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PARTE I Os circuitos políticos da Corte

1.2. Degustar e conversar: os convidados do ministro

1.2.1. O "primo" Luís Pinto de Souza

Principal articulador da regência que afastou D. Maria I do poder e defensor da política de aliança com a Grã-Bretanha, Luís Pinto estabeleceu vínculos com D. Rodrigo que extrapolavam as relações públicas da Corte. Tratavam-se por "primos" na correspondência oficial, mesmo sem o serem, e entre eles não faltavam manifestações explícitas de cordialidade, como comprovam os bilhetes de respostas aos convites para os jantares. Em um deles, Luís Pinto assegurava a sua presença dizendo que "seu primo, amigo e fiel cativo [...] aceita o convite que teve a bondade de lhe fazer para o dia 23 do corrente, e terá nesse dia a honra e o gosto de se ir aproveitar da sua Companhia [de D. Rodrigo]".48

Amizade que se estabeleceu na maturidade, durante os anos em que D. Rodrigo, representante português na Corte de Turim, admirava a posição de destaque de Luís Pinto no cenário político dos anos de 1780. Forma de tratamento indicativa da concepção ampla de família no Antigo Regime, capaz de abarcar todas as pessoas ligadas pela geração (agnados) ou pela afinidade (cognados), como assinalou António Manuel Hespanha.49 Em outra interpretação complementar, sugerida por Le Roy Ladurie, no sistema de hierarquias das cortes, a melhor distinção para um personagem bem situado era o não precisar utilizar título algum, mas simplesmente poder chamar alguém de "meu tio" ou "minha prima".50

Indícios desse vínculo podem ser apreendidos na correspondência privada da família Souza Coutinho, na qual D. Rodrigo revela sua dependência e seu respeito ao futuro ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Em uma carta de 1783, enviada de Turim, comenta com seu irmão José Antônio, futuro Principal Souza, sobre as "Luzes" e as qualidades de Luís Pinto, solicitando que o procurasse e que:

[...] em meu nome [D. Rodrigo] lhe faças as mais vivas protestações de respeito e amizade, pois na realidade me deve o maior conceito, em que tenho por companheiros todos os que o conhecem e que falam dele e das suas luzes com o maior respeito. Lisonjeio-me que se houver promoção no Ministério se lembre dele como o mais hábil, e a nação conhecerá um Ministro de muitas luzes e da maior limpeza de mãos.51

48

ANTT. Condes de Linhares. Bilhetes de respostas ao convite para o jantar de 23/12/1798, em honra do dia dos anos de sua majestade. Maço 96/1. Grifo nosso.

49 António Manuel Hespanha. "A família". In ____ (coord.). História de Portugal: o Antigo Regime (1620- 1807). V. 4. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, pp. 272-285, p. 274.

50

Ladurie aplica essa análise para o "personagem muito bem situado", ou seja, o próprio rei. Mas creio não ser um equívoco estender essa forma de tratamento como um meio de revelar a aproximação com um personagem que ocupa uma posição de destaque, como Luís Pinto de Souza. Cf. Emmanuel Le Roy Ladurie. Saint-Simon ou

o sistema da Corte. São Paulo: Civilização Brasileira, 2004, p. 80.

51 Carta a José Antônio. Turim, 18/10/1783. Publicada in Andrée Mansuy-Diniz Silva. Portrait d'un homme d'état..., vol. 1, p. 511.

Na ocasião dos preparativos do seu casamento com D. Gabriela, a demora no despacho régio que o autorizava a contrair o enlace gerou aflição em D. Rodrigo. Para ele, o retardo da autorização, que levou quase dois anos para ser expedida, tinha como causa as intrigas políticas na Corte de Lisboa.52 A acreditar na versão formulada pelo próprio D. Rodrigo, o documento só foi emitido após a entrada, em 1788, de Luís Pinto de Souza para o gabinete ministerial de D. Maria I. Em carta aos seus irmãos José Antônio e Mariana, de 12 de novembro de 1788, rogava "encarecidamente que fales ao primo Luís Pinto, se tudo não está concluído, e que insistas junto dele para que se interesse a favor da minha tranquilidade futura".53 Em março do ano seguinte, dias antes da celebração do matrimônio, D. Rodrigo pedia ao seu irmão que agradecesse "ao nosso primo o muito que tem feito à meu favor".54

Para além dos vínculos familiares, havia afinidades intelectuais e políticas. Luís Pinto de Souza era formado em Matemática na Universidade de Coimbra e, como era comum, conjugou a formação acadêmica com as armas, adquirindo vasta experiência militar ao acompanhar as caravanas da Ordem de Malta, quando pode conhecer algumas regiões da Europa, como a Itália, a Alemanha e a França. Foi um dos grandes governadores da era pombalina, nomeado para a direção da capitania de Mato Grosso (1769-1772), dando continuidade ao trabalho de criação de limites com a capitania de São Paulo.55 Regressou ao reino acometido de uma infecção no ouvido, sofrimento que traduziu em alguns versos da ode "Filha da Temperança e Mãe do Gosto", composta durante sua estada na América portuguesa:

Pois como me abandonas entre os bosques, Entre lagos infetos, donde a vida, Sem socorro algum da arte de Apolo, Vai sorvendo corruto o ar e a morte? [...].

abandonas entre os bosques [...] É estreito o Horizonte, é sufocado, Sem haver um só termo que prolongue

Ou fixe com agrado um novo objecto Tudo são lagos e pantanais tudo Que em vez de receber de Febo a vida,

Pela acção do calor que os evapora

52 Em especial a resistência representada pelo visconde de Vila Nova da Cerveira, ocupante do cargo deixado

pelo marquês de Pombal, ou seja, ministro da Secretaria de Estado dos Negócios Interiores do reino. O casamento de D. Rodrigo foi realizado em Turim, em 8 de março de 1789. Cf. Andrée Mansuy-Diniz Silva.

