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PARTE I Os circuitos políticos da Corte

3.1. Utopias imperiais

A consciência histórica e filosófica dos iluministas – e queira-se ou não – só adquire sentido político como resposta à política absolutista [...] O patrimônio de ideias herdado, que já se encontrava quase completo, à disposição dos iluministas, só foi retomado em uma situação determinada e – nisto reside seu aspecto especificamente novo – interpretado do ponto de vista da filosofia da história.1

A Europa do século XVIII foi marcada pelo confronto entre duas grandes tradições: o Absolutismo e o Iluminismo. Na interpretação do historiador alemão Reinhart Koselleck, o momento revelou a separação definitiva entre a moral e a política, cisão que, no início da Época Moderna, ganhou corpo nos conflitos religiosos e na autonomia dos reinos europeus frente ao papado. Até os seus momentos derradeiros, a crise instalar-se-ia no seio das monarquias absolutistas, sendo a Revolução Francesa o exemplo máximo desse processo.2

Koselleck ainda registrou que as condições gerais que deram origem ao Iluminismo não mudaram no decorrer do século XVIII, mas sim as circunstâncias, ou seja, o adensamento das dificuldades básicas dos sistemas absolutistas. Inicialmente a crítica direcionou-se à religião, mas, até o final do século, todos os campos da vida humana seriam examinados no "tribunal da razão", no qual os "erros" do passado absolutista seriam julgados para a realização plena do futuro, tempo do progresso.3 Dando voz a grandes pensadores e a autores de panfletos anônimos, o historiador alemão elaborou a tese de que "o processo crítico do Iluminismo conjurou a crise na medida em que o sentido político dessa crise permaneceu encoberto". Em suas palavras:

A crise se agravava na mesma medida em que a filosofia da história a obscurecia. A crise não era concebida politicamente, mas, ao contrário, permanecia oculta pelas imagens histórico-filosóficas do futuro, diante das quais os eventos cotidianos esmoreciam. Assim, a crise encaminhou-se, ainda mais desimpedidamente, em direção a uma decisão inesperada.

É nesse sentido, de uma crise escondida na atmosfera crítica das Luzes, que se pretende aqui pensar a conjuntura da virada do século XVIII para o XIX em Portugal. Defende-se a hipótese de que o Império português vivenciou a crise ao seu modo, "às avessas", uma vez que a Ilustração, ao contrário de servir para minar as bases do Absolutismo monárquico, foi usada para o reforço dos vínculos entre a monarquia e seus súditos,

1 Reinhart Koselleck. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro:

EDUERJ, Contraponto, 1999, p. 11-12.

2 Ibidem, p. 11. 3 Ibidem, p. 14.

especialmente os nascidos no ultramar. Graças a uma arguta política diplomática, Portugal conseguiu ganhar tempo para implementar medidas reformistas que conseguiram adiar por mais alguns anos a resolução da crise, a qual, na década de 1790, apresentava seus primeiros sinais.4 A "decisão inesperada" configurou-se na retomada, sob novos pressupostos, do projeto imperial a ser realizado na América, cuja elaboração utópica ocorreu entre os anos de 1796-1803 e sua consumação a partir de 1807.

Em termos práticos, tal percepção sugere uma das chaves para compreender o impacto das transformações e rupturas do período: o exame das tensões e resistência que se revelam do embate entre os comportamentos típicos das sociedades de Antigo Regime e os ideais ilustrados presentes, sobretudo, nas atitudes governativas. Foi visto no capítulo anterior o quanto o ambiente de intrigas e maquinações palacianas trouxe embargos às ações políticas de D. Rodrigo, em parte pela identificação do ministro como "criatura" de D. João e, de certo modo, um espectro do marquês de Pombal a assombrar a primeira nobreza de Corte. Mas o quadro das tensões metropolitanas, agravado com a conjuntura diplomática, soma-se ao resgate do ideário imperial a ser realizado na América portuguesa, sob a releitura do reformismo ilustrado.

