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PARTE I Os circuitos políticos da Corte

2.1. O retrato de D João

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor,

[...] um homem por nome Manuel José Vidigal [...] me ofereceu o retrato de Sua Alteza Real, o Príncipe Nosso Senhor, que com esta envio a Vossa Excelência. Esta pintura que em nada favorece ao original, ainda que eu julgo fica melhor ao original ser melhor que o retrato, tem as particularidades seguintes: todo o painel é composto de pedaços de madeira embutida; os pedaços são de certa madeira de qualidade, que pintados fora, ou antes de embutidos, as tintas os repassaram de forma, que raspando Vossa Excelência em qualquer parte do painel com um canivete, nunca jamais ofenderá o colorido sem extinguir o pedaço embutido; esta perfeição me causou admiração, e por isso peço a Vossa Excelência o queira por na presença de Sua Alteza Real, beijando-lhe a mão da minha parte. Deus Guarde a Vossa Excelência. Vila Rica 20 de Julho de 1799.1

Para os que viviam em colônias, a imagem do rei era emblemática. É verdade que desde os governos filipinos, entre os séculos XVI e XVII, a monarquia procurou divulgar imagens de seus reis, bem como outras formas de fazer conhecer os símbolos do poder régio, sobretudo entre os súditos que viviam no mundo ultramarino. A difusão da imprensa e das técnicas de reprodução de gravuras em cobre ou em madeira serviu à cultura barroca e a sua dimensão propagandística de culto e devoção pelo império.2 Foi provavelmente em uma dessas gravuras que o colono Manuel José Vidigal inspirou-se para, do interior de Minas Gerais, compor um retrato de madeira digno de apresentar ao príncipe regente D. João (1767- 1826).3

Não se sabe do paradeiro da obra, nem mesmo se de fato chegou às vistas da realeza, mas a curiosa descrição do quadro feita pelo governador Bernardo José de Lorena incita a imaginação a fazer uma analogia com o Império português: composto de partes distintas como os "pedaços de madeira embutida", posto que de boa "qualidade", como eram as mercadorias que fluíam dos portos da América, da África e da Ásia para a metrópole, suas peças eram coloridas, marcando as distinções das múltiplas identidades coloniais. Para os que olhavam de

1 Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU). Minas Gerais (avulsos). Caixa 149, D. 11. Carta de Bernardo

José de Lorena, governador de Minas, para D. Rodrigo de Souza Coutinho, enviando um retrato do príncipe em madeira embutida. Vila Rica, 20, de Julho de 1799.

2 Sobre a circulação de gravuras e impressos para o culto da memória da monarquia, cf. o estudo de Ana Paula

Torres Megiani. O rei ausente. Festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004, especialmente o capítulo "A festa em papel e tinta: memória das entradas régias", pp. 189-224.

3 A técnica utilizada para a composição do quadro é um mosaico, também chamada de "embutido" pelos

portugueses, tal como aparece na descrição feita pelo governador Lorena. O emprego da madeira nesse tipo de retrato é bem raro, sendo o mais comum o uso da pedra, como pode ser visto nos retratos bizantinos e, em Portugal, em um retábulo de D. João V afixado na Igreja de São Roque em Lisboa. Agradeço a gentileza dessa explicação à professora Márcia Almada, da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais.

longe, as partes estavam perfeitamente unidas, dignas de "causar admiração". Aproximando a perspectiva não seria difícil notar que os "pedaços" foram "pintados fora, ou antes de embutidos", revelando a frágil costura existente entre eles.

Para o olhar do governador, representante da monarquia na América, entretanto, a despeito da perfeição dos encaixes e da beleza do colorido, a composição causou-lhe certo incômodo, a pintura em "nada favorecia ao original", julgando-a, quem sabe, carente de rigor estético, distorcida. Talvez fosse essa a imagem que o colono, habitante de terras distantes, enxergasse de uma monarquia que, naquele ano de 1799, após a confirmação da incapacidade mental da rainha D. Maria I, passava a ser governada por um regente despreparado para exercer tão sagrado posto. O retrato funcionava assim como um espelho para um jovem governante, pois a ordem política estava organizada entre o corpo do rei e o da sociedade, as virtudes e os vícios podiam assim se espalhar como sombra benigna ou nociva sobre todo o império.4

