• Nenhum resultado encontrado

5. DISCUSSÃO COMPARATIVA E LIÇÕES PARA O BRASIL

5.1 ASPECTOS ESTRUTURAIS E HISTÓRICOS DA REGULAÇÃO NO SETOR

Em termos gerais, a estrutura regulatória do setor de abastecimento, na Inglaterra, é centralizada e bipartite, com a separação funcional entre os órgãos reguladores econômico (OFWAT) e ambiental (DWI; EA), ao passo que as estruturas norte-americana e brasileira são institucionalmente pluralistas, descentralizadas, com responsabilidades repartidas entre órgãos reguladores de âmbitos federativos distintos e participação de diversos intervenientes. Estas características estruturais da regulação estão relacionadas à forma de provisão dos serviços e, inclusive, às questões históricas pelas quais passou o setor nesses países. O caminho trilhado pela estrutura política e as decisões dos principais atores, acumuladas ao longo do tempo, deixam legados, nem sempre fáceis de se reverter. No Brasil, há um consenso entre diversos autores a respeito do vácuo institucional após o fim do Planasa, no início da década de 1990. Esta lacuna institucional perdurou até que fosse discutido um novo desenho, a fim de orientar a política setorial dos serviços de saneamento no país (CONFORTO, 2000; TUROLLA, OHIRA, 2007; CORREIA, 2008; SOUZA, 2011; MADEIRA, 2010; SOUZA, COSTA, 2013; CARVALHO, SAMPAIO, 2015).

Neste contexto, Souza e Costa (2013) argumentam que o desenvolvimento da política pública brasileira, no setor, foi obstruído em virtude de incertezas decisórias e indefinições institucionais. Os autores esclarecem sobre a noção de dependência de trajetória, segundo a qual as decisões públicas são impactadas por escolhas passadas, e

afirmam que a arena decisória brasileira foi dividida por interesses estadualistas e municipalistas, o que dificultou o consenso sobre pontos fundamentais para a expansão do setor e atrasou as ações pragmáticas que poderiam fazer avançar essa atividade, conforme segue:

[...] O exercício generalizado do veto político pelos dois principais grupos de interesse mantém a incerteza decisória por décadas, afetando negativamente os mecanismos de governança e o financiamento setorial [...] Uma política pública ao iniciar uma trajetória de mudança pode sofrer a obstrução dos arranjos institucionais existentes. A dependência de trajetória explicaria a longa permanência das características institucionais da política pública de saneamento e o sucesso da obstrução sistemática pelos interesses estadualistas às inovações propostas (SOUZA, COSTA, 2013, p. 588).

A obstrução da política pública setorial, em perspectiva histórica, não é exclusiva do Brasil. Na Inglaterra, também houve disputas políticas e as privatizações não ocorreram sem conflito. As autoridades locais questionaram o governo central a respeito da legitimidade da privatização das Autoridades Regionais de Águas (RWA). Neste sentido, pode-se traçar um paralelo entre as RWA inglesas e as CESBs brasileiras. No Brasil, o Planasa minorou o papel dos municípios, ao implantar, a partir do início da década de 1970, um modelo de provisão dos serviços de abastecimento em âmbito estadual (CESBs), o que conferiu às Companhias Estaduais um protagonismo na prestação dos serviços. De forma similar, na Inglaterra, ocorreu a transferência dos ativos, até então de propriedade local, para companhias regionais.

A criação de Autoridades Regionais de Águas fez com que ocorresse uma nacionalização do setor, pois os ativos foram transferidos dos governos locais para as companhias regionais (RWA), cuja administração ficou a cargo da União. A Lei das Águas de 1983 consumou o afastamento das municipalidades da gestão setorial, a partir da restrição de sua participação na composição dos conselhos. A transferência integral de responsabilidades se deu, em 1983, com a total nacionalização do setor. Esse processo ocorreu sem qualquer compensação financeira aos governos locais (TUROLLA, 2002).

Quando as Autoridades Regionais (RWA) começaram a enfrentar problemas, sobretudo financeiros, analisava-se, em 1985, a possibilidade de privatizar o setor. Neste cenário de emergente privatização das RWA, as autoridades locais questionaram o governo central a respeito da legitimidade dessa operação, pois a União se preparava para a venda de ativos que não lhe pertenciam, já que os investimentos tinham sido realizados pelas comunidades locais, que se viam no direito de uma compensação financeira pela transação.

As companhias de saneamento foram negociadas no mercado de capitais em novembro de 1989, independentemente dos questionamentos locais.

As CESBs também passaram por dificuldades financeiras na década de 1980, no entanto, não foram privatizadas e a participação do setor privado, no Brasil, difere substancialmente entre os dois modelos, uma vez que os serviços, na Inglaterra, são prestados por empresas privadas, em sua totalidade, enquanto, no Brasil, a participação privada é bastante baixa (alcança até 5% da população atendida). Enquanto na Inglaterra os aspectos conflituosos estiveram concentrados entre autoridades locais e governo central (nacional), os embates brasileiros ocorreram principalmente entre os governos municipal e estadual pela titularidade dos serviços. Cunha (2011, p. 10) expõe que

No município de São Paulo, os serviços de saneamento básico eram prestados diretamente pelo poder público local até 1870, quando se fez a concessão a um operador privado, a Companhia de Água e Esgotos da Cantareira. Em 1892, o Estado de São Paulo encampou a operação dos serviços [...] Após sucessivas reorganizações administrativas, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP), criada em 1973, passou a operar a rede, sem celebrar qualquer contrato de concessão com o município de São Paulo.

Nos Estados Unidos, o movimento se deu na direção inversa à inglesa. Antes da aprovação da Lei de Planejamento de Recursos Hídricos de 1965 (Water Resources Planning Act), o governo federal era o principal responsável pela gestão dos recursos hídricos norte- americanos. Nas décadas de 1970 e 1980 ocorreu um processo de descentralização, caracterizado pelo aumento do papel dos estados. O antagonismo principal, no período, deu- se entre o então presidente Carter e os membros pró-desenvolvimentistas do Congresso. Agravou-se no final da década de 1970, de modo que o ambiente de conflito e desconfiança contribuiu para um esforço, por parte do governo federal, de reforçar a transparência na prestação de contas referentes aos programas do setor (VIESSMAN JR, 1982).

As indefinições e disputas políticas, entre outras questões relacionadas a conflitos de interesse, seja em âmbito público (governos de diferentes esferas) ou privado (possibilidade de privatizações) não são exclusivas nem dos países analisados, nem do setor de abastecimento de água. A transparência, a experiência e, sobretudo, a independência dos órgãos reguladores são aspectos fundamentais na resolução de conflitos sem que haja favorecimento de determinado grupo de interesse pela captura do órgão. Os fatores relacionados à transparência, à capacidade regulatória e à autonomia das principais entidades reguladoras dos países estudados serão tratados nos tópicos sobre aspectos tarifários e ambientais, uma vez que as regulações econômica e ambiental, nesses países, são geralmente exercidas separadamente.