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O OLHAR EXOTÓPICO: O OLHAR EXTERNO/DISTANCIADO

mínimo, duas vozes. Por fim, o autor amplia a questão das relações dialógicas para os campos de estilos de linguagem, dialetos sociais, entre outros, numa abordagem não mais linguística, e, sim, discursiva, dialógica.

A seguir, trataremos do conceito bakhtiniano de exotopia.

3.5 O OLHAR EXOTÓPICO: O OLHAR EXTERNO/DISTANCIADO

O conceito bakhtiniano de exotopia ─ que significa “lugar exterior”, “olhar externo” ─ está presente em toda a sua obra, relacionando-se diretamente às discussões do eu e do outro, que estão fundamentados no princípio da alteridade. Bakhtin (2010b), em seus estudos sobre o olhar exotópico, abordou as questões da atividade estética e da atividade da pesquisa em Ciências Humanas. Nesta seção, iremos abordar o olhar exotópico na atividade estética e no capítulo da metodologia retomaremos esse conceito na perspectiva da atividade da pesquisa em Ciências Humanas.

De acordo com o autor, um sujeito com o olhar distanciado, o olhar externo (o olhar exotópico), é dotado de um excedente de visão ─ que somente esse distanciamento, esse olhar de fora, proporciona. É exclusivamente devido a esse excedente de visão que o sujeito possui que ele é autorizado a dar o acabamento estético ao outro.

Entretanto, ocorre uma problemática quando o sujeito vê a sua imagem externa ─ no espelho, no retrato ou em um quadro, por exemplo ─ e tenta dar um acabamento de si. Em relação a essa problemática, Bakhtin (2010b, p. 28, grifo do autor) argumenta:

[...] é fácil verificarmos que o resultado inicial dessa tentativa será o seguinte: minha imagem visualmente expressa começa, em tons vacilantes, a definir-se ao lado de minha pessoa vivenciada por dentro, destaca-se apenas levemente da minha autossensação interna em um sentido adiante de mim e desvia-se um pouco para um lado, como um baixo-relevo, separa-se do plano da autossensação interna sem desligar-se plenamente dela; é como se eu me desdobrasse um pouco, mas não me desintegrasse

definitivamente: o cordão umbilical da autossensação irá ligar minha imagem externa ao meu vivenciamento interior de mim mesmo. É necessário algum novo esforço para me imaginar a mim mesmo nitidamente en face, desligar-me por completo de minha autossensação interior; conseguindo isto, somos afetados em nossa imagem externa por algum vazio original, por algo imaginário e um

estado de solidão um tanto terrível dessa imagem.

Isso ocorre porque não temos para a imagem externa, de acordo com Bakhtin (2010b, p. 28),

[...] um enfoque volitivo-emocional à altura, capaz de vivificá-la e incluí-la axiologicamente na unidade exterior do mundo plástico- pictural. Todas as minhas reações volitivo-emocionais, que

apreendem e organizam a expressividade externa do outro ─

admiração, amor, ternura, piedade, inimizade, ódio, etc. – estão orientadas para o mundo adiante de mim; não se aplicam diretamente a mim mesmo na forma em que eu me vivencio de

dentro; eu organizo meu eu interior ─ que tem vontade, ama, sente,

vê, e conhece ─ de dentro, em categorias de valores totalmente

diferentes e que não se aplicam de modo imediato à minha expressividade externa. No entanto, minha autossensação interna e a vida para mim permanecem no meu eu [...].

Esse processo de tentar ver a si mesmo, na imagem externa, como se o eu estivesse diante de si mesmo não é possível, pois, como o filósofo russo declarou no trecho citado, “minha autossensação interna e a vida para mim permanecem no meu eu”, ou seja, não se exteriorizam.

Um exemplo do contemplar a imagem externa é a contemplação de si no espelho, conforme indica Bakhtin (2010b, p. 30-31):

Contemplar a mim mesmo no espelho é um caso inteiramente específico de visão da minha imagem externa. Tudo indica que neste caso vemos a nós mesmos de forma imediata. Mas não é assim; permanecemos dentro de nós mesmos e vemos apenas o nosso reflexo, que não pode tornar-se elemento imediato da nossa visão e vivenciamentos do mundo: vemos o reflexo da nossa imagem externa, mas não a nós mesmos em nossa imagem externa; a imagem externa não nos envolve ao todo, estamos diante e não dentro do espelho; o espelho só pode fornecer o material para a auto-objetivação, e ademais um material não genuíno. De fato, nossa

situação diante do espelho sempre é meio falsa: como não dispomos de um enfoque de nós mesmos de fora, também nesse caso nos compenetramos de um outro possível e indefinido, com cuja ajuda tentamos encontrar uma posição axiológica em relação a nós mesmos [...].

Como podemos observar, nem mesmo a nossa imagem refletida no espelho é capaz de nos dar um acabamento, porque ela é somente a nossa imagem externa, que, conforme ressalta o autor, “não nos envolve ao todo, estamos diante e não dentro do espelho”, ou seja, tudo que me é interno continua interno, não sendo possível alcançar, perceber ou externar no espelho. Então, como não conseguimos ver o real, concreto eu interior no espelho, compenetramo-nos em um outro possível e indefinido, para, a partir dele e com a sua ajuda, tentarmos encontrar uma posição axiológica, dessa forma, tornando-nos um outro (possível) em relação a nós mesmos.

Faraco (2008, p. 43) afirma que “nunca estamos sozinhos frente ao espelho: um segundo participante está sempre implicado no evento da autocontemplação”; esse segundo participante é o “outro possível”. Em relação a essa discussão, o autor explica:

É ingênuo pensar [...] que no ato de olhar-se no espelho há uma fusão, uma coincidência do extrínseco com o intrínseco. O que ocorre, de fato, é que, quando me olho no espelho, em meus olhos olham olhos alheios; quando me olho no espelho não vejo o mundo com meus próprios olhos e desde o meu interior; vejo a mim mesmo

com os olhos do mundo ─ estou possuído pelo outro (FARACO,

2008, p. 43).

Alves (2010b) lembra que, de acordo com Bakhtin (2010b), somente como Narciso é que contemplo o meu reflexo na água e a imagem externa integra totalmente o horizonte concreto de minha visão.

Ao tratar da imagem externa da ação e a sua relação externa com os objetos, Bakhtin (2010b, p. 42) afirma que

a imagem externa da ação e a sua manifesta relação externa com os objetos do mundo exterior nunca são dadas ao próprio agente, e se

irrompem na consciência atuante acabam se tornando

inevitavelmente um obstáculo, um ponto morto da ação.

As principais características plástico-picturais da ação externa ─

epítetos, metáforas, comparações, etc. ─ nunca se realizam na

autoconsciência do agente e nunca coincide com a verdade interior do objetivo, do sentido da ação. Todas as características artísticas transferem a ação para o outro plano, para outro contexto axiológico, no qual o sentido e o objetivo da ação se tornam imanentes ao acontecimento da sua realização, tornam-se apenas um elemento que assimila a expressividade externa da ação, isto é, elas transferem a ação do horizonte do agente para o horizonte do contemplador distanciado.

Numa obra de arte, por exemplo, o seu acabamento não está dado, nem é dado pelo artista (autor-criador), agente que a pintou, o acabamento é feito pelos sujeitos que a contemplam. Assim também aconteceu na análise do corpus deste trabalho, já que o acabamento provisório foi dado pela pesquisadora.

A seguir, iremos tratar do conceito de ethos discursivo.

3.6 O CONCEITO DE ETHOS DE ARISTÓTELES E O CONCEITO DE ETHOS