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4. O MODELO REGULATÓRIO BRASILEIRO

4.1. HISTÓRICO DO SETOR DE ABASTECIMENTO BRASILEIRO

No Brasil, o setor abastecimento começou a se desenvolver por volta do fim do século XIX, com obras nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, entre outros.99 Na época, o governo delegava a prestação dos serviços, predominantemente, a empresas estrangeiras, via concessão pública, dentro de um modelo institucional e financeiro flexível, que perdurou até o início da década de 1930 (FARIA, NOGUEIRA, MULLER, 2005; CORREIA, 2008). A partir de então, o setor passou por importantes mudanças até adquirir a atual configuração. As transformações pelas quais passou o setor de saneamento brasileiro no século XX podem ser caracterizadas em torno de quatro períodos principais: a) antes de 1930; b) de 1930 à década de 1950; c) de 1960 à década 1980; d) a partir de 1990, com destaque para o período posterior a 2007.100

A prestação de serviços de saneamento, no período entre 1850-1930, foi caracterizada pela flexibilidade e pela permissão do ingresso de empresas estrangeiras em setores de utilidade pública.101 O ritmo crescente de urbanização do Brasil, ao longo da década de 1930, passou a exigir um incremento nos setores de infraestrutura, inclusive no que diz respeito aos sistemas de saneamento básico. É neste contexto que começou a se estruturar a regulação do setor no Brasil, a partir do Código das Águas, promulgado por meio

99 Em 1890, o engenheiro norte-americano Rudolph Hering elaborou o projeto do sistema de abastecimento de

Santos e o engenheiro Theodoro Sampaio passou a chefiar os serviços de águas e esgotos da Cia. Cantareira, em São Paulo (NETTO, 1984).

100 Ano de promulgação da Lei Federal nº 11.445, atualmente a principal peça de regulação do setor no Brasil. 101 Além do abastecimento de água e do esgotamento sanitário, as empresas internacionais eram responsáveis

pela prestação de serviços de transporte ferroviário, distribuição de energia elétrica, transportes urbanos, etc. (LUCENA, 2006).

do Decreto nº 24.643, de julho de 1934.102 O Código dava ao governo a possibilidade de fixar tarifas. Iniciou-se, nesta década, a intervenção estatal e um processo de nacionalização de concessionárias estrangeiras, de modo que os investimentos no setor passaram a ser provenientes do orçamento governamental (LUCENA, 2006).

O período entre 1930 e 1950 foi marcado pela gestão municipal direta dos serviços. Predominou uma estrutura em que o mesmo agente formulava as políticas, prestava os serviços e controlava, ele próprio, o serviço prestado. As Constituições Federais de 1934 e de 1937 definiram, em seus artigos 13 e 26, respectivamente, a competência municipal para os serviços de caráter local, o que foi reafirmado pela Constituição Federal de 1946, no Artigo 28, segundo o qual a autonomia dos municípios era assegurada quanto à “organização dos serviços públicos locais.” Embora houvesse, na década de 1940, uma preocupação do governo federal com a questão do saneamento, articulada à temática da saúde, uma multiplicidade de órgãos atuava de forma descoordenada.103 Já no início dos anos 1950, a

constituição de autarquias municipais e mecanismos de financiamento conferiram maior autonomia à gestão municipal dos serviços (BRITTO, 2001).104

A presença federal no setor se dava, principalmente, a partir de apoio técnico na organização das autarquias municipais, por meio do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), vinculado ao Ministério da Saúde e, posteriormente, transformado em Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) (CORREIA, 2008). Neste cenário, nota-se que a estrutura de gestão do saneamento não estava vinculada à regulação dos recursos hídricos, exercida com base no Código das Águas. No contexto político, a necessária participação dos usuários não era observada, sendo inexistente o controle social na gestão dos serviços (BRITTO, 2001).

102 O Código das Águas constituiu a peça inicial de regulação, e à época a mais marcante, dos serviços públicos

no Brasil, tendo influenciado outros setores, como o hídrico. Esse primeiro instrumento de controle do uso de recursos hídricos no Brasil foi, à época, a base para a gestão pública do setor de saneamento e teve papel importante na regulação das concessões de energia no país. A partir do Código das Águas, fora instituído o mecanismo de precificação pela taxa de retorno, denominado no Código “serviço pelo custo” (BRITTO, 2001).

103 De acordo com Lucena (2006), a partir da década de 1960, foram definidos papéis e funções institucionais

específicas aos atores do setor. Faria, Nogueira e Muller (2005, p. 500), por sua vez, afirmam que, no final da década de 1980 e início de 1990, “[...] a formulação das políticas urbanas ficou a cargo de vários ministérios e, sendo conduzida de forma descoordenada, agravou a crise [...]” do saneamento na década de 1990. Cunha (2011, p.8) esclarece que “a cooperação entre os entes federados é bastante prejudicada pela confusão existente entre os atores e as funções que estes desempenham na gestão do setor, tanto no debate técnico, quanto no debate político”. Dessa forma, o problema da atuação descoordenada dos diversos atores no saneamento básico parece persistir.