Como a historiografia tem afirmado, a ideia de Império era uma velha aspiração que remontava aos cronistas portugueses do século XVI e que, de acordo com as conjunturas políticas vividas pelo reino, ganhava novos significados. Como observou Anthony Pagden, a noção de Império que permaneceu no cenário europeu dos séculos XVI, XVII e XVIII, tinha origem na supremacia do Sacro Império Romano-Germânico sobre a cristandade, mas seu conteúdo foi reatualizado ao longo da Idade Média com o surgimento dos chamados Estados Nacionais.5 Nessa conjuntura, mas guardando as especificidades locais, assiste-se à autoproclamação dos princípios superiorem nom recognoscens e rex imperator in regno suo, uma negação da dependência de qualquer superior, isto é, de outro imperador ou do papa e garantindo no plano teórico a soberania interna e externa.6

Portugal não escapou a esse processo. Como notou Evaldo Cabral de Mello, o argumento utilizado para a soberania da península foi a reconquista do território em posse dos

4 A noção de crise vem sendo questionada por uma vertente da historiografia luso-brasileira que, inspirada

especialmente nos estudos de Valentim Alexandre, colocam em xeque a abordagem sobre a existência de uma "crise do Antigo Sistema Colonial". Cf. Valentim Alexandre. Os sentidos do Império: questão nacional e

questão colonial na Crise do Antigo Regime Português. Lisboa: Edições Afrontamento, 1993; Fernando Antônio

Novais. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial. 7ª. Ed. São Paulo: Hucitec, 2001.

5 PAGDEN, Anthony. Señores de todo el mundo: ideologías del imperio em España, Inglaterra y Francia (en

los siglos XVI, XVII y XVIII). Trad. M. Dolors Gallart Iglesias. Barcelona: Península, 1997.

6 Pierangelo Schiera. "Absolutismo". In Norberto Bobbio; Nicola Matteucci; Gianfranco Pasquino. Dicionário de política. 8ª. Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, pp. 1-7, p. 3.

mouros sem o auxílio do Império.7 Processo que ganhou expressão no uso por D. Sebastião (1554-1578) do título de "Majestade", até então de uso exclusivo do imperador. Antes disso, seu avô, D. Manuel, arrogava-se o direito de posse de vastos domínios em África, Ásia e América, adotando a esfera armilar, como símbolo da monarquia e da soberania sobre os mares e descobertas. No entanto, essa nova configuração imperial, formada a partir de diferentes Estados existentes e espacialmente separados, nada tinha em comum com o sentido primitivo da palavra que na Roma antiga designava o mando, a fonte última do poder.8 A associação entre Império e "largos domínios" aparece na obra de Cornélio Tácito (55-120), um dos autores romanos resgatados entre os séculos XVI e XIX.9

Seria esse o sentido moderno do termo império apropriado pelas monarquias europeias. Frente à ausência de uma bibliografia consistente sobre o tema, pode-se afirmar que, apesar de aparecer nos textos de poetas e cronistas desde o Quinhentos, Portugal nunca foi de fato um Império com justificativas jurídicas ou políticas. Sua propagação esteve presa, portanto, ao plano místico e imaginário, a ser realizado em um futuro próximo nas conquistas do Oriente, como assinalaram as trovas de Bandarra ou ainda a proposta de padre Antônio Vieira de criação do Quinto Império. A transplantação desse ideário para as terras da América ocorreu entre o final do século XVI e começo do XVII, e, segundo Evaldo Cabral de Mello, teria sido uma aspiração de colonos portugueses. Gabriel Soares de Sousa diria que a nova terra "está capaz para se edificar nela um grande Império, o qual, com poucas despesas destes reinos, se fará tão soberano que seja um dos Estados do mundo, porque terá de costa mais de mil léguas". Ambrósio Fernandes Brandão, também impressionado com as dimensões do Brasil, registraria ser a "terra bastantíssima para se poder situar nela grandes reinos e impérios".10

A abundância da terra inspirava a imaginação de homens que tinham vindo de território tão pequeno e árido. A natureza da América somada as suas riquezas passaram a servir de solução salvadora do reino e dos portugueses que lá viviam, sobretudo diante dos abalos diplomáticos a partir do século XVII. As conquistas da América podiam dotar Portugal de tudo o que se precisava, ideia formulada por cronistas, como Frei Vicente do Salvador, que afirmou ser "o Brasil mais abastado de mantimentos que quantas terras há no mundo, porque

7 Evaldo Cabral de Mello. Um imenso Portugal – história e historiografia. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 26-

27.