D. João não nasceu herdeiro do trono e a morte em 1788 de seu irmão, o príncipe D. José, o colocou de súbito na posição de imediato sucessor à Coroa portuguesa. Supersticioso, ligado às tradições religiosas e do Antigo Regime, parecia ter absorvido os ensinamentos do pai D. Pedro III, muito diferente da educação que recebera D. José, sob a orientação do marquês de Pombal.5 A historiografia dedicada aos estudos da conjuntura portuguesa no final do século XVIII ofereceu pouca atenção às problemáticas em torno da regência joanina, concentrando foco especialmente nos conflitos diplomáticos do período provocados pelos desdobramentos da Revolução Francesa (1789). Evidentemente, as tensões em torno do ideário "jacobino", as possibilidades dos distúrbios revolucionários alastrarem-se pela Europa e pelas colônias ultramarinas passaram a ser a principal fonte de inquietação da agenda dos governantes. Essa preocupação não escapou a Portugal, interessado em manter, a qualquer custo, sua condição de neutralidade perante os conflitos.

Se por um lado tais análises contribuem para a compreensão de um momento de mudanças significativas para os destinos do Império português, por outro, mascaram a fragilidade de uma monarquia que em 1799 retirou do trono o seu representante sagrado, a

4 Sobre os "espelhos" de príncipes, cf. Quentin Skinner. As fundações do pensamento político moderno. São

Paulo: Cia das Letras, 1996. Especialmente o capítulo 5, no qual o autor examina o contexto linguístico de produção de O príncipe de Maquiavel, comparando-o com outros autores de "espelhos de príncipe". Iara Lis Carvalho Souza examinando o manual Príncipe perfeito, de Francisco Antonio de Novaes Campos, o considera um manual tardio desse tipo de literatura política, discutindo o seu papel educativo e "espelho moral" para o príncipe D. João, a quem a obra foi dedicada em 1790. Cf. ____. Pátria Coroada. O Brasil como corpo político

autônomo – 1780-1831. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, pp. 21-24.

5 Lúcia Bastos Pereira das Neves. "Retrato de um rei em movimento". Entrevista concedida à Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 3, no. 28, Janeiro, 2008, pp. 54-59.

rainha D. Maria I, colocando em seu lugar um regente que, tanto na base jurídica como em termos simbólicos, era o espelho de uma monarquia imperfeita. Esconde, também, os conflitos políticos em torno dos principais ofícios da monarquia, cada vez menos ocupados pela chamada "primeira nobreza" e cada vez mais pela "nobreza política", aspecto frequentemente confundido com as posturas diplomáticas, traduzidas de forma simplista na clivagem "partido francês" e "partido inglês".

Os primeiros sinais da doença de D. Maria I surgiram pouco depois da morte do príncipe herdeiro D. José e do o arcebispo da Tessalônica, seu confessor e conselheiro, ambos em 1788. Padecia de "uma afecção melancólica" que lhe trazia "aflições noturnas" e "abatimento do espírito" impedindo-a de participar dos negócios do governo. Em 10 de fevereiro de 1792, o príncipe D. João declarou publicamente que passaria a assistir e a prover ao despacho em nome da rainha, até que sua mãe apresentasse sinais de melhora. A decisão baseava-se em um assento apresentado ao príncipe pelo gabinete de governo, naquele momento representado pelos quatro ministros de Estado: o marquês de Ponte de Lima (Fazenda), Martinho de Melo e Castro (Marinha e Ultramar), José Seabra da Silva (reino) e Luís Pinto de Souza (Estrangeiros e Guerra).6

O documento enfatizava que, na qualidade de "únicos membros do Conselho de Estado" e "pela sua honra e fidelidade", sentiam-se na "obrigação de seus cargos" de nas circunstâncias notórias do impedimento da rainha de "expedir os negócios do governo" e solicitar que D. João, no lugar de sua mãe, passasse a assistir e a assinar os despachos régios. A representação dos conselheiros era acompanhada de uma avaliação sobre o estado de saúde da soberana, realizada por uma junta composta por dezessete médicos. O laudo concluía que, para o restabelecimento da moléstia da soberana, era necessário o seu afastamento das funções governativas, mostrando-se céticos, no entanto, quanto à possibilidade de cura.7

