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As vozes sociais sobre leitura que emergiram do enunciado 2

5 METODOLOGIA

6.2 AS VOZES SOCIAIS SOBRE LEITURA QUE EMERGIRAM DAS “MEMÓRIAS

6.2.2 As vozes sociais sobre leitura que emergiram do enunciado 2

No início do enunciado 2, o autor mostra as pessoas que influenciaram o seu percurso de leitor:

[...] papai era um leitor assíduo, comprava jornais todos os dias e os lia, também gostava de ler revistas e uns livrinhos que carregava no bolso com histórias de bangue- bangue. Mas não recordo de leituras feitas por ele ou por mamãe: Contavam histórias, algumas eram relatos de suas infâncias e muitas delas eram para que tivesse medo de ir a rua, falar com estranhos, receber objetos de estranhos e coisas desse tipo. Às vezes, perguntava o que tinha naqueles livrinhos e ele dizia que eram histórias para pessoas adultas. Isso sempre despertava curiosidade em mim, e um dia quando já sabia ler, li um livrinho daqueles, mas não gostei, nem cheguei a concluir a leitura, realmente não era coisa para criança. Aos quatro anos de idade comecei a estudar no jardim de infância, era uma escola particular e embora tenha muitas fotos dessa época, não me lembro dessa passagem. Aos seis anos de idade, segundo meus pais, comecei a ler e papai passou a comprar gibis para que eu lesse, também comprava uns livrinhos que não tinham o que ler, era para serem pintados, e eu adorava colori-los.

Nesse trecho do texto, observamos que as pessoas que influenciaram o leitor 2, na construção do seu percurso inicial de leitor, foram o seu pai e a sua mãe. A lembrança que o leitor 2 guarda do seu contato com a leitura na infância é de relatos dos seus pais sobre a infância deles, com o intuito de educar. O seu pai lia livros de bangue-bangue e dizia não ser apropriado para crianças, mas por causa da curiosidade um dia o leitor 2 decidiu ler e não gostou. O leitor 2 não guarda muitas lembranças das suas leituras na infância e tem o auxílio dos pais para recordar esse período, por exemplo, quando completou seis anos de idade, segundo relato dos

seus pais, começou a ler e seu pai começou a comprar gibis e livros para colorir, livros compostos somente pela linguagem visual. Nesse relato, observamos que a voz social da esfera familiar influenciou a voz social do leitor e que, a partir do relato, compreendemos que a voz que sobressai é a voz da leitura desvalorizada pela cultura oficial, a voz da leitura de quadrinhos, de gibis.

Nesse trecho, o leitor 2 conta a sua experiência de leitura aos dez anos de idade:

Aos dez anos, na minha festa de aniversário, recebi de minha madrinha um livro que continha vários contos de fadas. Nunca esqueci disso, pois ganhei um concurso de redação na quarta série por produzir um texto e sei que essa leitura foi fundamental para a produção do texto solicitado pela professora.

Entre o trecho anterior e esse atual, observamos que houve um silenciamento do leitor 2 sobre a sua experiência de leitura, que ocorreu entre os seis e os dez anos de idade, período em que já estava na escola. Já ao completar dez anos de idade, o leitor 2 narra, com bastante entusiasmo, sobre um livro com vários contos de fadas que ganhou da sua madrinha. Então, compreendemos que a voz social, nessa fase, que influenciou o leitor 2, no seu percurso de leitor, foi a sua madrinha, ou seja, a voz da esfera familiar, a voz da leitura valorizada pela cultura oficial.

No decorrer do texto, o leitor 2 ainda fala sobre a sua experiência de leitura na infância:

Também tenho a lembrança de que nessa época recebi como prêmio um livro que se chama “O menino do dedo verde”. Até hoje o guardo e minhas filhas também leram depois de saber como o ganhei. Na época, papai soube que havia estreado uma peça teatral que se chamava “Tistu, o menino do dedo verde” e fomos assistir. Foi a primeira vez que fui ao teatro.

O leitor 2 lembrou que, aos dez anos de idade, ganhou como prêmio um livro, que remete aos livros denominados de literatura infantil, valorizados pela escola. A voz que sobressai nesse trecho é a voz da esfera escolar, a voz da leitura valorizada pela cultura oficial.

