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PARTE I Os circuitos políticos da Corte

2.2. As resistências cortesãs

Uma das primeiras reações da aristocracia aparece em um texto escrito em 1799. Tratava-se de uma Dissertação a favor da Monarquia dedicada ao príncipe D. João, na qual seu autor, o marquês de Penalva, elaborou argumentos em defesa de um sistema político legitimamente baseado na distinção e, portanto, em sua principal classe: a nobreza. Gentil- homem da câmara da rainha D. Maria I e de D. João, Fernando Teles da Silva Caminha e Meneses (1754-1818), deputado da Junta dos Três Estados, conselheiro de guerra e censor da Mesa do Desembargo do Paço, era o terceiro de sua família a ostentar o título de marquês de Penalva. Homem de grande erudição, latinista e escritor, era membro da Academia Real da História Portuguesa e de uma "linhagem preclaríssima de príncipes, de soldados, de diplomatas e escritores".33

Caetano Beirão, no prefácio que escreveu para apresentar a terceira edição da Dissertação em 1942, caracterizou a obra do marquês de Penalva como uma erudita defesa da nobreza contra o ideário crítico das Luzes do século XVIII. Defensor da monarquia, enxergou nos escritos de Penalva um combate ao "filosofismo subversivo dos enciclopedistas". Comparando o esforço do fidalgo com o trabalho realizado pelo intendente de polícia Pina Manique, afirmou:

Ao que Pina Manique pretendeu fazer frente com a sua polícia, aparece-nos o Marquês de Penalva a opor-se com a dialética da sua erudição. Se ideias não se combatem à baioneta, mas só se pulverizam com ideias, a obra do Marquês de Penalva [...] é um dos mais altos monumentos que, nesse fim de século trágico, se

erguem na Europa em prol da Verdade ameaçada.34

Parte dos escritos do marquês de Penalva reflete o assombro com o processo revolucionário francês. Em suas primeiras páginas denuncia o sacrifício de milhões de

32

Cf. Oswaldo Munteal Filho. "O príncipe D. João e o mundo de Queluz. Despotismo ministerial, tensões estamentais e sacralização do Estado na crise do Antigo Regime português". In Anais do Museu Histórico

Nacional, 31, 1999, pp. 9-34, p. 10. 33

Marquês de Penalva. Dissertação a favor da monarquia. Nova edição com um estudo de Caetano Beirão. Porto: Edições Gama, 1942, p. XVIII.

homens para a ascensão de uma pequena classe, a dos filósofos, cujos escritos corromperam o que havia de mais sagrado na sociedade: a religião e os sistemas políticos.35 O surgimento do republicanismo e a queda da monarquia na França representavam um risco para as sociedades que desrespeitavam seus reis, a Igreja e a hierarquia. Lamentava ter de admitir que “estava guardado para este século de trevas (digam o que quiserem da sua Iluminação), estava guardado para nossos tristes dias o sistema da impiedade e da anarquia”.36

Frente ao que identificava como barbárie — em suas palavras o processo revolucionário francês assemelhava-se às circunstâncias do homem em seu estado de natureza —, defendia uma concepção de Estado similar a de Thomas Hobbes em Leviatã (1651): “os homens desejam a todos segurança, sossego [...] se por algum tempo se enganam, ou são enganadores, transtornam a ordem, não tanto para melhorar a sorte pública, como para fins de seus particulares.”37 Na contramão do Iluminismo, Penalva defendia a ideia da “desigualdade natural”, revelando seu conhecimento de um dos principais debates da época sobre as noções de igualdade, liberdade e direitos do cidadão. No capítulo XVI, no qual defende o princípio da "desigualdade civil e natural", afirmou contraditoriamente que a "ninguém est[avam] fechados os livros da Nobreza, onde todos podem ver seus nomes escritos, se o merecer o uso dos seus talentos, ou a força do seu braço, ou o sacrifício dos seus bens [...]". No entanto, mais adiante seus argumentos tornam-se mais claros e passa-se a entender que, mediante aos diferentes dotes individuais, a desigualdade passa a ser também uma consequência natural, impedindo o acesso às distinções.

