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3 CURRÍCULO INTERCULTURAL, DIFERENCIADO E ESPECÍFICO

3.2 As teorias curriculares

Apesar de fazer parte da educação, os primeiros estudos de currículo enquanto campo de pesquisa surgiram nos Estados Unidos no pós Guerra Civil, quando o processo de industrialização exigia que as grandes indústrias contratassem mão de obra qualificada e o governo almejava a homogeneidade cultural dos filhos de imigrantes e da comunidade rural para promover um projeto nacional comum (MOREIRA e SILVA, 1999); a preocupação dos especialistas em currículo era “planejar ‘cientificamente’ as atividades pedagógicas e controlá-las de modo a evitar que o comportamento e o pensamento do aluno se desviassem de metas e padrões pré-estabelecidos” (MOREIRA e SILVA, 1999, p. 9).

Segundo Pacheco (1996), as chamadas teorias tradicionais do currículo preocupavam-se com a forma e os objetivos da educação para formar uma massa de trabalhadores especializados ou uma educação acadêmica, oferecida para a população menos favorecida. Esse modelo de organização da educação foi predominante nos Estados Unidos e em diversos países, inclusive o Brasil, até os anos 80. O currículo tradicional era centrado na questão técnica onde “o sistema educacional fosse capaz de

especificar precisamente que resultados pretendia obter, que pudesse estabelecer métodos para obtê-los de forma precisa” (SILVA T., 1999, p. 19).

As teorias tradicionais pouco consideravam o meio em que o aluno estava inserido e as experiências vividas fora da sala de aula; por isso, ignoravam importantes questões culturais, políticas e sociais. A formação escolar centrava-se em expor o conteúdo pré- selecionado para atender a um fim específico, independente do contexto histórico, político e social. Esse processo de construção do currículo é denominado por Veiga-Neto (2002, p. 44) de “tranquilidade epistemológica”, pois o currículo não era problematizado e havia um certo consenso no que deveria ser ensinado.

Apesar dos estudos sobre currículo terem iniciado no século XIX, a ideia de um currículo assimilador e reducionista, já era utilizada pelo Império no Brasil colônia na educação escolar oferecida aos povos indígenas com o objetivo de homogeneizá-los dentro da sociedade nacional e transformá-los em mão de obra para o campo e os trabalhos artesanais.

Por sua vez, as teorias curriculares críticas defendiam que o currículo fosse pensado considerando sua constituição social e histórica, a qual não podia continuar se preocupando apenas com a organização do conhecimento escolar (MOREIRA e SILVA, 1999). As teorias críticas, então, passaram a problematizar o que e para quem estava sendo ensinado, no centro da questão dessas teorias estavam a preocupação em conhecer as diferenças sociais e os mecanismos de controle do poder para superá-los.

Um dos exemplos foi o movimento de reconceitualização do currículo, que questionava os parâmetros tecnocráticos estabelecidos pelas teorias tradicionais e, inspirado em estratégias interpretativas de investigação dos significados subjetivos que as pessoas dão às suas experiências pedagógicas, buscava desnaturalizar as categorias que vivemos cotidianamente (SILVA T., 1999). O currículo é visto como experiência e como local de interrogação e questionamento da experiência; o currículo não se limita à vida escolar, mas à vida inteira (PACHECO, 1996).

Outro movimento tomava como elemento central a crítica marxista da sociedade capitalista, que gira em torno da dominação de classe. Para esse movimento, o currículo pode ser pensado como “[...] um campo em que se tentará impor tanto a definição particular de cultura de classe ou grupo dominante quanto o conteúdo dessa cultura” (MOREIRA e SILVA, 1999, p. 27). Nessa visão crítica, não se pode pensar em cultura sem discutir questões de grupos e classes sociais, a dominação daqueles que detêm a propriedade dos recursos materiais sobre aqueles que possuem sua força de trabalho. No

centro da perspectiva crítica do currículo deveria estar uma concepção de identidade que o concebesse como histórica, contingente e relacional:

As teorias críticas são teorias de desconfiança, questionamento e transformação radical. Para as teorias críticas o importante não é desenvolver técnicas de como fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o currículo faz. (SILVA T., 1999, p. 27)

Segundo Veiga-Neto (2002), a questão do poder era uma discussão central das teorias críticas e, por isso, o currículo deve proporcionar aos educandos uma compreensão sobre as questões sociais, econômicas e políticas local e mundial. O poder se manifesta nas relações sociais (ou de poder) em que certos indivíduos ou grupos submetem outros à sua vontade. Assim a escola e o currículo funcionariam como um forte instrumento para manutenção dessa realidade por expressar os “interesses dos grupos e classes colocados em vantagem em relações de poder” (MOREIRA e SILVA, 1999, p. 29).

Os movimentos pós-modernistas e pós-estruturalistas radicalizam a crítica do currículo, questionando as formas do conhecimento da pedagogia crítica e fazendo sua conexão com as relações de poder, assinalando o início da pedagogia pós-crítica. As teorias pós-críticas relacionaram o processo educacional como uma questão de saber, poder e identidade social e cultural, e ajudaram a aumentar a compreensão dos processos de dominação e marginalização nas relações de gênero, etnia, raça e sexualidade. O termo multiculturalismo começou a ser utilizado por “um movimento legítimo de reivindicação dos grupos culturais dominados no interior daqueles países para terem as suas formas culturais reconhecidas e representadas na cultura nacional” (SILVA T., 1999, p. 88), chamando a atenção para a diversidade cultural no mundo contemporâneo e combatendo a homogeneização cultural.

