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Os ethe de leitor construídos no enunciado 1

5 METODOLOGIA

6.3 Os ethe de leitor construídos nas “memórias de leitura”

6.3.1 Os ethe de leitor construídos no enunciado 1

No início do texto, ao falar sobre sua iniciação no mundo da leitura, o leitor 1 assume um tom crítico e inicia a sua construção de imagem de leitor:

Certamente que meu pai nunca manifestou inclinações para pedagogo, mas lembro que o que lhe dava prazer em me ver “ler” era ver as caras de “sem noção” dos meus dois primos, um pouco mais velhos que eu, em

“desvantagem intelectual”. Os coitados mal juntavam as sílabas quando meu pai oferecia-lhes trechos do mesmo livro. Disfarçavam o sorriso amarelo e saíam envergonhados por estarem aquém das expectativas de “leitores em formação”. Era uma espécie de competição de leitura não declarada. Apesar de não haver as formalidades de medalhas e pódio, larguei na frente. Creio que esse foi o meu pontapé inicial no mundo da leitura aos cinco anos.

Nesse trecho, a partir das expressões que marcamos, compreendemos que o leitor 1 quis construir uma imagem de leitor iniciante acima da média, já que seus primos, mais velhos que ele, ainda não sabiam ler.

O leitor 1 ainda apresenta as suas leituras na fase da infância,:

Os anos da infância iam se passando e, já um pouco grandinho, andei lendo alguns paradidáticos da 7ª ou 8ª séries, como, por exemplo, Menino de Asas, creio que de Homero Homem; A ilha perdida, de Maria José Dupré; e até, pasmem, O guarani, de José de Alencar.

A expressão que selecionamos, “e até, pasmem”, reforça a construção da imagem de leitor acima da média que o leitor 1 construiu ao mostrar que, apesar da idade, muito novo, leu um clássico da literatura brasileira, fato incomum para um aluno do ensino fundamental, pois esse tipo de leitura era (é) realizada somente no ensino médio.

O leitor 1 fala a respeito de sua entrada para o curso de Letras:

A década de 90 foi de rupturas para mim, com minha entrada no curso de Letras da UFRN e, consequentemente, a verdadeira descoberta da leitura. Nunca havia lido tanta literatura em minha vida! Creio que mais de 180 livros em quatro anos de curso. Comecei com alguns contos durante a disciplina de Teoria da Literatura I. Uma espécie de ensaio para o que viria pela frente. Serviram, pois, de aperitivo.

Nesse trecho, o leitor 1, a partir das suas escolhas de discurso e dos léxicos que marcamos, mostra-se um leitor entusiasmado, pois, segundo ele, foi uma verdadeira descoberta da leitura, associando-a à leitura literária. Adianta, por meio das escolhas lexicais “ensaio” e “aperitivo”, como se sucederam as suas experiências de leitura no decorrer dos anos seguintes.

Ainda no curso de Letras, o leitor 1 apresenta a lista de autores que leu (grifos nossos):

Basta só dizer que depois de Eça de Queirós conheci, ora em prosa, ora em verso, nomes como os de Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Drummond, Fernando Pessoa, Shakespeare, José Lins do Rego, Cecília Meireles, Dante Alighieri, Florbela Espanca, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo, Rubem Fonseca, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Fernando Sabino, com quem tive contato por carta, com direito a receber de presente seu primeiro romance, O encontro marcado, numa edição especial com capa dura, autografado e com dedicatória!

Nessa lista, observamos que só constam nomes de autores valorizados socialmente. O leitor 1 chama a atenção para um presente que recebeu do autor Fernando Sabino, com quem teve contato por cartas. Ele colocou no enunciado a imagem da página do romance que tinha a dedicatória, a qual pode ser vista no Anexo 1. Portanto, ao citar a lista de autores que fazem parte do cânone da literatura nacional e internacional, entendemos que o leitor 1 quer construir um ethos de leitor de leituras valorizadas pela cultura oficial, reforçando-o ao mostrar a imagem da dedicatória do livro que ele ganhou de um autor que faz parte da lista.