A diferença de homem a homem pode considerar-se ou na ordem natural, ou na ordem civil; na primeira os dotes particulares de cada um, sendo desiguais em si e no seu uso, veio a ser impraticável empecer esta distinção; na ordem civil, como se tratava de premiar estes mesmos dotes e autorizar estas distinções, foi necessária consequência a desigualdade, sem a qual haveria um caos político, à semelhança do outro, de que o Mundo físico saiu, quando houve separação e ordem nos elementos. Falando pois do homem no estado natural, nascer desigual em forças físicas e morais e não ser mais bem reputado, é impossível; fazer maior serviço à sociedade e não ser mais benquisto, é impossível: o assassino e o generoso não são igualmente tratados; o valente e o fraco não são igualmente temidos.38

Além dos tumultos revolucionários, o marquês de Penalva advertia para o desrespeito dos costumes portugueses. Dedicou os cinco capítulos finais para relembrar os feitos e a história de Portugal, relembrando seus momentos mais marcantes: a fundação da monarquia portuguesa, os descobrimentos, a restauração e a participação das cortes em todos

35 Ibidem, p. 9. 36 Ibidem, p. 6. 37 Ibidem, p. 24. 38 Ibidem, p. 58-60.

esses momentos. Exercendo um papel consultivo de acordo com a convocação dos reis, os conselhos e as cortes votaram sempre com

[...] tal franqueza, e amor verdadeiro aos seus Reis, que podem servir de modelo e inveja a outros povos. Esta nobre educação era ajudada pelos honrados elogios que os nossos príncipes faziam aos vassalos, que mais se distinguiam. O senhor rei D. Manuel, despachando o primeiro conde de Tarouca, notou entre os seus serviços pelo maior, ter-lhe sempre falado a verdade, ainda em coisa de seu desprazer. O senhor rei D. João II, acabada a célebre batalha de Toro, disse à mesa diante de muitos que o tinham acompanhado: Amigos, grande coisa foi para mim vestir hoje

as armas, porque conheci bem o modo por que fui servido. O senhor rei D. João IV

nosso restaurador, estando já no leito da morte, chamou a nobreza, o clero e o povo, agradeceu-lhes a defesa do Estado, e até com a maior serenidade de ânimo dispôs os planos para a futura campanha.39

Penalva surpreenderia com outra dissertação, dessa vez sobre as "obrigações de um vassalo nobre ao seu rei". O texto enquadra-se no debate caloroso da época sobre quais eram as "classes mais úteis ao Estado", reforçando-se evidentemente a posição da "antiga nobreza", pelos seus grandes serviços prestados ao reino. Salta desses escritos uma noção de que a ordem monárquica só estava garantida com a conservação dos privilégios nobiliárquicos, atacados pelos que pretendiam "conseguir as honras, sem trabalho de as merecer".40 Lidos na Academia Real das Ciências de Lisboa na presença do príncipe regente D. João, as dissertações do marquês de Penalva funcionavam como lições ao jovem príncipe que, despreparado para os deveres governativos, precisava ser educado por aqueles homens que há séculos estiveram ao lado dos monarcas portugueses, servindo com lealdade e desinteresse.

O temor provocado por uma regência forçada pelos ministros de Estado somado aos desdobramentos da Revolução Francesa daria o tom das preocupações do 6º conde de Vila Verde e 5º marquês de Angeja, D. Pedro José de Noronha. Coronel do Regimento de Cavalaria do Cais era também, assim como o marquês de Penalva, gentil-homem da câmara de D. Maria I. Em um parecer que escreveu a pedido do príncipe sobre o Alvará de 1799 que oficializava a regência, concordava que o documento era claro e a matéria tratada de muita importância, mas não deixou de assinalar que uma "mudança de governo" causava com frequência "grande perturbação", considerando a regência com os cinco conselheiros "[...] arriscada e nas circunstâncias atuais perigosíssimas, temos visto e vamos continuando a ver os funestos efeitos que têm produzidos em França a continua alteração que tem havido no governo, e isto nos deve acautelar [...] um conselho privado composto de cinco indivíduos faz lembrar o diretório...". Continuava sua crítica lembrando que não se estava em um caso de

39 Ibidem, p. 120-121.

menoridade e que, portanto, a ideia de ter cinco conselheiros, quatro deles ministros de Estado, não era conveniente, mas sim uma demonstração de autoritarismo tal como vivia a França sob o domínio do Diretório.41