Contudo, Walsh (2009) pondera que a lógica multicultural é incorporada pelo capitalismo multinacional como uma abertura para a diversidade, mas, ao mesmo tempo, cria ferramentas de controle e domínio do poder hegemônico nacional, regional e global. Na verdade, o multiculturalismo é utilizado para minimizar os conflitos étnicos, sob o pano de fundo da igualdade racial.

Para as teorias pós-críticas, discutir somente a luta de classe, gênero e identidade, não dá conta de problematizar a relação de poder para uma parcela da população historicamente silenciada. Para Veiga-Neto (2002, p. 49), somente a distinção “binária entre opressores-oprimidos são insuficientes para dar conta de uma realidade que é

multifacetada e muito complexa” que é uma sociedade globalizada. Por isso, o currículo deve agregar as discussões sobre questões de etnia e gênero.

É nessas experiências das teorias pós-críticas que se situa a luta dos povos indígenas por um currículo que valorize seus conhecimentos, seus saberes e que seja agente de fortalecimento identitário. A luta dos povos indígenas não está centrada na luta de classes, nem de gênero ou identidade, mas na luta pela terra, na luta pelo respeito como sociedade que possui uma cosmovisão específica.

O pós-colonialismo reúne teorias que analisam as heranças e as relações políticas, econômicas, sociais e culturais geradas pela colonização, a partir do que foi escrito tanto do ponto de vista dominante quanto do dominado, propondo uma análise das relações de poder entre os colonizadores e os povos colonizados. Assim como outras teorias pós- críticas, a teoria pós-colonialista também está centrada na questão de nacionalidade, identidade e raça. Conforme Silva T. (1999, p. 133):

A análise pós-colonial junta-se, assim, às análises pós-moderna e pós- estruturalista, para questionar as relações de poder e as formas de conhecimento que colocaram o sujeito imperial europeu na sua posição atual de privilégio.

É nesse território de insubordinação e resistência epistêmica à imposição de uma cultura dominante que se constrói o currículo indígena.

A partir da literatura feita pelo dominante, a análise utiliza-se do princípio de que “as narrativas imperiais são vistas como parte do projeto de submissão dos povos colonizados”. Já no caso da literatura dos dominados, o discurso é analisado “como narrativa de resistência ao olhar e ao poder imperiais” (SILVA T., 1999, p. 129). A crítica pós-colonialista questiona a centralidade do currículo na produção literária e cultural europeia e propõe uma decolonialidade desse currículo:

Uma perspectiva pós-colonial exige um currículo multicultural que não separe questões de conhecimento, cultura e estética de questões de poder, política e interpretação. Reivindica, fundamentalmente, um currículo descolonizado. (SILVA T., 1999, p. 134)

Na perspectiva pós-colonialista, a cultura nacional confunde-se com a cultura dominante, já que o que unifica não é o resultado de um processo de reunião das diversas culturas que constituem uma nação. Então, todo o conhecimento advindo de grupos étnicos historicamente oprimidos, como o do negro e o do índio, torna-se elemento “folclórico” ou “não científico”. Por isso, deve-se questionar o como e por quem ele foi escrito, o lugar de onde se fala e o que está por trás dessa fala.

Para o pós-colonialismo, um currículo multicultural crítico deve dar conta de problematizar as desigualdades educacionais centradas nas relações de gênero, raça e etnia, questionando as bases históricas, políticas e sociais da construção da ideia de raça e etnia:

[...] incorporar as estratégias de desconstrução das narrativas e das identidades nacionais, étnicas e raciais que têm sido desenvolvidos nos campos teóricos do pós-estruturalismo, dos estudos culturais e dos estudos pós-coloniais. (SILVA T., 1999, p. 105)

Por sua vez, o pensamento decolonial defende que, apesar da emancipação política dos países latino-americanos, as heranças coloniais se mantêm por padrões de dominação do poder, do ser e do saber. A colonialidade, então, reprime/nega/silencia os modos de produção de conhecimento, os saberes, o mundo simbólico, as imagens do colonizado e impõe novos.

Para Silva et alii (2013), o pensamento decolonial permite refletir criticamente a política curricular brasileira. Para Oliveira e Candau (2010), as contribuições do pensamento decolonial apresentam grande potencial de reflexão sobre a interculturalidade, as relações étnico-raciais e a educação, por dar ênfase a uma nova epistemologia, que emerge dos povos historicamente silenciados.

A Teoria de “Pensamento desde a Borda” emergiu desde e como uma resposta às fronteiras epistemológicas imperiais/territoriais e da retórica da modernidade da salvação (o conhecimento científico levaria a uma sociedade moderna e superior). O pensamento desde a borda é a epistemologia da alteridade a partir de um projeto decolonial que está enraizado nas experiências das colônias e dos impérios subalternos. Assim surgem das epistemologias que foram negadas/silenciadas pela expansão imperial, negando o privilégio epistêmico das humanidades eurocentradas.

Entendemos assim que o pensamento desde a borda, a partir de uma lógica intercultural, evidencia questões sociais, políticas e culturais de conflitos e tensão da lógica colonial que envolve as relações educacionais na educação escolar indígena.

Como observamos, as teorias pós-críticas do currículo centram seus discursos nas relações de poder geradas pelas interações sociais, econômicas, políticas e culturais. Dentro do campo das teorias pós-críticas, acreditamos que os estudos culturais e a teoria decolonial poderão conter e propiciar categorias importantes de análise sobre o currículo intercultural indígena. Para isso, buscamos refletir com mais profundidade nas contribuições de diferentes pesquisadores, como Fleuri (1999), Canen e Oliveira (2002), Carvalho (2004), Walsh (2008), Candau e Russo (2010), Santos (2000).