D. João se via na situação inevitável de assumir as rédeas do governo. O documento afirmava que sua alteza deveria "violentar a sua natural e exemplar moderação, fundada no respeito, veneração e ternura a sua augusta mãe", palavras que deixam entrever certa relutância do príncipe em assumir o lugar de D. Maria I. D. João estava com vinte e cinco anos e, pelo menos até a morte do seu irmão em 1788, não lhe passava pela cabeça de que poderia vir a ser o rei.8

6 Jorge Pedreira e Fernando D. Costa. D. João VI. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, pp. 50-51. 7

Ângelo Pereira. D. João VI Príncipe e Rei: a retirada da família Real para o Brasil (1807). Vol. 1. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1953, p. 57.

Recebeu uma educação comum aos filhos da nobreza e, apesar de se conhecer pouco a respeito, sabe-se que teve como professores frei Manuel do Cenáculo e Miguel Franzini, com os quais aprendeu Letras, Ciências e Matemática, além de aulas de música e equitação. É possível supor que a sua educação seguiu os princípios preconizados pelas reformas do ensino de meados do século e pelas instruções escritas por seu avô, o rei D. José, para o seu neto o "sereníssimo príncipe D. José". Entre os aspectos que defendia para a postura de um bom monarca, destacava a importância da "exata vigilância" do:

[...] seu comportamento com as pessoas que forem obsequiando, se lhe deve sugerir a propósito: primeiro a compostura do corpo, a figura em que estará em quanto lhe falarem, sem fazer gestos ou jeitos com contorções contrárias [...]; segundo, que quando falar com as ditas pessoas, deve olhar para elas fixamente sem pôr os olhos no chão [...] terceiro, que se deve propor sempre que falar aos vassalos a ideia não só de lhes comprimir respeito com aquela modéstia e compostura de ações, mas também de lhes ganhar o amor pela afabilidade, com que os receber; quarto, que isto o conseguirá empregando uma ou duas palavras obrigantes ou ainda somente usando um certo arzinho afável [...].9

A regência de D. João não foi, no entanto, vista com bons olhos por parte da primeira nobreza de Corte. Apesar de incontestável – o príncipe era de fato o único herdeiro do trono –, as circunstâncias do processo, encaminhado exclusivamente pelos ministros de Estado sem a participação de outros grupos políticos, desagradaram aos que se arrogavam o direito de defender a perpetuação da ordem social e da monarquia portuguesa. Uma das primeiras reações ao documento assinado pelos secretários de Estado, que forçava o afastamento da rainha, apareceu registrada em uma carta escrita pelo conde de São Lourenço, D. João José Ausberto de Noronha, ao marquês de Ponte do Lima. O conde era um homem erudito, membro da Academia Real de História Portuguesa e gentil-homem da câmara do infante D. Pedro, marido de D. Maria. Considerado um dos envolvidos na conspiração contra o rei D. José; foi encarcerado no forte da Junqueira, onde permaneceu por dezessete anos (1760- 1777).10

Seu opúsculo tinha como base jurídica a lei de 1674 que regulava as regências, especificamente, o caso de demência.11 Publicado nos anos seguintes a passagem do poder de D. Afonso VI para seu irmão D. Pedro, que assumiu a regência após a constatação da

9 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (doravante ANRJ). Casa Real e Imperial/Mordomia-mor. “Instruções

dadas por sua majestade, o senhor rei D. José, o primeiro de boa memória, para a educação de seu augusto neto, o sereníssimo príncipe D. José”. Códice 1093.

10 Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico. Lisboa:

João Romano Torres Editor, 1912, vol. VI, p. 698.

