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2.4 A Educação Escolar Indígena: debatendo a educação específica, diferenciada e intercultural

Já vimos que a educação é um direito básico, que deve ser garantido a toda a população. Nos casos dos povos indígenas, a partir das mobilizações realizadas pelo movimento indígena e indigenista pró-constituinte, a legislação garante uma educação específica, diferenciada e intercultural, mas a consolidação desse direito ainda é um tema de muitas divergências e que está longe de ser concretizado para todos os povos.

Em relação ao direito conquistado legalmente a uma educação específica, Testa (2007, p. 10) afirma que:

[...] existe uma lacuna entre o reconhecimento legal de direitos educacionais específicos e sua implementação, que depende não apenas de condições para a execução de políticas, mas também exige revisão e a reelaboração de propostas concebidas num plano mais amplo para os contextos locais onde as escolas estão inseridas.

A efetivação do direito à educação indígena intercultural e específica ainda é algo que o Estado não consegue garantir na sua plenitude, apesar de reconhecermos que o número de alunos, escolas e professores vêm aumentando gradativamente ao longo dos anos. Para entender as razões desse não atendimento, buscamos compreender os conceitos de interculturalidade, específico e diferenciado e qual sua relação com a educação indígena, embora sabendo que outras variáveis, no conjunto da política educacional, interferem na efetivação dos direitos, entre elas a dotação orçamentária para o desenvolvimento da educação escolar indígena.

Na revisão da literatura, encontramos vários trabalhos que estudam o conceito de educação específica e diferenciada para um determinado povo ou grupos regionais de povos, como Franchetto (1994), Nascimento (2000, 2005), Testa (2007), Silva B. (2010),

Valentini (2010) e Barbalho (2012). É comum entre eles destacar o esforço dos povos em implementar uma educação diferenciada e específica, mas que é encontrada resistência, justamente nos órgãos de administrativos e de controle que insistem em não reconhecer as práticas específicas e legítimas de cada povo.

Quando pensamos nessa questão do não reconhecimento das práticas específicas, podemos citar o exemplo da caderneta escolar que para alguns coordenadores indígenas não atende a especificidade da educação escolar do seu povo, por não contemplar a oralidade, as práticas próprias e os conteúdos específicos.

Um outro ponto importante para entender a razão por que os indígenas e diversos setores da sociedade civil organizada reivindicaram essa escola específica, diferenciada e intercultural é o fato de que, à época do primeiro contato com o “homem branco”, existiam no território brasileiro mais de 1.400 povos indígenas, com diferentes costumes, línguas, culturas, organização social e, principalmente, com diferentes cosmovisões. Contudo, toda essa diversidade social, linguística, cultural, política foi agrupada na categoria índio ou indígena. O modelo de escola era único para todos as nações do território colonizado:

A construção da educação escolar indígena diferenciada poderá ser uma realidade, na medida em que o Estado brasileiro garantir aos povos indígenas o direito de ser diferente, com todas as prerrogativas inerentes a qualquer cidadão comum, a começar pelo respeito aos costumes e tradições que lhes são próprios. (VALENTINI, 2010, p. 97)

No processo de reivindicar políticas públicas específicas para os povos nativos, os indígenas adotaram o termo genérico “indígena” como um símbolo de uma luta comum, do reconhecimento da identidade, da terra e do direito de serem diferentes. Ao mesmo tempo, os povos entendem que existem especificidades de cosmovisão entre um povo indígena e outro, e que, nesta perspectiva, o termo indígena não evidencia essa diversidade e a diferença entre eles. Por isso, a especificidade torna-se bandeira de luta a partir da conquista de direitos comuns a todos os indígenas.

Dentro do campo da educação, com o termo diferenciado “pretende-se inferir tratamento diferenciado à escola indígena, distinguindo-a das outras unidades de ensino” (BARBALHO, 2012, p. 180). Nascimento (2000) explica a diferença, como eixo para a definição do currículo da escola indígena e categoria básica de produção de conhecimento; significa, dentro da história da educação escolar indígena, uma ruptura epistemológica, política e ideológica com as pedagogias dominantes.