8

Ibidem, p. 27.

9 Cf. Sobre a releitura de Tácito no período citado, cf. o artigo de Fábio Duarte Joly. "Tácito e o Império

Romano". Revista de História. São Paulo, n. spe, 2010. Disponível em:

<http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034- 83092010000300005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso: 24/01/2013.

nele se dão os mantimentos de todas as outras".11 Rocha Pita não diria diferente sobre o Novo Mundo: "vastíssima região, felicíssimo terreno em cuja superfície tudo são frutos, em cujo centro tudo são tesouros, em cujas montanhas e costas tudo são aromas".12 Palavras que mais pareciam eco da Carta de Pero Vaz de Caminha que no século XVI ficou admirado com a fertilidade da terra que acabara de encontrar: "em tal maneira graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem".13

Não se intenciona aqui fazer dos escritos citados a antevisão do projeto de imperial formulado no século XVIII, menos ainda de insinuar que esses cronistas enxergavam no nome "Brasil" algum tipo de unidade territorial. A vastidão de terras férteis, abundantes em águas e mantimentos, arejadas pelos ventos e aromas, restringia-se à capitania da Bahia, onde viviam frei Vicente do Salvador e Rocha Pita, ampliando-se, quando muito, a fartura encontrada no litoral, pois os portugueses continuavam apegados à costa – "arranhavam a praia como caranguejo". Não era essa a visão que os colonos que adentravam o interior tinham desse mesmo território, marcado pela escassez de alimentos, pela fome, pela insalubridade do clima, infestado de animais peçonhentos e outros perigos pelos quais passavam os habitantes das brenhas americanas.14 E apesar dos discursos anunciarem a vocação da colônia para uma vida sem dependência da metrópole, a descentralização administrativa das conquistas provocava na prática uma dependência direta de cada capitania com Lisboa, fato que impedia a integração da América como um todo, como lembra Laura de Mello e Souza.15

Como percebeu Luís Felipe de Alencastro ao debruçar-se no estudo do tráfico de escravos ao longo dos séculos XVI e XVII, a unidade do Brasil nos Setecentos fez-se de fora para dentro. O historiador referia-se ao espaço econômico e social que englobava os dois lados do Atlântico, vendo o Brasil não como uma mera extensão do continente europeu, mas um território criado a partir de suas relações com a África.16 Mas, para esse estudo, para além dessa percepção de Alencastro, cumpre ainda pensar a visão europeia, pois foi de Portugal

11

Frei Vicente do Salvador. História do Brasil – 1500-1627. 3. ed. revista por Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. São Paulo: Melhoramentos, s.d., p. 37.

12 Sebastião da Rocha Pita. História da América portuguesa desde o ano de mil e quinhentos do seu descobrimento até o de mil e setecentos e vinte e quatro (1730). Lisboa: Francisco Artur da Silva, 1880, pp. 1 e

2.

13

A carta de Pero Vaz de Caminha. Estudo crítico de J. F. de Almeida Prado; texto e glossário de Maria Beatriz Nizza da Silva. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1990, p. 57.

14 Sobre o caráter provisório e precário da vida nas capitanias do interior, cf. Laura de Mello e Souza. "Formas

provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações". In _____ (org.).

História da Vida Privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América portuguesa. Vol. 1. São Paulo:

Companhia das Letras, 1997, pp. 41-81.

15 Laura de Mello e Souza. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa no século XVIII.

São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 99.

16 Luís Felipe de Alencastro. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia

que partiu as primeiras considerações sobre a unidade do território. Da pena dos "estrangeirados", como D. Luís da Cunha e o duque de Silva Tarouca, partiriam as primeiras formulações mais concretas sobre a possibilidade de estabelecer um poderoso Império na América. O Brasil, integrado pelas suas riquezas e potencialidades, constituía um lugar seguro para a instalação da Corte, pois as justificativas para tal proposição passavam a somar as preocupações com a instabilidade diplomática de Portugal, frente às estratégias expansionistas das outras potências europeias, especialmente Espanha e França.

