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INTRODUÇÃO: É POSSÍVEL JOGAR O PASSADO?

Uma aproximação entre a história e os jogos digitais tem se tornado mais evidente nos últimos anos. As possibilidades de investigação para a histo- riografia concebem suas abordagens em três aspectos: 1) a temática da cul- tura digital nas sociedades contemporâneas; 2) as possibilidades de ensino de história com os jogos;1 e 3) a percepção dos jogos como produtores de

memórias sobre determinados acontecimentos históricos.2 Esses aspectos

apesar de parecerem distintos, no cerne das discussões que são tecidas, ten- tam dar conta de um mesmo processo, a percepção de um conhecimento sobre o passado que se relacione com o presente, conforme a definição de

1 Um panorama sobre as relações possíveis entre ensino de história e jogos pode ser percebido em Silva (2010), Arruda (2011), Neves (2011), Telles (2017) e Lima (2017).

consciência histórica proposta por Rüsen (2001). Rüsen (2001, p. 57) define a consciência histórica como “a suma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo”.

Os historiadores espanhóis Nicolás Romera e Nicolás Ojeda (2015, p. 7) chamam a atenção para as transformações exercidas pelos jogos digitais na contemporaneidade, no que diz respeito ao conhecimento sobre o passado, inclusive relacionando o conteúdo desses artefatos culturais no campo da historiografia.

O que originalmente apareceu como uma forma de entretenimento en- raizada na dimensão lúdica de cada um de nós como real ou potencial, foi transformado, dentro do contexto sociocultural contemporâneo, em um artefato gerador de conteúdos e capaz de deslocar, do ponto de vista historiográfico, o discurso científico do conhecimento do passado e seus eventos determinantes.3 (NICOLÁS ROMERA; NICOLÁS OJEDA, 2015,

p. 7, tradução nossa)

Há de se destacar que os jogos digitais já se configuram como um cam- po de estudos interdisciplinar, percebidos através de um modelo tripartido4

conforme já destacou Aarseth (2003). Na literatura especializada sobre essa temática, os jogos que abordam questões históricas, em se tratando de enredo, aspectos materiais, narrativa e até no contexto histórico, são denominados

history games. (NEVES, 2011)

3 “Lo que en su origen aparecía como una forma de entretenimiento radicada en la dimensión lúdica de cada uno de nosotros como intervinientes reales o potenciales, se ha transformado, dentro del contexto sociocultural contemporáneo, en un artefacto generador de contenidos y capaz de des- plazar, desde un punto de vista historiográfico, el propio discurso científico del conocimiento del passado y sus acontecimientos definidores”.

4 O pesquisador norueguês Espen Aarseth (2003, p. 11) chama a atenção para a percepção dos jogos digitais a partir de três elementos, gameplay, cujo foco é a jogabilidade, game-structure, a estrutura

Destaca-se também que apesar de facilitar a delimitação, a utilização desta nomenclatura deve ser problematizada, uma vez que o aspecto histórico do jogo não condiz necessariamente com a historiografia, ampliando o conhe- cimento do passado para memórias e outras recordações.5 O aspecto histó-

rico do jogo a ser tratado pelos historiadores diz respeito a sua possibilidade de “estimular a reflexão histórica”. (VIANNA-TELLES; ALVES, 2016, p. 176) Nesse sentido, esses jogos estão sendo utilizados pelos historiadores como fontes, uma vez que, apesar de não possuírem em seu conteúdo inicial uma “iniciativa pedagógica”, tendo como base principal o entretenimento, transmitem memórias e visões historiográficas, tornando-se interlocutores entre a história pública e a história do tempo presente. A partir dessa fenda, os historiadores analisam qual visão de mundo é repassada pelos desenvol- vedores e produtores dos jogos digitais.

Vale a pena ressaltar as discussões expostas por Kapell e Elliott (2013), os quais afirmam que a historiografia se encontra em um momento, após quatro décadas de debates, em que não é mais relevante discutir se o conteúdo his- tórico do jogo é verdadeiro ou não, cabendo ao historiador perceber: 1) com qual visão historiográfica os produtores tiveram contato; 2) por quais moti- vos; e 3) como elas interferem nas representações presentes no produto final. Dessa forma, o que é importante para o historiador é entender como ocor- reram as pesquisas sobre o conteúdo histórico existente no jogo, identificando os profissionais que prestaram o serviço de consultoria – sejam historiadores ou memorialistas; contextualizar a visão historiográfica que aparece no jogo e como os personagens são retratados, sejam eles sujeitos individuais ou coleti- vos; e, partindo desses pressupostos, perceber como o jogo, entendido como o resultado de uma colcha de retalhos com visões distintas, reflete e dialoga com o passado, aproximando-se ou distanciando-se em níveis distintos das visões elucidadas tanto pela historiografia quanto pela memória.