Em conclusão, afirmava ainda "que os secretários de Estado têm subido a tal graduação e têm abusado tão escandalosamente do poder que [...] se necessita de um arbítrio que possa atalhar e embaraçar um mal tão pernicioso". Como solução sugeria alterar a forma de tratamento dada aos secretários-conselheiros de Estado:

Pelo que pertence à graduação dos Secretários de Estado conservar-lhe-ia o que lhe deu o Senhor rei D. João V porque tirando-lhe o tratamento de Excelência e a voto se priva Vossa Alteza Real de dar este lugar a pessoas de qualidade ainda que tenham grande merecimento porque não lhe convirá aceitá-lo ficando um pouco maior graduação que a de Secretario de um Tribunal, e conservando-lhe a preeminência em que se acham de Conselheiros de Estado natos, Grã-cruzes e até irmãos de Santa Engrácia com preferência fica Vossa Alteza Real ligado a não fazer Secretários senão pessoas da mais alta nobreza porque só a estas se costumam fazer estas distinções, que deixam de o ser quando se dão a pessoas de baixa esfera.42

O auge da reação da primeira nobreza foi a organização em 1802 de um "clube aristocrático" pelo 2º marquês de Alorna, D. Pedro José de Almeida Portugal. Segundo ele, um dos objetivos dessa agremiação era "reestabelecer as Casas de conversação que houve sempre na nobreza, e de fomentar nelas a amizade que é natural que haja entre parentes". Sua reação tinha como alvo a franco-maçonaria e a sua preocupação em ver nobres com grandeza, envolvidos com a seita. Era o caso, citava exemplo, dos integrantes da Casa dos condes de Vale de Reis, de onde era preciso recuperar o "marquês de Loulé, que se tem afastado de todos nós, e que anda acompanhado de gente que ninguém conhece".43

Os argumentos de D. Pedro de Almeida voltar-se-iam ainda contra os adeptos do "pombalismo" e a distribuição desordenada das honras e distinções do reino; para ele, a principal razão para a crise política vivida pela Coroa portuguesa na virada do século XVIII para o XIX. Filho de D. João de Almeida Portugal, 2º marquês de Alorna e de sua mulher D. Leonor de Lorena e Távora, D. Pedro de Almeida assistiu ainda criança à punição de sua família, implicada no processo de regicídio contra o rei D. José em 1759: seus avós e tios

41 ANRJ. Negócios de Portugal. Correspondência política do conde de Vila Verde (1799-1806). Caixa 712, pct.

03.

42

Ibidem.

43

Ângelo Pereira. D. João VI Príncipe e rei. Últimos anos dum reinado tormentoso. Vol. 4. Lisboa. Empresa Nacional de Publicidade, 1958, pp. 17-23. Os condes de Vale de Reis passaram ao título de marqueses de Loulé a partir de 1799, ano de oficialização da regência de D. João. Ao que parece, o envolvimento com a maçonaria não afetou a inserção social e política da família, pois o filho do 1º. marquês de Loulé, Nuno José Severo de Mendonça Rolim de Moura Barreto casou-se com a filha do príncipe regente e de D. Carlota Joaquina, a infanta D. Ana de Jesus Maria.

maternos foram executados, seu pai encarcerado no Forte da Junqueira e sua mãe e irmãs enviadas ao Convento de Chelas. Desde os cinco anos de idade, D. Pedro de Almeida viveu sob o cuidado de criados, voltando a Corte apenas em 1777, após o perdão concedido por D. Maria I.44

A agremiação de Alorna provocou reação na Corte e, entre os membros do governo, D. Rodrigo de Souza Coutinho expôs sua opinião em carta ao prior dos Anjos, revelando inclusive o pouco crédito que o marquês gozava junto à Corte. Dizia o ministro de Estado ser digno de atenção o fato de "haver o marquês ousado fazer uma Sociedade sem o consentimento de Vossa Alteza Real", pois "nada é tão perigoso na monarquia como Sociedades de Classes que se querem arrogar direitos que não tem, e que certamente não são menos perigosas do que as Sociedades Secretas dos Pedreiros livres". Considerava a iniciativa de Alorna tão descabida que seu conselho era tomar providências para "extirpar este mal", sugerindo "tirar das mãos de doidos e mal-intencionados a Força armada, pois que da mesma podem abusar, quando menos se espera".45 D. Rodrigo referia-se às responsabilidades militares de Alorna que era marechal de campo e chefe da Legião de Tropas Ligeiras.46