Ao narrar sobre a sua experiência de leitura, na fase da adolescência, o leitor 2 mostrou a sua preferência de leitura nessa época:

Na minha adolescência lia Júlia e Sabrina todos os dias, e mamãe reclamava muito, pois sempre que me procurava eu estava lendo e não cumpria meus afazeres domésticos. Era uma maratona ter que esconder os livros e, tantos ela encontrasse, como os escondia, dizendo que aquilo só servia para eu viver sonhando pelos cantos, apaixonada pelos rapazes que nunca existiriam. Era mais difícil escondê-los do que comprá-los, pois guardava o dinheiro do lanche para adquiri-los. Depois começamos a trocar entre amigas os livros, o que facilitava, pois assim não os guardávamos em casa e sempre tínhamos algo novo para ler, embora todas as histórias fossem iguais, o que na época não achava. A cada história era um novo romance e uma nova aventura.

A leitura predileta do leitor 2, na fase da adolescência, foi a leitura de revistas vendidas, na época, em bancas de revistas: Júlia e Sabrina, consideradas, na época, como inapropriadas para adolescentes e por causa disso era uma leitura proibida por sua mãe. Porém, isso não impediu que o leitor 2 lesse tais livros, ao contrário, a proibição fez com que ele tivesse mais vontade de lê-los. O leitor 2, impulsionado pelo forte desejo de experienciar o prazer da leitura desses livros, deixava de lanchar para juntar dinheiro e comprar tais livros e suas amigas faziam o mesmo, que depois trocavam umas com as outras. Portanto, a voz da leitura que apreendemos nesse trecho é a voz da leitura literária desvalorizada pela cultura oficial.

Ainda se referindo à fase da adolescência, o leitor 2 fala sobre sua experiência de leitura:

No meu ginásio li um único livro, Don Quixote e fiquei encantada. A professora pediu que fizéssemos uma representação de trechos da obra e foi um sucesso. Cada grupo fez sua peça teatral e eu participei como a dona de uma hospedaria onde Don Quixote e Sancho Pança ficaram hospedados.

O leitor 2 fala sobre a sua experiência de leitura no ginásio, que hoje é denominado ensino fundamental. Ele lembra que leu a obra Dom Quixote e a partir dessa leitura a professora pediu que fizessem uma peça teatral. Nesse trecho do texto, a voz social que sobressai é a voz da esfera escolar, a voz da leitura valorizada pela cultura oficial. Ressaltamos que o leitor 2 parece fazer uma distinção das leituras que realizou na adolescência entre leitura não escolar e leitura escolar e ainda relaciona essa leituras ao prazer de ler. Observamos esse fato no trecho anterior e no citado acima. No trecho anterior, o leitor 2 parece se referir à leitura não escolar, a leitura por prazer quando cita a experiência da leitura das revistas Júlia e Sabrina. No trecho acima, o leitor 2 se refere à leitura experienciada por prazer, na escola, como única leitura realizada no ensino fundamental, associando a leitura literária valorizada pela cultura oficial como única fonte de leitura na escola. Porém, entendemos que o texto literário deveria ser mais um, dentre as variadas modalidades de textos orais e escritos a serem ensinados na escola e não mais, somente, “o texto exemplar da língua e da cultura letrada, como ainda insistem, em certos segmentos da Academia, algumas vozes guardiãs ciosas do preciosismo literário” (SILVA NETO, 2007, p. 30).

Sobre a fase de leitura no ensino médio, o leitor 2 diz:

Quando cursei o primeiro ano do Ensino Médio, ainda morava no Rio de Janeiro e estudava num colégio chamado Mendes de Morais, localizado na Ilha do Governador. Lá tive uma professora que se chamava Eny e nunca esqueci seu rosto. Ela era alta, uma senhora de seus cinquenta anos de idade, muito educada, bonita, o cabelo bem arrumado, bem vestida e que, várias vezes, quando eu subia no ônibus para ir ao colégio, ela já estava sentada e sempre lendo algum livro. Era uma cena invejável, pois nunca consegui ler num ônibus, pois fico tonta. Durante o ano ela nos mandou ler algumas obras, sempre livros de

poemas e também tínhamos que recitá-los em sala. Era muito difícil, mas tínhamos que memorizar os poemas e depois apresentá-los para toda a turma. No final do ano ela realizou conosco um sarau que foi muito bom, pois não tínhamos mais como ficar inibidos, já éramos todos conhecidos.