Evaldo Cabral de Mello apontou que historicamente essa percepção ocorreu durante a participação de D. Luís da Cunha nas negociações do Tratado de Utrecht (1713-1715), quando o estadista percebeu a fragilidade de Portugal perante as intensas disputas territoriais e políticas europeias, e na sua impossibilidade de preservar o patrimônio ultramarino.17 Em 1736, a solução que lhe ocorreu parecia mesmo a mais coerente a ser adotada: "As conquistas, que supus ser um acessório de Portugal, eu as tenho pelo seu principal e ainda garantes da sua conservação, principalmente as do Brasil". Estadista de larga visão geoestratégica, seu pensamento não se restringia à situação portuguesa, mas a própria Europa: "a nenhuma potência da Europa convém que ela caia nas mãos de alguma nação que se saiba melhor que nós aproveitar das suas riquezas, pois que com todas as prodigalizamos, indo cavar nas minas para que os estrangeiros recolham as suas preciosas produções".18

O pai do duque de Silva Tarouca tinha estado na mesma missão de D. Luís da Cunha em Utrecht e é provável que as suas ideias imperiais tenham sofrido a influência do velho diplomata. O duque servia de conselheiro à imperatriz Maria Teresa de Áustria e lá conheceu o marquês de Pombal de quem ficou amigo, como afirmou Kenneth Maxwell.19 Via da mesma forma a precariedade do sistema defensivo do reino frente à Espanha e, em carta de 1756, confidenciava ao futuro marquês de Pombal que em sessenta anos "o sistema geral da Europa" havia "mudado grandemente" ao menos "três vezes". "E pode facilmente a nosso respeito mudar-se muito mais em pouco mais de quarenta, que correm e correrão até o fim do nosso século XVIII". Referia-se ao fato de que o "sistema" europeu estava nas mãos da Casa de Bourbon, que unia as coroas da França, Espanha e Nápoles em uma mesma família. O duque temia que os espanhóis conquistassem toda a América, fazendo-se a principal potência na Europa, colocando todas as outras sob sua dependência. Preocupava-se com o clima de

17 Evaldo Cabral de Mello, op. cit., pp. 35-36. 18

Instruções inéditas de D. Luís da Cunha a Marco António de Azevedo Coutinho. Revisão e nota de Pedro de Azevedo; prefácio de Antônio Baião. Coimbra, 1929, p. 113.

"usurpação que reina hoje na Europa" e temia pelas consequências, não a curto prazo, mas "para o futuro".20

D. Luís da Cunha, apoiado por Silva Tarouca, defendia que a melhor solução era a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, onde o rei podia "dormir o seu sono descansado e sem algum receio de que o venham inquietar".21 Assim como os primeiros cronistas da colonização, caprichava nas tintas da abundância de produtos das terras brasílicas, certo de que, se na América faltavam gêneros que só havia na Europa, essa situação podia ser contornada pela "diligência e indústria humanas".22 Ao contrário, o reino jamais poderia produzir as riquezas do Brasil, sobretudo o ouro e os diamantes, podendo manter-se como "entreposto de todas as mercadorias das outras partes do mundo". Esse novo Império ainda tinha a vantagem de estar distante das potências europeias, aspecto que ampliava as chances de evitar uma invasão que ocupasse todo o seu território.23

Como garantir o sucesso da empreitada sem colocar em risco o reino português na Europa? A proposta de D. Luís da Cunha concentrava-se na criação de um vice-reino em Portugal, mas a garantia da soberania portuguesa teria de ser assegurada por meio de acordos internacionais que impedissem os interesses da Espanha sobre o reino luso. Afinal, não estava afastado o perigo de a nobreza que não tivesse acompanhado a família real para o Brasil, apoiasse uma ofensiva espanhola em desagravo à traição do monarca. O próprio diplomata considerava sua proposta visionária e radical, de pouco interesse à alta aristocracia sem vínculos diretos com os rendimentos proporcionados pelas colônias de além-mar.24 Havia também a possibilidade de um acordo quanto aos limites entre as possessões americanas, como a troca sugerida por D. Luís da Cunha, do Chile pelo Algarve, o que representava um importante ganho portuário para a Espanha.25