11

Alvará de 23 de novembro de 1674. Regula a tutela e regência do reino na menoridade ou incapacidade do Soberano. In José Justino de Andrade e Silva. Colleção Chronologica da Legislação Portugueza. Lisboa: Imprensa de J. J. A. Silva, 1854, pp. 377-379.

incapacidade mental do rei, o Alvará foi elaborado com a participação das Cortes reunidas em 1668 e com a consulta feita aos conselheiros de Estado. Seu objetivo principal era prever um "embaraço" político, causado pela circunstância de estar Portugal a ser governado por um regente, cujo sucessor, seu próprio filho, ainda era uma criança:

Eu o príncipe, como Regente e Governador destes Reinos e Senhorios, faço saber aos que esta minha Lei, estabelecida em Cortes, virem, que, havendo respeito às repetidas instâncias, com que a Nobreza, Povo e Clero deste reino nas cortes, que se celebram nesta cidade de Lisboa este presente ano, me pediram quisesse por uma Lei fundamental dar certa forma as Regências e tutorias na menoridade, ou incapacidade dos Reis Sucessores, pela perturbação que causava o Estado Político, a incerteza da pessoa a quem tocava [...] a Monarquia se expunha ao perigo de uma total ruína, e com mais justo receio na presente ocasião em que o reino se achava com a privação do Senhor Rei Dom Afonso VI, meu irmão, pela sua perpétua, insanável incapacidade, e na menoridade do Infante [...] muito amado e prezado Filho; podendo acontecer o caso de maior embaraço e perturbação, pela novidade dele [...] houve por bem depois e discutida a matéria com os do meu Conselho, considerando não somente a utilidade da lei para o sossego e utilidade pública, mas ainda a antecipada aceitação dos povos [...].12

O Alvará preconizava que em caso de morte do rei regente, deixando o herdeiro do trono com menos de catorze anos, tendo nomeado tutor ou tutores, a estes deveriam obedecer todos os vassalos do reino, como ao próprio monarca. No caso de não terem sido nomeados tutores e de, na ausência ou impossibilidade de sua mãe assumir a tutela, a regência deveria ser tomada pelos cinco conselheiros mais antigos, incluindo entre eles um prelado que poderia ser um dos membros do Conselho, o inquisidor-geral, o arcebispo de Lisboa, Braga ou Évora.13 Se houvesse infante irmão do rei falecido, este deveria estar incluído no grupo de conselheiros integrantes da regência.

D. Pedro, tanto durante a sua regência quanto no seu reinado (1667-1706), deleitava- se em ouvir e discutir em pormenores os assuntos do governo. Segundo Joaquim Veríssimo Serrão, o regente dilatava a resolução dos problemas "porque queria sempre ouvir a opinião dos conselheiros".14 Era esse o espelho de regente exigido pela primeira nobreza de Corte do final do século XVIII, sendo um dos seus porta-vozes o conde de São Lourenço. Um regente que fosse legitimado pelo "verdadeiro Conselho de Estado", formado pelos homens mais

12 Ibidem, p. 377.

13 Ibidem, p. 378. O prelado deveria ser eleito na ordem exposta, ou seja, na ausência do primeiro o próximo em

ordem sucessiva.

14 Joaquim Veríssimo Serrão. História de Portugal. A instauração do Liberalismo. (1807-1832). Vol. VII.

distintos do reino e não pelo conselho criado por "Sebastião José", que se confundia com os secretários de Estado.15

A conjuntura do início da regência de D. João não deixava de se assemelhar com a de 1667, quando D. Pedro afastou seu irmão, o rei D. Afonso IV por incapacidade mental, sem que houvesse um herdeiro. D. Maria I era afastada das funções governativas pela mesma razão e D. João ainda não tinha herdeiros, sua primeira filha, Maria Teresa, nasceria apenas em 1793. Sua saúde dava mostras de fragilidade; em 1789, contraiu a varíola, que antes havia vitimado seu irmão e, em 1791, o capelão da casa dos marqueses de Marialva registrou que a saúde do príncipe "era má", chegando mesmo a "deitar sangue pela boca e pelos intestinos".16 A fragilidade da monarquia estava evidente e o controle do poder político, com exceção do marquês de Ponte do Lima, estava nas mãos de homens que não tinham "raízes fundas no Estado, nem tanta obrigação de lhe ser fiel, como os da primeira classe".17 O conde de São Lourenço referia-se evidentemente a José Seabra da Silva, Luís Pinto de Sousa e Martinho de Melo e Castro.