No mesmo ano em que o marquês de Alorna anunciou a organização do "clube aristocrático", circulou pela Corte uma "Memória sobre o governo", de autoria desconhecida, cujo argumento central ligava-se à distribuição desordenada das honras e distinções do reino, situação que, para o autor do documento, era a causa para a crise política vivida pela Coroa portuguesa.47 Atribuído ao marquês de Alorna, o texto faz uma defesa da antiga "economia" na concessão das honras e privilégios, criticando a chamada "inflação de títulos" ocorrida, sobretudo após 1792, ou seja, no momento em que D. João passou a assinar os despachos em

44

Graça & J. S. da Silva Dias. Os primórdios da maçonaria em Portugal. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1980, vol. 1, t. II, p. 441-444.

45 Ângelo Pereira, op. cit., Vol. 4, pp. 22-23. 46

Em 1799, a pedido de D. João, o marquês de Alorna escreveu um plano para a reorganização do Exército intitulado Reflexões sobre o sistema econômico do Exército, publicado em Manuel Amaral (org.). A luta política

em Portugal nos finais do Antigo Regime: os documentos de crítica à reforma do Exército de 1803. Vol. 2.

Lisboa: Tribuna da História, 2010.

47 A historiografia portuguesa costuma atribuir a "Memória sobre o governo" ao conde de São Lourenço, baseada

na publicação de um pequeno trecho deste texto feita por Camilo Castelo Branco em "Dous preconceitos". In

Noites de Insomnia. Oferecidas a quem não pode dormir por Camilo Castelo Branco. (Antologias). Porto:

Livraria Internacional Ernesto Chardron, 1874. Fevereiro, no 2, pp. 127-134. Utilizamos aqui uma cópia da "Memória" existente no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), de 20 de março de 1803, cuja atribuição é feita ao marquês de Alorna. Preferimos essa versão por duas razões: a memória encontra-se na íntegra e aproxima-se do ano de circulação do texto (1802), o que nos faz pensar que à época os contemporâneos acreditassem ter sido escrita por ele. ANRJ. Diversos Códices. "Memória sobre o governo", códice 807, vol. 05. Entre os historiadores que atribuem a autoria ao conde de São Lourenço, Nuno Gonçalo Monteiro. O crepúsculo

dos grandes. A casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional. Casa

nome da rainha sua mãe. A situação da abertura ao acesso às distinções nobiliárquicas chegava, na opinião de Alorna, ao absurdo:

Com efeito, tem-se vulgarizado as honras [...]. Na divisão das três ordens militares, deram-se tantos hábitos de Santiago, que apesar de ser uma ordem respeitável, já ninguém a quer. Concedeu-se foro de fidalgo, a quem no empréstimo real entrasse com porções avultadas [...]. Os oficiais da secretaria, cujo número tem crescido tanto, têm o hábito de Cristo no primeiro ano de serviço e o foro de escudeiro no décimo [...]. Esta quantidade de tarifas, em muito poucos anos, reduzem os três milhões de habitantes, a três milhões de nobres. Neste caso, a maior distinção que pode haver é não ser nobre; e o meio de a conseguir é não servindo o Estado de modo algum. Parecerá isto um paradoxo, mas a experiência já vai mostrando que o não é [...].48

A origem desse “paradoxo” podia ser encontrada no trabalho que “há cinquenta anos” realizava-se em Portugal: o afastamento da alta nobreza de suas tradicionais funções de Estado. Marcava nas reformas pombalinas de meados do século XVIII, o momento das principais mudanças nos critérios para o ingresso nos principais ofícios régios. Criticava o acesso dos comerciantes, que emprestavam "porções avultadas" aos cofres régios, ao foro de fidalgo. O fim das distinções de sangue afastou do “trono português a raça daqueles homens que tanto serviram o senhor Rei D. João I”, autorizando a ocupação dos “cargos da primeira importância”, por quem não tinha “raízes fundas no Estado, nem tanta obrigação de lhe ser fiel, como os da primeira classe”.49