A pessoa que influenciou o leitor 2, nessa fase, foi uma professora, que o marcou com imagens fortes de momentos de leitura, por exemplo, quando estava no ônibus e via sempre a professora lendo algum livro. Durante o período do primeiro ano, no ensino médio, essa professora orientou a leitura de alguns livros de poesia. O leitor 2 lembra da dificuldade de ter que decorar os poemas que a professora prescrevia para recitar em sala de aula. Nesse trecho, o autor não associa a leitura de poemas ao prazer de ler, como vimos nos dois trechos citados anteriormente, mas como algo obrigatório. Compreendemos, então, que a voz que se sobressai nessa fase é a voz da leitura literária valorizada pela cultura oficial, a voz da esfera escolar.

Ainda sobre a experiência de leitura no ensino médio, o leitor 2 diz:

O segundo e o terceiro ano do Ensino Médio já morava em Pedro Velho, cidade do interior, cerca de cem quilômetros de Natal. Tive a mesma professora de Língua Portuguesa nas duas séries, chamava-se Ana Maria e ainda era estudante universitária. Ela fazia uma ciranda, onde líamos várias obras, sempre de acordo com a Escola Literária que estávamos estudando. Foi quando li várias obras, como:

Sinhá Moça, O moço loiro, Senhora, Cinco minutos, A viuvinha, Navio Negreiro, O homem e o mar e outras que já

nem me lembro mais. Já no terceiro ano a leitura inicial foi

Os Sertões, de Euclides da Cunha. Quase não consegui

terminar de ler, pois as duas primeiras partes do livro eram bastante difíceis e só gostei quando cheguei à terceira parte. Depois quando já estava na universidade acabei relendo Os Sertões e não achei tão ruim como da primeira vez. Li também O Quinze, Vidas Secas e A Bagaceira, todos no terceiro ano.

No segundo e no terceiro ano do ensino médio, o leitor 2 teve contato com várias obras consideradas como “texto exemplar da língua e da cultura letrada” (SILVA NETO, 2007, p. 30) por alguns segmentos da sociedade. O leitor 2 diz que, para a prática de leitura no segundo ano do ensino médio, era feita uma ciranda em que todos os alunos liam. Essas leituras eram realizadas de acordo com a escola literária que eles estavam estudando. Sobre esse aspecto, Silva Neto (2007) apresenta críticas, por exemplo, às práticas pedagógicas nos ensinos fundamental e médio, que ainda são pautadas na historiografia, nos critérios das escolas literárias e nos estilos de época. Os alunos liam as obras prescritas pela professora e, no terceiro ano, ele afirma que leu, entre outras, Os Sertões, de Euclides da Cunha, e que somente tomou gosto pela leitura desse livro quando já estava na universidade, período em que o leu novamente. Nesse trecho, depreendemos a voz da esfera escolar, a voz da leitura valorizada pela escola.

O leitor 2 também apresenta as leituras que realizou na universidade:

Quando cheguei na UFRN tive contato com outras leituras, li Iracema, O guarani e Ubirajara para realizar um trabalho e gostei bastante. Recordo-me também de ter lido Os de

Macatuba a pedido do professor Humberto. Foi a primeira

obra que li de um autor do Rio Grande do Norte. Lia muitas apostilhas, umas interessantes, outras nem tanto. Não me recordo de ter comprado um único livro, pois eram caros e não era um costume entre os alunos da época, assim como hoje também não o é.

Na universidade, o leitor 2 teve contato com outras obras da literatura, que formam a tradição erudita nacional, os quais ele diz ter gostado de ler. Iracema, O guarani e Ubirajara foram os livros que ele leu no início do curso de Letras com o objetivo de realizar um trabalho, sendo esse um dos objetivos na leitura de um texto, os quais apresentamos na seção 3.7, de acordo com Solé (1998, p. 22): “[...] aplicar a informação obtida com a leitura de um texto na realização de um trabalho, etc.”. Nesse período, realizou também a leitura de apostilas, tendo gostado somente de algumas, em um posicionamento previsível, uma vez que as apostilas, geralmente, são compostas por textos teóricos que não têm como objetivo principal proporcionar prazer na leitura, e sim informar sobre algo; por vezes, configura-se como uma

leitura dura, mas necessária. No final do trecho, ele diz que na universidade não comprou nenhum livro, pois eram muito caros. Segundo Marucci (2009), conforme discutido na introdução deste trabalho, por muito tempo, o livro vem sendo um objeto utilizado, por algumas esferas da sociedade, como a única fonte de leitura que determina se o sujeito é um leitor ou não. É usado, também, para disseminar o discurso de que o “brasileiro não lê”. Então, como a maioria dos brasileiros não possui condições financeiras para comprar livros, pois são caros, passam a ser considerados não leitores. Porém, o exemplo desse leitor prova que esse discurso está mais para ser considerado uma falácia, tendo em vista que, apesar de não ter comprado livros, ele se mostra um leitor ativo nesse período.