Silva B. (2010), ao investigar o conceito de educação diferenciada do povo Xukuru Kariri de Minas Gerais e o lugar e papel ocupado pela escola e pela educação escolar no contexto da comunidade, através da análise de narrativas e imagens, verificou que o conceito de educação diferenciada está ligado ao entendimento da escola indígena como ativo de resgate/fortalecimento da língua, da cultura e das tradições, da afirmação da identidade indígena, como também de espaço de fronteira e de diálogo entre as diferenças:

Tudo isso me leva a pensar e a defender que não existe uma escola indígena diferenciada sem uma pedagogia da diferença capaz de guiar o planejamento de um currículo; e em seu centro estaria a discussão da identidade e da diferença como produção, as formas como são produzidas e fixadas. (SILVA B., 2010, p. 120)

[...] a escola diferenciada está diretamente relacionada ao “resgate” da língua, das tradições, e da cultura. (SILVA B., 2010, p. 121)

Uma escola indígena diferenciada pode ser aquela em que o “resgate” de costumes e tradições não se resuma ao exótico, ao folclórico, à fixação de um índio genérico, abstrato, preso numa cultura estática, reivindicando uma identidade cultural congelada num passado morto, ciladas da diferença. (SILVA B., 2010, p. 122)

Assim, a ideia de uma escola indígena diferenciada está ligada às práticas pedagógicas próprias dos povos indígenas, onde a cultura e as tradições dialogam o tempo todo com o currículo, com a escola e com a comunidade escolar. Nela a identidade daquele povo é constantemente (re)afirmada e (re)inventada. O termo diferenciado aqui é entendido não apenas como uma diferença de população, cor ou etnia, mas, acima de tudo, cultural e de visão do mundo sobre o passado, o presente e o futuro (LUCIANO– BANIWA, 2006).

Silva An. (2012), ao estudar a educação dos índios Tikuna, observou que o ensino- aprendizagem nas referidas escolas está sendo desenvolvido na direção de uma educação específica e diferenciada que possibilite a afirmação étnica e cultural daquele povo. A sua pesquisa ressaltou que o ensino da língua materna e de arte e cultura Tikuna possibilitou o fortalecimento da sua identidade étnica, “mantendo viva a sua língua e muitos elementos de sua cultura” (SILVA AN., 2012, p. 3). A pesquisadora concluiu que, mesmo com esses avanços do currículo específico, é preciso superar as deficiências na área de formação dos professores Tikuna e a resistência do poder público em reconhecer a especificidade do povo para que se possa efetivar uma educação diferenciada e específica.

Já o termo “específico”, dá a conotação de que cada povo indígena tem uma cosmovisão diferente (ou específica), a partir dela se dá a relação desse povo com a natureza, com a terra, com o outro (índio e não-índio).

Assim como nos colocam Vieira-Rodrigues e Nascimento-Maciel (2012, p. 166) quando tratam que “a educação diferenciada, pautada numa proposta de interculturalidade é, sobretudo, perceber o ‘Outro’ numa perspectiva de reconhecimento e respeito da diversidade cultural existente em nosso país”.

Para Monte (1994b, p. 424) da condição de escola diferenciada “derivam práticas curriculares distintas na seleção dos conteúdos, na sua forma de transmissão, na fluência”. Para Franchetto (1994), para cada povo, cada situação, é preciso estudar, pesquisar e idear um projeto especifico. Ao trabalhar com língua indígena, por exemplo, deveríamos definitivamente eliminar a alfabetização através de cartilhas: a escrita se introduz através de qualquer língua (português ou indígena) pela produção de unidades significativas, estimulantes, contextualizadas, de frases a textos.

