder inerente

7 “As we will see, if the games are the future of learning, it is a future that the military already inhabits. At the same time, the military’s use of video games is just the latest entry in its long history of learning innovation”.

à virtude sobrenatural. E ambos carregavam uma luz moral, do sentido grego e romano de virtude de propriedades e qualidades de conduta correta. Mas seus significados divergiram no uso moderno, com ‘virtual’ assumindo um tom moralmente neutro, mais técnico, enquanto ‘virtuoso’ perdeu a sensação de exercer influência por meio de qualidades ineren- tes. Agora, eles parecem prontos para ser reunidos pelos esforços atuais para efetuar mudanças éticas através de meios tecnológicos e marciais. Os Estados Unidos, como deus ex machina unilateral de política global, estão liderando o caminho nesta revolução virtual. Suas políticas diplo- máticas e militares são cada vez mais baseadas em formas tecnológicas e representativas de disciplina, dissuasão e compulsão que poderiam ser melhor descritas como ‘guerra virtuosa’. No centro das forças de guerra virtuosas, a capacidade técnica e o imperativo ético de ameaçar e, se necessário, atualizar a violência a distância – sem perdas ou mínimas.8

(DERIAN, 2009, p. 31, tradução nossa)

Tim Lenoir foi outra referência indispensável na nossa reflexão sobre a relação entre o complexo de entretenimento militar. Em All but war is si-

mulation: the military entertainment complex (2009), Lenoir analisou como

a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (Darpa), em con- junto com as empresas e universidades norte-americanas, criou diversas tecnologias que foram adaptadas pelo setor de entretimento e aplicadas ao uso civil. Isso permitiu, segundo Lenoir, que setores da indústria mi- litar desenvolvessem produtos que deveriam ser concebidos tanto para o

8 “In spite and perhaps because of efforts to spread a democratic peace through globalization and humanitarian intervention, war is ascending to an even higher plane, from the virtual to virtuous. At the one time, the two words-and the two worlds they represent – were barely distinguishable. Both originated in the medieval notion of a power inherent in the supernatural virtue. And both carried a moral wight, from the Greek and Roman sense of virtue of properties and qualities of right conduct. But their meanings diverged in modern usage, with ‘virtual’ taking a morally neutral, more technical tone, while ‘virtuous’ lost it sense of exerting influence by means of inherent qualities. Now they seem ready to be rejoined by current efforts to effect ethical change through technological and martial means. The United States, as unilateral deus ex machina of global politics, is leading the way in this virtual revolution. Its diplomatic and military policies are increasingly based on technological and representational forms of discipline, deterrence, and compulsion that could best be described as ‘virtuous war’. At the heart of virtuous war ins the technical capability and ethical imperative to threaten and, if necessary, actualize violence from a distance – with no or minimal casualties”. Para mais informações, ver: Derian (2009, p. XXXI).

uso civil, quanto para o militar. A relação entre o setor público e o setor privado, com vistas à produção de tecnologias, permitiu que os militares assimilassem modelos de produção e organização empresariais visando à diminuição de custos de produção, ordenada após a Guerra Fria. De acor- do com Lenoir, as empresas contratadas pelos militares foram orientadas a desenvolverem produtos híbridos ao meio civil e militar, e os produtos que tivessem aplicabilidade restrita teriam pouca prioridade. Assim, per- cebemos que a Guerra Fria não só influenciou a criação dos próprios video games, como também modelou a indústria de produção de tecnologia de ponta nos EUA, criando uma relação de protocooperação entre os setores empresariais, acadêmicos e militares. (LENOIR, 2000)

Assim como a Guerra Fria teve uma influência significativa na estrutura de produção tecnológica, também é salutar analisar como as representações deste fenômeno histórico foram desenvolvidas pela indústria de video games. Ou seja, se o complexo de entretenimento militar tem sua produção volta- da tanto para o uso civil, quanto para o treinamento militar, é importante que estudos se debrucem sobre o conteúdo dos video games que abordam questões militares e geopolíticas, pois a influência do setor militar sobre a indústria de games não se restringe somente a inovação, mas também no uso desses artefatos, como veículos de disputa ideológica e de recrutamento para as forças militares de setores da população. Além disso, a indústria de video games é, atualmente, mais avançada em termos de desenvolvimento de tec- nologias de simulação do que os militares norte-americanos. Segundo Mead (2013, p. 6, tradução nossa), antes da década de 1990, havia uma transferência de tecnologia militar para o mercado de games, e agora, após a Guerra Fria, essa situação tinha se invertido: “Hoje, o setor de videogames supera as for- ças armadas em conhecimentos tecnológicos, com o resultado de que agora os militares conseguem sua tecnologia de empresas de jogos comerciai”.9

9 “Today the videogame industry far surpasses the military in technological expertise, with the result that the military now procures its game technology from commercial game companies”.

Como podemos interpretar, através da pesquisa desenvolvida por Mead, a relação entre o complexo militar e a indústria de games é orgânica e teve origem na Guerra Fria. Essa relação se desenvolveu e ganhou tamanha im- portância para os militares, que o Exército estadunidense passou a fabricar seus próprios jogos e desenvolver ambientes de treinamento on-line. Fazemos referência ao jogo American’s Army, que obteve sucesso estrondoso de aces- sos e se tornou um ícone do uso dos jogos eletrônicos pelos militares, pois abarca tanto a dimensão do treinamento, quanto a dimensão do convenci- mento mediante a construção de um discurso sobre a realidade, nesse caso, a realidade das guerras norte-americanas no oriente médio, no final do século XX e início do século XXI.