O leitor 1 continua a lista de autores que leu (grifos nossos):

Então, não fiquei satisfeito e fui conhecer também o que contavam as histórias de Jorge Amado, Bernardo Guimarães, Camilo Castelo Branco, Raul Pompeia, Lygia Fagundes Telles, Manuel Antônio de Almeida, Gustavo Flaubert, José de Alencar, Homero, José Américo de Almeida, Graça Aranha, Clarice Lispector, Mário de Sá-

Carneiro, Franklin Távora, Goethe, Martins Pena, Gil Vicente, Artur Azevedo, Júlio Ribeiro, Franz Kafka, Álvares de Azevedo, Jean Paul-Sartre. Para não dizer que fiquei só de prosa, li verso a verso Cesário Verde, Antero de Quental, Gregório de Matos Guerra, Silva Alvarenga, João Cabral de Melo Neto, Tomás Antônio Gonzaga, Luís de Camões, Basílio da Gama, Cruz e Souza, Bento Teixeira, Castro Alves, Zila Mamede, Mário Quintana... Ufa! E, de quebra, dois livros de sermões selecionados do Pe. Antônio Vieira.

Essa lista de autores ainda faz parte do repertório de leitura do leitor 1 na graduação. Ele segue apresentando autores de obras de literatura privilegiada pela escola. Dessa forma, entendemos que o leitor 1 quer se mostrar um leitor de literatura socialmente valorizada.

O leitor 1 revela as leituras que realizou depois que terminou a graduação:

Já bem encaminhado literariamente, resolvi, por volta de 2001, ler filosofia. Conheci, então, os escritos de Platão, o pensamento socrático, o super-homem de Nietzsche, mas atravanquei o meu percurso na complexidade do pensamento de Sören Kiekegard. Para desanuviar a nebulosa filosófica que pairou sobre minha cabeça, vi mais aplicabilidade da filosofia em minha vida nas páginas de

Mais Platão, menos Prozac, de Lou Marinoff – um livro que

ensina, através do método PEACE, a resolver problemas do cotidiano pelo pensamento e atitudes filosóficos. Esse também acabei emprestando para quem precisava pôr ordem no caos diário.

Na expressão marcada no início do fragmento, o leitor 1 constrói uma imagem de leitor já bastante experiente na leitura literária e que, portanto, resolveu ler filosofia. Então, apresenta uma lista de nomes de filósofos, marcados no fragmento acima. O fato de citar autores de área diferente dos anteriores, que eram da literatura, possivelmente, indica que o leitor 1 deseja ser visto como um leitor eclético.

Depois, começou a ler, de forma independente, obras da Psicopedagogia (grifos nossos):

Como uma coisa puxa a outra, resolvi não só ler o que era recomendado durante o curso. Parti, então, para as escolhas próprias. Foi assim que conheci o legado de grandes mestres da educação e da pedagogia brasileira: Paulo Freire, Moacir Gadotti, Luís Carlos Libâneo, Cipriano Luckesi, Ilma Alencastro Veiga, Selma Garrido Pimenta, Dermeval Saviani foram alguns nomes que guardo com gratidão pelos livros que li e pelos ensinamentos que obtive.

O leitor 1, nesse seu relato, mostra-se um leitor independente, pois escolhe o que quer ler, apresentando mais uma lista de autores, marcados no fragmento.

No decorrer da narrativa, o leitor 1 fala sobre as leituras que realizou no curso de especialização em língua portuguesa (grifos nossos):