As autoras observam que tratar de escola indígena é pensar uma nova pedagogia, vista a partir dos elementos nascidos na própria comunidade escolar, contextualizando com a realidade da comunidade, de forma a contemplar seus saberes e práticas (MONTE, 1994a, 1994b; FRANCHETTO, 1994) e buscar alcançar os objetivos educacionais dentro do projeto de sociedade do seu povo.

A materialização do currículo intercultural indígena, contudo, depende também da participação e do empenho dos professores e da compreensão dos que fazem a escola sobre essa temática. A formação dos professores indígenas é um desafio neste sentido e é vista sob duas óticas: a primeira trata da falta de índios com formação em nível exigido para atuação nas modalidades ou áreas do conhecimento, principalmente nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio; a realidade que foi mudando com os anos, pois os indígenas procuraram cursos em faculdade e outras instituições próximas. Hoje, há poucos professores não-indígenas atuando em escolas indígenas. Aqueles que permanecem, estão com a anuência das lideranças; a segunda ótica trata da formação específica nos cursos chamados de Licenciatura Intercultural18, já que a maioria cursou

18 Em Pernambuco, a Licenciatura Intercultural no nível de graduação é oferecida pela Universidade Federal de Pernambuco – Campus do Agreste, tendo a primeira turma iniciado em 2009 e concluído em 2013, com 150 estudantes.

pedagogia ou outros cursos de licenciatura que não eram voltados para a formação de professores indígenas.

Essa materialização sofre influência também da relação com que os conteúdos e saberes dos programas curriculares e dos livros didáticos oficiais dialogam com os saberes e conteúdos específicos da sociedade indígena. Para Quijano (2005), a colonialidade do saber criou uma dualidade do conhecimento produzido no mundo, no processo denominado de “racionalização”. A racionalização determina as formas de se produzir conhecimento a partir das bases coloniais de poder. Assim, o conhecimento produzido pelas minorias não é válido. Neste contexto, a interculturalidade tem sido um termo adotado pelos povos indígenas para destituir os conteúdos de saber oficial como modo revelado de posições de poder e dominação teórico-cognitiva, permitindo uma desconstrução teórica e epistêmica destes discursos e construindo experiências diferenciadas (ALMEIDA, 2001).

A colonialidade do saber contribui com argumentações para a compreensão das razões para que o currículo intercultural sofra tantas barreiras para sua efetivação.

O Projeto Político Pedagógico Pankará (PANKARÁ, 2007) apresenta a relação de interculturalidade proposta por esse povo, no sentido de que a educação formal possa fortalecer os aspectos que caracterizam a identidade do índio Pankará, sem perder de vista o que os aproxima e diferencia um do outro:

É através do que vivemos no dia-a-dia que procuramos nos relacionar com os outros, valorizando a pesquisa para conhecermos como os nossos antepassados viviam, como vivemos e como os outros vivem. Comparando e buscando o que nos diferencia e o que nos identifica enquanto povo específico e culturalmente diferenciados. (PANKARÁ, 2007, p. 28)

A partir desta perspectiva, Santos (1997) defende uma educação em direitos humanos a serviço de uma política progressista e emancipatória. O próprio conceito de interculturalidade é objeto de disputa e de manipulação, uma vez que certas percepções colocam a interculturalidade como estratégia de fácil assimilação ao modo de uma integração romantizada entre culturas (sem considerar as relações de força que sobre elas incidem) (FEHLAUER, 2012).

A teoria decolonial propõe que a construção de uma nova epistemologia tenha como ponto de partida a diferença colonial, pensada a partir dos grupos minoritário e historicamente silenciados, seguindo lógicas diferentes para a construção desse conhecimento.

Entendemos assim que a escola indígena é o locus legítimo para a construção dessa nova prática pedagógica específica, diferenciada e intercultural.

2.5 A Escola Indígena enquanto locus da educação específica, diferenciada e