O leitor 2 lembra da sua experiência de leitura no início da sua prática de ensino de língua materna:

Ao começar a ensinar, descobri que tinha que estudar a gramática, pois naquela época ou se sabia a gramática normativa ou não se era bom professor de Língua Portuguesa. Passei a estudá-la com perseverança, pois morria de medo de não saber responder aos alunos ou ficar insegura perante uma classe repleta de crianças prontas para me desafiar.

Nessa fase, o leitor 2 sentiu a necessidade de estudar a gramática, pois no período em que ele começou a ensinar a gramática normativa era o objeto principal de ensino de língua materna, em detrimento do ensino de textos variados, da “[...]interpretação crítica e posicionada sobre fatos e opiniões, a capacidade de defender posições e de protagonizar soluções[...]” (ROJO, 2009a, p. 33).

No curso de pós-graduação, ao escrever tais memórias, o leitor 2 afirma:

Hoje leio bem menos do que gostaria, pois o tempo é muito pouco e quando não estou ministrando as aulas estou preparando ou corrigindo as atividades feitas. Procuro ler jornais e revistas, até para informar-me dos acontecimentos. A última leitura que fiz foi O caçador de

pipas, pois tenho conseguido ler os textos recomendados

para ler alguma coisa nova e sem compromisso, acho que essa seja a melhor leitura, mesmo que muitas vezes não seja tão proveitosa para enriquecer meus conhecimentos. Gosto de ler sem ter dia e hora para terminar, na praia, dormir e acordar para continuar a leitura, sem preocupações.

O leitor 2, ao falar sobre as suas últimas experiências de leitura, afirma que não tem muito tempo para ler, pois lhe sobra pouco tempo para esse “prazer”. Ele lê com o objetivo de se “informar sobre um determinado fato”, configurando-se um dos objetivos contemplados por Solé (1998), apresentados na seção 3.7 deste trabalho. Os materiais que ele mais utiliza para alcançar tal objetivo são revistas e jornais. Porém, ele deixa claro que a verdadeira leitura é aquela sem compromisso, sem preocupações, a leitura de devaneio, por exemplo, o livro O caçador de pipas foi a sua última leitura. Portanto, nesse trecho, sobressai-se a voz do autor do texto, a voz da leitura da literatura desprezada pela cultura oficial, a voz da cultura não oficial.

Nessa análise, observamos que a leitura com a finalidade de “[...] devanear, preencher um momento de lazer e desfrutar [...]”, conforme apresenta Solé (1998) na introdução, é a concepção de leitura principal que tem regido a prática de leitura do leitor 2 desde a fase da infância até a fase da escrita das “memórias de leitura”, em uma pós-graduação. Silva Neto (2007, p. 32) mostra que a prática da leitura, prioritária em sala de aula, está relacionada ao prazer, “como meio e fim dos incentivos à leitura”. Segundo nosso entendimento, isso se configura um problema, pois, como mostramos na introdução com base em Solé (1998), o leque de objetivos e finalidades que faz com que o leitor se situe perante um texto é amplo e variado, não se limitando ao prazer de ler. Quanto a essa questão, os professores de língua materna devem, na sua prática de ensino de leitura, levar em consideração esse fator, pois vivemos em um mundo no qual a todo tempo os sujeitos precisam tomar decisões e se posicionar perante alguma questão. Desse modo, ao trabalhar somente com textos literários, em uma prática que visa apenas o prazer da leitura, os professores estarão agindo de maneira ingênua, deixando assim de formar sujeitos autônomos. Portanto, faz-se necessária uma prática de ensino de leitura que vise o sujeito-cidadão, o aluno em toda a sua amplitude social e histórica, que o

faça participante da vida social, não apenas um mero contemplador, como no modelo de leitura que se volta, prioritariamente, para o deleite.