O orgulho de ter “nascido com obrigações” inflava a ira do marquês contra aqueles os quais denominou de “enobrecidos”. Percebia com nitidez a ocorrência de uma nova concepção de nobreza, na qual os méritos pelos serviços prestados ao rei passavam a ter o mesmo valor da linhagem:

A nobreza [...] alcançava-se passo-a-passo. E cada grau de elevação recaía sobre fato marcado com o cunho da utilidade do Estado [...], houve a cautela de conservar os nobres sempre na dependência e necessidade de servir, sendo as concessões honoríficas sempre pessoais [...] não bastava uma vida para a correr e eram precisas muitas gerações antes que uma família chegasse as maiores distinções.50

Na visão de um integrante da “primeira classe” do final do século XVIII, a concepção predominante da ordem social portuguesa ainda derivava da tradição trinitária medieval: clero, nobreza e povo.51 Desse referencial originário decorrem consequências,

48 ANRJ. "Memória sobre o governo". 49 Ibidem.

50

Ibidem.

51 Sobre o paradigma corporativo, herança do pensamento social e político medieval, António Manuel Hespanha

sobretudo de caráter jurídico e simbólico, que configuraram a própria estrutura da sociedade Moderna. A principal delas era a identificação da nobreza como uma categoria, a qual se ligavam a honra, as distinções e os privilégios, ideais conformadores de um ethos que servia de modelo de comportamento aos demais grupos sociais.52

Ratificada juridicamente, a ordenação trinitária medieval conferia ao Antigo Regime uma imagem de cristalização dos seus estamentos e de suas respectivas funções sociais, escondendo uma ampla diversidade de classificações e de sobreposições de hierarquias dentro de cada um dos estados (clero, nobreza, povo).53 Em Portugal, e de modo similar em toda a Europa, a nobreza no século XV era identificada de acordo com as funções que desempenhava: os que combatem, os que possuem poderes jurisdicionais, os que recebem postos do rei, entre outros. No final da Idade Média, o termo mais comum para designar as categorias nobiliárquicas era “fidalgo”, sempre associado à defesa militar das três ordens. A distinção legal fazia-se entre privilegiados e peões e, no plano das representações sociais, entre a fidalguia e os demais.54

Até o século XIX, a categoria “nobreza” afasta-se do sentido originário de função social, passando cada vez mais a se identificar com a noção de “qualidade do nascimento”. Luiz da Silva Pereira Oliveira, em 1806, entendia ser a nobreza “uma certa dignidade derivada dos pais, ou da concessão dos príncipes”, distinguindo uma “nobreza natural” derivada da “qualidade de nascimento”, de uma outra nobreza que podia ser adquirida por vias distintas, como as armas, as letras, a agricultura e o comércio.55 Em Portugal, durante toda a Época Moderna, houve uma supervalorização da linhagem atrelada ao simbolismo cavalheiresco militar e à limpeza de sangue, sobretudo como discurso legitimador da “primeira nobreza da Corte”.

No imaginário nobiliárquico, a “nobreza natural” emanava da própria ordem da criação divina. António Manuel Hespanha, citando Aristóteles, afirma que essa nobreza era derivada da virtude que tornava alguém apto a dominar e, por essa razão, a “nobreza natural é

52 Utilizo o termo “categoria” com o mesmo sentido atribuído por António Manuel Hespanha: realçar o caráter

orgânico e arrumado dos quadros mentais do grupo. Cf.: António Manuel Hespanha. “Categorias. Uma reflexão sobre a prática de classificar”. In Lisboa: Análise Social, vol. XXXVIII, (168), 2003, 823-840. Sobre a noção de “ethos”, Nuno Gonçalo Monteiro. "O ‘Ethos’ nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império

e imaginário social". In Almanack Braziliense, no 2, Nov. 2005, pp. 4-20. Disponível em:

http://www.almanack.usp.br/PDFS/2/02_forum_1.pdf. Acesso: 12/01/2010.

53

António Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier. “A representação da sociedade...”, p. 10.

54 António Manuel Hespanha. "A nobreza nos tratados jurídicos dos séculos XVI a XVIII". In Penélope – fazer e desfazer a história. Lisboa: Edições Cosmos, n. 12, 1993, pp. 27-42; A. H. de Oliveira Marques. “Nobreza –

época medieval”. In Joel Serrão. Dicionário de História de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editoriais, s. d., p. 357.