A transferência apresentava muitas vantagens. Portugal poderia ter no Brasil um vasto império, como eram a China, a Pérsia, o Mogol e o Otomano, e, o mais importante, ficaria seguro das intrigas políticas e das disputas territoriais na Europa. Ganharia também com o comércio do Brasil que poderia ser potencializado com o governo do Império, situado no Rio de Janeiro, e a Espanha passaria a temer a sobrevivência de suas possessões na América. Esse ideário carecia também do aumento da população das capitanias, aspecto em

20 Todas as citações foram feitas por Evaldo Cabral de Mello, op. cit., pp. 39-40. 21

Instruções inéditas de D. Luís da Cunha...

22

Ibidem, p. 213.

23 Ibidem. Cf. também a análise de Joaquim Romero Magalhães. “As novas fronteiras do Brasil”. In Francisco

Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dir). História da Expansão Portuguesa: o Brasil na Balança do Império (1697-

1808). Lisboa: Círculo de Leitores. 1998, pp. 10-42, p. 29-34. 24 Joaquim Romero Magalhães. “As novas fronteiras...", pp. 28-29. 25 Evaldo Cabral de Mello, op. cit., pp. 40-41.

parte resolvido durante o governo pombalino, quando a Coroa transformou os índios em vassalos livres, medida, cujo propósito era a preservação das fronteiras e o incremento da agricultura nas regiões limítrofes com os domínios espanhóis. Em 1762, no contexto da Guerra dos Sete Anos, o temor de um ataque franco-espanhol levou o marquês de Pombal a preparar as naus para transportar o rei pelo Atlântico, rumo às conquistas americanas.26

Não é de estranhar que a ideia da transferência da Corte para a América rendesse tantos adeptos, pois D. Luís da Cunha era tido como um "oráculo" dos estadistas portugueses do século XVIII. Mas, sem dúvida, à medida em que a situação europeia complicava-se, aumentava o peso da ideia de que, sem o Brasil, a monarquia portuguesa dificilmente poderia sustentar-se como potência soberana. Esse argumento esteve presente nas instruções de Martinho de Melo e Castro para o vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza, para quem afirmou em 1779: "Como é demonstrativamente certo [...] sem o Brasil, Portugal é uma insignificante potência; e que o Brasil sem forças, é um preciosíssimo tesouro abandonado".27 Alguns anos mais tarde, em anexo ao Alvará de 1785, que proibiu as manufaturas no Brasil; Melo e Castro enviou instruções aos governadores, justificando o ato, remetendo-se ao argumento da "abundância" das riquezas brasileiras para a aplicação da lei restritiva:

Quanto às fábricas e manufaturas é indubitavelmente certo que sendo o Estado do Brasil mais fértil e abundante em frutos e produções da terra, e tendo os seus habitantes, vassalos desta Coroa, por meio da lavoura e da cultura, não só tudo quanto lhes é necessário para sustento da vida, mas muitos artigos importantíssimos para fazerem, como fazem, um extenso e lucrativo comércio e navegação; e se a estas incontestáveis vantagens ajuntarem as da indústria e das artes para o vestuário, luxo e outras comodidades precisas, ou que o uso e costumes tem introduzido, ficarão os ditos habitantes totalmente independentes da sua capital dominante [...]28

Ao contrário dos estadistas que lhe antecederam, Martinho de Melo e Castro tinha mais clareza de que Portugal vivia um momento político novo, marcado pela defasagem, militar e tecnológica, do reino em relação as outras potências europeias. Temia não só as incursões da Inglaterra, França e Holanda no litoral do Brasil, mas das "províncias Unidas Americanas", que, após a declaração de independência em 1776, passaram de uma "noção sujeita" a "uma potência livre e soberana" e com grandes quantidades de embarcações. Podiam "quando menos o esperarmos, infestarem os portos e costas do mesmo Brasil,

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Lilia Moritz Schwarcz. A longa viagem da Biblioteca dos Reis. Do terremoto de Lisboa à independência do