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PARTE I Os circuitos políticos da Corte

1.2. Degustar e conversar: os convidados do ministro

1.2.3. Os ministros plenipotenciários

Outro grupo de convidados era formado pelos representantes diplomáticos de outros Estados europeus. Como afirmou Jorge Borges de Macedo, o último quartel do século XVIII assistiu à consolidação de duas áreas de hegemonia representadas pela pressão marítima (Grã- Bretanha) e pela pressão continental (França). Nesse quadro, a posse de alguns recursos estratégicos mudou fortemente a relação entre os Estados: as novas descobertas tecnológicas permitiram o aumento do potencial marítimo e o alargamento das zonas de influência; o aumento dos meios de expressão da opinião pública; e dos meios econômicos, especialmente o peso da Revolução Industrial inglesa e a importância de garantir zonas de mercado.71 Em evidente desvantagem, restava a Portugal a tentativa de manter a todo custo sua fiel política de neutralidade. As listas dos jantares não escondem a predileção do anfitrião pela aliança com a Grã-Bretanha, não se estranhando, desse modo, a ausência de um representante francês.72

Responsável por manter a pressão inglesa junto ao gabinete de D. João, Robert Walpole esteve presente em todas as cerimônias em casa de D. Rodrigo, acompanhado dos generais ingleses Goltz, Frezer e Pultney. Desde 1797, quando Portugal assinou o Tratado de Paris, intermediado por Antônio de Araújo de Azevedo, a Grã-Bretanha apertou o cerco, alegando violação do Tratado de Methuen (1703). As queixas de Londres, feitas por Lorde Grenville, chegaram ao ouvido de Walpole que, em tom de ameaça, cobrou de Luís Pinto de Souza o "desautorizar inteiramente o Tratado". A situação de fato era delicada: ou Portugal revia as cláusulas do Tratado de 1703, ou suportava as consequências de uma reação britânica

70 Andrée Mansuy-Diniz Silva. Portrait d'un homme d'état…, vol. 2, p. 13.

71 Jorge Borges de Macedo. História diplomática portuguesa. Correntes e linhas de força. Estudo de Geopolítica. Lisboa: Edição da Revista Nação e Defesa, s. d., pp. 296-297. Cf. especialmente o capítulo VI, "O

confronto das hegemonias, 1767-1815", pp. 295-387.

que mantinha uma tropa de oito mil homens alojados na fortaleza da Barra e a esquadra de Lorde São Vicente nos mares.73

A postura pró-inglesa de D. Rodrigo seguia certamente as linhas de defesa colocadas em prática por Luís Pinto, baseadas na crença de que a aliança com os britânicos era importante para a prosperidade de Portugal e da resistência a qualquer acordo com a França e Espanha que pudesse provocar um clima de hostilidades contra Portugal. Princípios que se tornaram certezas a partir de 1797, quando as sucessivas vitórias do Exército de Napoleão Bonaparte deixavam cada vez mais tropas livres para o combate em outras partes da Europa.74 Luís Pinto mostrava-se convicto de que "a menor infração que fizéssemos àqueles [tratados] que temos com a Grã-Bretanha nos atrairia desta Potência uma guerra certa e inevitável"75, situação catastrófica que deixaria "exposta esta Capital e as suas Colônias à sua última ruína, o reino todo a uma fome e o povo por consequência a uma revolução, que a paixão dominante do mesmo povo a favor da Nação Inglesa fará mais arriscada e temível".76