Essa relação com o passado existente nos jogos digitais que tratam de conteúdos históricos traz à tona um questionamento: é possível jogar o pas- sado? A noção de “jogar o passado” e todas as implicações presentes nesse processo encontram-se em duas obras de língua inglesa, as quais levantam essa questão já no título. Tratam-se das seguintes obras: Playing with the Past (2013), de Elliot e Kappel, citada anteriormente e Playing with the Past, de Erik Champion (2011), além das discussões tecidas pela historiografia brasileira, propostas por Vianna-Telles (2016) e Carreiro (2013).

A ideia de um passado jogável em um mundo virtual no qual as escolhas históricas podem ser repetidas ou redefinidas de acordo com o interesse do jogador amplia o horizonte para um número incontável de possibilidades. Se essa afirmativa levantada nesse momento for considerada verdadeira, es- tamos diante de outro Regime de Historicidade (HARTOG, 2015) que não se encaixa no modelo de historia magistra vitae, no regime moderno ou no presentismo.6

Para Hartog (2015, p. 28), os regimes de historicidade são, “em uma acep- ção restrita, como uma sociedade trata seu passado e trata do seu passado. Em uma acepção mais ampla, regime de historicidade serviria para designar a modalidade de consciência de si e de uma comunidade humana”. Além disso, esse regime “não é uma realidade dada. Nem diretamente observável nem registrado nos almanaques contemporâneos; é construído pelo histo- riador”. (HARTOG, 2015, p. 28) E é justamente a partir dessas perspectivas, sob a possibilidade de jogar o passado e as implicações decorrentes dessa relação com a própria memória, que as questões e apontamentos aqui pre- sentes serão elaborados.

A relação entre jogos eletrônicos e história é rica e complexa. Para exem- plificar essa questão, a seguir discutirei os elementos ideológicos transmitidos pelos jogos lançados para o computador, entre os anos de 1989 e 2008, em

6 Atualmente, de acordo com Hartog (2015, p. 14-15), o regime de historicidade dominante é o presentismo, no qual “o presente é estagnante e o futuro é entendido como ameaça”. Sobre essa questão, ver Hartog (2015) e Rousso (2016).

um total de 12 títulos, que abordam a temática da colonização da América. A ideia da “colonização do novo mundo” é um aspecto apresentado em diver- sas facetas nos jogos para computador, tendo seus primeiros títulos lançados no final da década de 1980 e, a partir de então, ao longo dos últimos 20 anos, foram produzidos diversos jogos do mesmo segmento.

O objetivo principal consiste, portanto, em analisar os jogos que abor- dam a temática da colonização da América e perceber como a lógica da co- lonização europeia do continente americano é demonstrada e justificada no jogo, problematizando dentro do game os aspectos que legitimam as ações dos colonizadores europeus, percebendo um elogio ao caráter do coloniza- dor enquanto superior, as representações dos povos nativos e o ambiente em geral no qual essa questão é desencadeada.

No primeiro momento há um trajeto histórico dos jogos lançados, rela- cionando o período histórico no qual o jogo foi lançado e as rememorações sobre “comemoração do descobrimento”, buscando demonstrar quais são os usos do passado aos quais os jogos estão submetidos socialmente. Em segui- da é identificado um elogio aos colonizadores, presente em três jogos, Gold of the Americas, Sid Meier’s Colonization e Age of Empires III, contando a história da colonização a partir de um olhar eurocêntrico, impossibilitando outras análises e interpretações sobre esse fenômeno a não ser aqueles vistos sob o olhar do colonizador. Por fim, são feitas considerações acerca da repre- sentação dos povos ameríndios e como os mesmos são percebidos como o “outro” a ser combatido, colonizado e exterminado, para que o jogador possa obter êxito na sua aventura, ou seja, vencer o jogo.

A escolha por analisar essa questão diz respeito a uma dupla familiarida- de com a temática. Primeiro porque cresci jogando jogos com essa temática, o que me fascinou ao ponto de escolher ser historiador. E segundo porque, enquanto historiador, passei a questionar aqueles elementos que pareciam tão naturais nos jogos, como a lógica da colonização e as representações dos colonizadores e nativos presentes nestes jogos.

O NOVO MUNDO EM PIXELS: OS JOGOS ELETRÔNICOS