Apesar das críticas do conde de São Lourenço, José Seabra da Silva era voz dissonante entre os conselheiros e ministros de Estado quanto à legitimidade da regência de D. João. Em 1799, ano da formalização da regência, sua oposição também tinha como base jurídica o contexto do final do século XVII, defendendo a necessidade da convocação das cortes que não se reuniam desde 1698. A valorização do papel das cortes por Seabra da Silva refletia a força do paradigma corporativo, no qual a representação dos três estados – clero, nobreza e povo –, herança da sociedade medieval, escondia os interesses particulares dos grupos em conflito.

A convocação das cortes era uma prerrogativa do rei, incluindo a indicação dos temas a serem discutidos nas reuniões. Tradicionalmente as cortes deliberavam sobre a "aclamação do novo rei, juramento do príncipe herdeiro, lançamento de novos tributos, quebra da moeda [...] o que em determinadas conjunturas, constituía um relativo 'limite' ao arbítrio do monarca".18 Pedro Cardim afirmou que essas limitações estiveram comumente a

15

Apud: Joaquim Pintassilgo. Diplomacia, política e economia na transição do século XVIII para o século XIX:

o pensamento e acção de Antônio de Araújo de Azevedo (Conde da Barca). Dissertação de mestrado em História

apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 1987, pp. 170-174.

16

A doença de D. João foi motivo para a publicação de diversas orações dedicadas ao seu restabelecimento. Cf. Jorge Pedreira e Fernando D. Costa, op. cit., p. 53.

17 Joaquim Pintassilgo, Op. cit., pp. 170-174. 18

Pedro Cardim. "O quadro constitucional. Os grandes paradigmas de organização política: A Coroa e a representação do reino. As cortes." In António Manuel Hespanha (coord.). História de Portugal: o Antigo

serviço dos grupos ou facções rivais em determinadas conjunturas políticas, aspecto que pode ser compreendido, a partir do próprio esquema de representação das cortes. Entendia-se que a "parte melhor" de cada estado deveria ser ouvida: entre os membros do clero tinham assento os arcebispos, bispos, cabidos, mestres de ordens militares e reitores das universidades; entre a nobreza convocava-se a grande nobreza titulada, além da nobreza "média", destacando-se os alcaides-mores; no braço do povo, encontravam-se os "procuradores" enviados pelas vilas e cidades.19

Dos temas tratados nas reuniões, o juramento e aclamação do novo rei e do príncipe herdeiro tinham importância capital e, segundo Pedro Cardim, eram os mais sujeitos às oscilações conjunturais. São exemplos marcantes a reunião de 1640, que revelou a capacidade e o poder das cortes na eleição de um novo rei; e a de 1668, quando ocorreu o golpe de Estado de D. Pedro, já citado anteriormente.20 Interessava à primeira nobreza do final do século XVIII reivindicar um passado no qual haviam tomado parte mais ativamente das decisões governativas, especialmente as definições relativas à eleição dos reis. A ordem jurídica escolhida foi a da Restauração, momento em que a monarquia precisou contar com o apoio das principais famílias do reino, excluindo-se propositalmente o contexto de 1698, quando D. Pedro II alterou as normas de sucessão para legitimar a subida de seu filho ao trono, futuro D. João V, abolindo qualquer convocatória dos três estados para o juramento e aclamação do novo rei.21

A convocação das cortes sempre fora “associada a um certo estilo ‘português’ de governar”, e durante a União Ibérica (1580-1640), as irregularidades nas cerimônias de aclamação dos reis filipinos chegaram a ser consideradas pelas elites portuguesas parte de um “projeto mais vasto que tinha como finalidade a anulação da identidade política de Portugal”.22

Durante todo o século XVII, a competência na matéria da eleição do rei foi "mais do que reivindicações de uma soberania popular ou de uma constituição pactuada entre o rei e os seus vassalos", um meio de garantir a "manifestação da vitalidade política dos poderes concorrentes – eclesiásticos, nobiliárquicos e corporações urbanas – e mais um sinal do seu empenho em continuar a ter uma palavra a dizer nos momentos cruciais do processo governativo.”23 19 Ibidem, p. 146. 20 Ibidem, p. 149.

21 Pascoal de Mello Freire. Instituições de Direito Civil Português - séc. XVIII. Transcrito no Boletim Ministério

da Justiça, 1966, III, pp. 62-64.

22

Pedro Almeida Cardim. Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Edições Cosmos,