O clima de tensões impulsionava Portugal para acordos que pudessem retirar a Grã- Bretanha do isolamento, mantendo alianças contrárias ao cerco franco-espanhol. Durante o ano de 1798, quando a campanha do Egito ocupou as atenções da França, os ingleses se uniram a Rússia, Nápoles, Áustria e ao Império Turco. Essa movimentação diplomática reflete-se nos convites para os jantares, como pode ser inferido da presença do trio formado pelos ministros da Áustria, o cavaleiro de Lebzeltern; da Prússia, o barão de Schladen e da Rússia, barão de Maltitz, potências que, em conjuntura posterior, formariam a chamada Santa Aliança no âmbito do Congresso de Viena (1815). Somavam-se ao grupo o conde de Warnstedt, representante da Dinamarca; William Loughton Smith, dos Estados Unidos da América; Gaspar Domingos Irasca, da Sardenha; barão de Rchausen, da Suécia; Nicolau Luiz Pignatelli, de Nápoles; e o núncio apostólico Bartolomeo Pacca. A presença de D. Bernardino Velasco, o duque de Frias, ministro plenipotenciário da Espanha, concluía o desenho das relações internacionais do período: o papel mediador da Espanha, interessada em pressionar a Corte de Lisboa para um acordo com a França e evitar uma guerra dentro do seu território.77

O que esse tabuleiro diplomático revela? Respostas a essa pergunta precisam considerar algumas peculiaridades das peças do jogo, uma vez que, cada lado comporta

73

Cf. Valentim Alexandre, op. cit., pp. 112-113.

74

Ibidem, p. 108.

75 Despacho de 7 de Outubro de 1797 a Araújo de Azevedo. In Júlio Firmino Júdice Biker. Suplemento à Coleção de Tratados, 22 vols. Lisboa, 1872-1879. Vol. XI, 2a. parte, pp. 502-3.

76

Despacho de 3 de Novembro de 1797 a Araújo de Azevedo. In Júlio Firmino Júdice Biker, op. cit., p. 533.

77 Sobre o posicionamento diplomático da Espanha e Portugal frente às pressões de França e Inlgaterra, cf.

posicionamentos políticos distintos. Muitas delas, por exemplo, ocupam as casas da tradição absolutista: seu peso estava bem representado pela presença dos ministros plenipotenciários da Suécia, Dinamarca, Nápoles, Sardenha e Roma, bem como das monarquias do chamado Leste europeu – Áustria, Prússia e Rússia. O clássico estudo de Perry Anderson ajuda a situar aspectos interessantes de tais realidades políticas, particularmente da atenção que seus monarcas deram a implementação de reformas ao longo do século XVIII.78

Uma das características centrais dessas formas de absolutismos do norte e do leste europeu foi a sistematização de forças militares que pudessem conter as ameaças externas. Esse aspecto evidencia-se, por exemplo, no caso do absolutismo sueco, cuja organização no século XVII, pode ser vinculada à ameaça de dominação dinamarquesa.79 Seus índices de produção e comercialização agrícola eram um dos mais reduzidos do continente, mas seus principais recursos passaram a provir cada vez mais da extração de minérios, sobretudo dos depósitos de ferro e cobre de Bergslagen, riquezas que, segundo Perry Anderson, podem "ser comparadas à prata e ao ouro da Espanha, quanto ao seu impacto sobre o absolutismo local".80 Além de representarem riquezas líquidas, o cobre e o minério de ferro constituíam matéria- prima para a fabricação de artefatos bélicos e foi por essa razão que a Suécia transformou-se, no século XVII, em um dos maiores complexos de produção de armamentos na Europa.81

Esse poderio militar sustentou o avanço imperial sueco que, com o apoio da França, direcionou suas ações na tentativa de controlar o avanço da dinastia dos Habsburgo entre os estados alemães. Mas o impacto da chamada Guerra dos 30 anos verificou-se especialmente na Polônia, Rússia, Prússia e Áustria, regiões, nas quais a nobreza precisou "adotar uma máquina de Estado identicamente centralizada para poder sobreviver".82 Nessa parte da Europa, segundo Anderson, o absolutismo foi determinado pelas coações impostas pelo sistema político internacional, "o preço de sua sobrevivência numa civilização marcada pela incessante guerra territorial; o desenvolvimento desigual do feudalismo forçou-as a confrontar-se com as estruturas políticas do Ocidente antes mesmo de terem atingido um estágio semelhante de transição econômica para o capitalismo".83

78 Perry Anderson. Linhagens do Estado Absolutista. 3ª. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. De forma mais

sintética, mas não menos esclarecedora, o estudo de Francisco J. C. Falcon apresenta um retrato das formas absolutistas ilustradas presentes em diversos estados europeus. Cf. ____. Despotismo esclarecido. São Paulo: Editora Ática,1986, especialmente o capítulo 6 "Os despotismos esclarecidos em conjunto", pp. 56-83.