Portrait d'un homme d'état..., vol. 1, pp. 215-224. 53

Carta a José Antônio e Mariana. Turim, 12/11/1788. Publicada in Andrée Mansuy-Diniz Silva. Portrait d'un

homme d'état..., vol. 1, pp. 557-558.

54 Carta a José Antônio. Turim, 04/03/1789. Ibidem, pp. 564-565.

55 Renata Araújo. "Configurações internas: processos de estabelecimento de fronteiras entre as capitanias

interiores do Brasil colonial." In III Encontro de História Colonial. Recife, 4-7 de setembro de 2010. Comunicação apresentada na Mesa Redonda Representações e configurações políticas do território colonial: visões e comunicações entre a colônia e a metrópole. (Texto Inédito).

Corrompem no seu centro as turvas águas.56

Deixando para trás a insalubridade do clima e as dificuldades da nos sertões inóspitos da América portuguesa, Luís Pinto foi agraciado com o cargo de plenipotenciário na Corte de Londres, onde viveu por catorze anos, voltando a Portugal em 1788 para assumir o cargo de secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Durante os anos que passou em Londres, Luís Pinto estreitou vínculos com alguns pensadores iluministas, especialmente com William Robertson, para quem forneceu notícias sobre a América portuguesa presentes na obra The History of America, como assegura o próprio autor:

Recebi informação de grande utilidade e importância do nobre Chevalier de Pinto, ministro de Portugal na Corte da Grã-Bretanha, que por muitos anos dirigiu o Mato Grosso uma povoação portuguesa no interior do Brasil... que muitas vezes me orientou como um de meus guias mais bem informados sobre os naturais da América.57

O gosto pelas viagens, pela diplomacia, pelo modelo inglês e pelo Brasil, eram temas que possivelmente animavam a amizade entre Luís Pinto e D. Rodrigo. A experiência no ultramar permitiu, ao então secretário dos Negócios Estrangeiros, um olhar diferenciado para os súditos nascidos nas colônias, aspecto que se evidenciou, por exemplo, na política de aproximação promovida a partir de sua entrada no ministério, entre as elites letradas da América portuguesa e o célebre naturalista Domingos Vandelli. Luís Pinto financiou a viagem de instrução que levaria, em 1790, José Bonifácio e Manuel Ferreira da Câmara para Paris, onde deveriam fazer um curso de mineralogia e física. Em Freiberg passariam dois anos para adquirir "conhecimentos práticos", visitando em seguida as minas da Saxônia, Boêmia e Hungria, regressando a Portugal, via Escandinávia e Grã-Bretanha.58 Examinando a coleção de documentos de Luís Pinto, o historiador Kenneth Maxwell observou o interesse do ministro por Minas Gerais, especialmente pelos temas da conjuração de 1789 e da necessidade de formar técnicos especializados para cuidar da extração mineralógica na capitania.59

56

Cf. Francisco Topa. Poemas Dispersos e inéditos de Luís Pinto de Sousa Coutinho, 1o. Visconde de Balsemão.

Porto, 2000. Edição do Autor, p. 59-64. Disponível em: http://web.letras.up.pt/ftopa/Livros-

Pdf/Luis%20Pinto.pdf. Acesso: 1/06/2012.

57

William Robertson. The History of America. 12a Ed. Londres, 1812, 4 vols. Apud: Kenneth Maxwell. A

devassa da devassa. A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal (1750-1808). 2ª. Ed. Trad. João da Maia. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 226, nota 6.

58 "Instrução". In Marcos Carneiro de Mendonça. O Intendente Câmara. Manoel Ferreira da Câmara Bethencourt e Sá. Intendente Geral das Minas e dos Diamantes (1764-1835). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,

1933, pp. 26-27.

As afinidades entre D. Rodrigo e Luís Pinto inserem-se no universo normativo das sociedades do Antigo Regime, caracterizado, entre outros aspectos, pela formação de redes de poderes informais e por uma complexa trama de relações sociais que incluíam o parentesco, a amizade e a prestação de serviços. Obedeciam, como assinalou António Manuel Hespanha, a uma lógica clientelar, na qual as trocas de favores entre os "mais amigos" eram "situações sociais quotidianas e corporizavam a natureza mesma das estruturas sociais, sendo, portanto, vista como a 'norma'".60 Dentro dessa lógica, assume importância fundamental a noção de desequilíbrio, isto é, relações assimétricas de amizade, formadas entre o dominante (credor), aquele quem dá o benefício, e o dominado (devedor) que se coloca na posição de prestar um serviço futuro e uma atenção devotada.