Quase dois anos depois, chegou, então, o início do curso. Pronto! Desde então minhas leituras mudaram de endereço: Irandé Antunes, Marcos Bagno, Mário Perini, Maria Marta Pereira Schere, Mario Eduardo Martelotta, Rosa Virgínia e Silva, Maria Aparecida Lino Paulikonis, Eni Orlandi, Maria Helena de Moura Neves, Rodolfo Ilari, Stella Maris Bortoni-Ricardo, José Luís Fiorin, Ingedore Kock, Sírio Possenti, João Wanderley Geraldi, Luíz Carlos Travaglia, Maurizio Gnerre, Lucília Garcez, Dominique Maingueneau, Inez Sautchuck, Alcir Pécora, Angela Kleiman, Patrick Charedeau, entre outros. Essa turminha tem sido minha leitura de cabeceira e de todos os momentos de ócio. Contudo, paralelamente a todos eles, ainda consulto as gramáticas de um Bechara, de um Celso Cunha e – por que não? – um Napoleão. Claro que todas as ressalvas necessárias sobre o que eles concebem ser uma língua.

No fragmento acima, o leitor 1 mostra, através da expressão “minhas leituras mudaram de endereço”, que ele passou a ler autores de gramática e da área da linguística, leituras diferentes das que ele já havia realizado, como mostramos nos fragmentos anteriores. Apresenta mais uma lista de autores que leu, dentre eles,

destaca os de gramáticas: Bechara, Celso Cunha e Napoleão, posicionando-se favorável, em parte, ao seu ensino. Então, ao chamar a atenção para a mudança de leituras e ao citar os autores que leu na especialização, entendemos que o leitor 1 quer se mostrar eclético.

No final do enunciado, o leitor 1 faz uma reflexão da sua trajetória como leitor:

Bem, então lá se foram, nesses catorze anos de ledor, 411 livros lidos e vividos. Às vezes me pergunto sobre o que fazer quando não houver mais o que realmente ler; se devo me contentar com qualquer coisa insípida e inodora. Para essa pergunta retórica, caro leitor perspicaz, dou-te a resposta:

Quando a indesejada das leituras chegar (não sei se dura ou caroável), talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga para ela:

– Alô, iniludível! Conheces o verbete chamado releitura? Aí, então, o meu dia será bom, pode até a noite descer – com toda a solidão do mundo e seus sortilégios. Encontrar- me-á na poltrona, à meia luz, relendo Machado, Drummond ou Bandeira, ou simplesmente passeando os olhos pelas minhas estantes, sempre tão arrumadas, com cada livro em seu lugar.

Nessa reflexão, o leitor 1 contabiliza a quantidade de livros que leu em catorze anos: 411 livros. Se dividirmos essa quantidade pelo tempo que ele afirma ter lido, verificamos uma média de 29 livros lidos por ano e de 2 livros lidos por mês. Além da citação a respeito da grande quantidade de livros lidos, o leitor 1 conversa com o leitor do seu texto sobre o momento em que não tiver mais o que ler. Nesse sentido, compreendemos que ele deseja ser visto como um leitor maduro. Constrói uma imagem de leitor acima da média, visto que, provavelmente, uma pequena quantidade de pessoas leu ou lerá esse número de livros no tempo em que ele leu. Observamos que, no final do fragmento, ele cita autores que gostaria de reler, os quais escreveram livros que formam a tradição erudita nacional (ROJO, 2009). Portanto, quer construir uma imagem de leitor erudito, de leituras valorizadas pela cultura oficial.

Enfim, compreendemos que o ethos pré-discursivo do professor de língua portuguesa, de sujeito não leitor, nesse enunciado, não se confirma. O leitor 1,

apesar das atividades da docência, consegue manter uma prática de leitura bastante ativa. Percebemos, também, que o leitor 1 passou a se considerar um “verdadeiro leitor” somente quando chegou à universidade; se vê como leitor de leituras diversas ao citar livros e autores de várias áreas do conhecimento e como um leitor acima da média ao ressaltar a quantidade de livros lidos. Nós entendemos que o leitor 1 deseja construir uma imagem de leitor de leituras diversas, mas, principalmente, uma imagem de leitor de leituras literárias valorizadas socialmente. Podemos observar esse fato quando ele cita, em todo o texto, prioritariamente, nomes de autores de livros literários privilegiados pela cultura oficial, além de construir uma imagem de leitor acima da média, pela quantidade de livros que afirma ter lido.