79 Perry Anderson, op. cit., pp. 180 e ss. 80 Ibidem, p. 183.

81

Ibidem.

82 Ibidem, p. 198. Cf. especialmente o capítulo "O absolutismo no Leste", pp. 195-220. 83 Ibidem, p. 202.

Observador dos sistemas políticos europeus, D. Rodrigo provavelmente tomou conhecimento de outras realidades que escapavam aos principais modelos políticos europeus como Londres, Paris e Madri. Os grandes centros de estudos mineralógicos do século XVIII, por exemplo, estavam localizados na Suécia e nos reinos germânicos, como Freiberg e Saxônia, para onde foram enviados José Bonifácio e Manuel Ferreira da Câmara, como já fora dito. As reformas empreendidas nessas regiões, influenciadas também pelo Iluminismo, concentravam-se na modernização das instituições administrativas e jurídicas, na introdução de novas formas de cobrança de tributos, na abolição de barreiras alfandegárias, com objetivos evidentes de ampliar as receitas fazendárias.84 A Corte do Piemonte em Turim, localizada ao norte da península Itálica, recebeu influências de tais reformas, incorporadas no governo de Vítor Amadeu II.85

Por fim, não se pode deixar de notar a importância da presença dos representantes de Sardenha e de Nápoles, pois, durante sua permanência na Corte do Piemonte, D. Rodrigo nutriu um interesse peculiar sobre as reformas empreendidas nesses reinos.86 A região do Piemonte tinha situação bastante peculiar dentre os Estados italianos, pois, desde 1460, era o único independente. Por volta de 1530, a falta de pagamento de subsídios que pudessem manter um exército permanente permitiu a ocupação francesa e espanhola sobre o território. Sob o domínio Valois, absorveu inovações administrativas, judiciais e monetárias, que foram mantidas mesmo depois da expulsão dos franceses, permitindo ao Piemonte caminhar "rapidamente em direção a uma precoce centralização principesca”. O modelo político do absolutismo francês foi sempre tomado como exemplo, sendo aprimorado no século XVIII, com a instalação de uma “severa administração copiada, a de Colbert”.87

Muitas das medidas tomadas por Vittorio Emanuele II, como a atenção conferida à diplomacia e ao aparelho militar, a extinção das imunidades do clero, a subordinação da Igreja ao Estado, a adoção de um mercantilismo protecionista, a promoção de manufaturas de exportação e a construção de uma grande capital em Turim, expressavam um reformismo típico dos Setecentos europeu. Segundo Perry Anderson,

84 Especialmente na Áustria, onde foram impostas taxações à aristocracia e ao clero. Cf. Perry Anderson. Linhagens...cit., p. 318.

85 Nívia Pombo Cirne dos Santos. "Um turista na Corte do Piemonte: dom Rodrigo de Souza Coutinho e o

Iluminismo italiano e francês (1778-1790)". In Varia História, Belo Horizonte, vol. 25, nº 41: p.213-225, jan/jun 2009.

86

Durante a sua permanência na Corte de Turim, D. Rodrigo escreveu algumas reflexões importantes acerca das possibilidades de se animar o comércio entre Portugal e a península itálica. Entre seus textos mais importantes, encontra-se a "Relação política da história e estado da Real Casa de Sabóia", de 1791, cujo códice original integra a Coleção Linhares da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Cf. Andrée Mansuy-Diniz Silva. Portrait

d'um homme... cit, vol. 1, pp. 105-132. Ver também: Nívia Pombo Cirne dos Santos. "Um turista...". 87 Perry Anderson, op. cit., p. 171.

[...] o absolutismo piemontês foi, portanto um dos mais coerentes e bem-sucedidos de sua época. Como as duas outras experiências setentrionais de um absolutismo forte e modernizado em pequenos Estados — o regime de Tanucci, em Nápoles e o de Pombal, em Portugal — esteve cronologicamente em atraso: o auge de sua criatividade ocorreu no século XVIII e não no século XVII.88

Em outras cortes italianas procediam-se reformas ilustradas, e muitos desses aspectos reformistas marcaram a conduta político-econômica portuguesa. O Iluminismo italiano influenciou profundamente a península ibérica, especialmente por acomodar em seu ideário o pensamento católico, estando entre seus expoentes Gianbattista Vico (1668-1774), Ludovico Antonio Muratori (1672-1750), Cesare Beccaria (1738-1794), Antonio Genovesi (1712-1769) e Gian Vincenzo Gravina (1664-1718).89A "Relação política da história e estado da Real Casa de Saboia", escrita por D. Rodrigo de Sousa Coutinho em 1791, confirma a intenção de aplicar princípios semelhantes em Portugal que, em sua opinião, apenas desse modo “é que se pode formar um juízo fundado do que é esperável da sorte de um país para o futuro e da maior ou menor influência na Balança Geral da Europa”.90

Voltando à metáfora do tabuleiro de xadrez, o olhar agora se direciona para outras casas e novas tradições: o que D. Rodrigo faz, por exemplo, com um representante de uma República federalista em sua casa? São escassas os escritos do ministro do Ultramar sobre o processo de independência das treze colônias da América, mas em uma delas, registrada em seu Discurso sobre a mendicidade (1787 ou 1788), mostra-se muito significativa. Inspirado na leitura da obra Notes on the State of Virginia (1785), de Thomas Jefferson, D. Rodrigo revelou seu apreço pela "potência independente na América", na qual era possível:

[...] ver o sistema original da imortal Isabel Rainha de Inglaterra, sem a viciosa corrupção que depois o destruiu em Inglaterra. É digno de toda a meditação, e não creio que se me poderá atribuir a culpa o ter imaginado uma administração muito análoga, digna de se propor ao país em que nasci, que certamente colheria da sua adoção não insignificante benefício.91

Sua análise estava inscrita no debate do século XVIII, acerca do papel do Novo Mundo que, livre dos "vícios" e "corrupções", poderia servir de exemplo para as reformas

88

Ibidem, p. 172.

89

Francisco J. C. Falcon. Despotismo esclarecido..., p. 60.

90 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (doravante BNRJ). D. Rodrigo de Sousa Coutinho. "Relação política da

história e estado da Real Casa de Sabóia". Coleção Linhares, I-14, 4, 2.

91

D. Rodrigo de Sousa Coutinho. “Discurso sobre a mendicidade”. In Andrée Mansuy-Diniz Silva (dir.). D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Textos políticos, econômicos e financeiros. (1783-1811). Lisboa: Banco de Portugal, 1993, t. I, p. 218.

necessárias ao Velho Mundo.92 Para ver de perto o sistema administrativo norte-americano, D. Rodrigo enviou em 1798 um jovem luso-brasílico, Hipólito José da Costa, para conhecer os métodos de cultivos de espécimes agrícolas nos Estados Unidos, observações que registrou em seu Diário da minha viagem para Filadélfia.93 De lá, além dos ofícios enviados às autoridades portuguesas, remeteu a D. Rodrigo "duas coleções de gazetas das que pretendem melhor informação: a Aurora, que é o mais bem conduzido papel do partido da oposição, e a Gazette of the United States, que se diz um jornal do governo".94

O interesse pelos Estados Unidos era comum aos letrados da América portuguesa como os irmãos Andrada, Antonio Carlos, Martim Francisco e José Bonifácio, Frei Veloso, Nogueira da Gama, José Feliciano Fernandes Pinheiro e Caldeira Brant. Não é demais lembrar que o Abade Correia da Serra, um dos fundadores da Academia das Ciências de Lisboa, gozava de grande prestígio nos círculos científicos norte-americanos, muito admirado, inclusive por Thomas Jefferson.95