104 Na década de 1940, foram criados, por exemplo, o Departamento Nacional de Obras de Saneamento

(DNOS) e o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). O SESP, criado em 1942 mediante acordo entre os governos brasileiro e norte-americano, assinou, em 1952, convênios de construção e financiamento de sistemas sanitários com vários municípios (LUCENA, 2006).

Entre os anos de 1950 a 1970, a provisão da infraestrutura ocorria de forma direta pelo Estado, estando a regulação, de modo geral, limitada à expedição de normas pelo poder executivo (GALVÃO JR., PAGANINI, 2009). A partir dos anos 50 foram lançadas as bases para novas mudanças no setor, tendo surgido, ao longo da década de 1960, iniciativas em prol de uma gestão centralizada no nível estadual, de modo que os serviços foram, aos poucos, concedidos a companhias estaduais, fazendo com que o setor adquirisse uma nova configuração, a partir do processo centralizador empreendido pelo governo. Ao longo dos anos 1960 e 1970, a estrutura do setor se consolidou, a partir da criação de diversos órgãos, programas e planos ligados ao poder público estadual e federal. Esta estrutura se manteve estável até meados de 1980, tendo vigorado, até o final dessa década, um modelo de regulação no qual a propriedade era estatal (TUROLLA, OHIRA, 2007, BRITTO, 2001; CORREIA, 2008).

Destacam-se, neste cenário, o Banco Nacional de Habitação (BNH), criado pela Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, encarregado de implantar uma política de desenvolvimento urbano e realizar o diagnóstico inicial da situação do setor de saneamento e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), criado pela Lei nº 5.107, de 13 de Setembro de 1966, para financiamento do setor, em conjunto com o BNH. Em um contexto de aumento constante da demanda pelos serviços de saneamento e favorável à arrecadação do FGTS, o governo federal, na busca por uma política nacional de saneamento, criou, em 1968, o Sistema Financeiro de Saneamento (SFS) no âmbito do BNH, para centralizar recursos e coordenar as ações do setor. Inicialmente, o SFS contava apenas com os recursos do BNH. A partir de 1969, o BNH foi autorizado a aplicar os recursos do FGTS nas operações de financiamento do setor de saneamento (BRITTO, 2001; LUCENA, 2006; TUROLLA, 2002; FARIA, NOGUEIRA, MULLER, 2005).

Após a criação desses institutos de financiamento, na década de 1960, um importante passo foi dado no setor ao longo de 1970, década relevante para o saneamento básico. Foi estabelecido o Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), em 1971, no intuito de ampliar a oferta dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. O Planasa, fundamentado em um conjunto de objetivos e princípios que nortearam a política nos anos subsequentes a sua criação, alterou a configuração da prestação dos serviços de

saneamento no Brasil, os quais estavam, no início da década de 1970, predominantemente voltados ao âmbito municipal.105

O Plano foi instituído com metas claramente definidas, as quais abrangiam o atendimento de 80% da população urbana com serviços de abastecimento e 50% com serviços de esgotamento até 1980. A adoção de instrumentos como esse para ampliação da cobertura dos serviços de saneamento reflete a preocupação do governo militar com o desenvolvimento do setor no período, considerando que os atores ligados ao planejamento se conscientizavam de que os serviços de saneamento, caso negligenciados, comprometeriam o desenvolvimento socioeconômico e afetaria as atividades industriais, bem como as condições de saúde da população (TUROLLA, OHIRA, 2007).

O Planasa representou um marco quanto à ampliação da cobertura de abastecimento de água e, em menor grau, de esgotamento sanitário no país, ao permitir a realização de grandes investimentos no setor, nas décadas de 1970 e 1980.106 Apesar disso, recebeu

diversas críticas em relação à desconsideração de diferenças regionais e à manutenção dos desequilíbrios no acesso aos serviços, com a região Norte apresentando os piores desempenhos nos serviços de abastecimento de água e a região Sudeste os melhores; à adoção de tecnologias demasiadamente custosas, incompatíveis com a realidade nacional; ao modelo centralizado e rígido das CESBs, as quais enfrentaram sérias dificuldades financeiras em meio ao ambiente hiperinflacionário da década de 1980 e à ausência de incentivos à eficiência (TONETO JR., SAIANI, 2006, SEROA DA MOTTA, 2004; SOUZA, COSTA, 2013).107

105 Diversos autores, alguns deles abordados a seguir, tratam a respeito da obrigatoriedade dos municípios

entregarem a concessão dos serviços às recém-criadas companhias estaduais como condição para aderir ao Planasa. Neste sentido, Tupper e Resende (2004, p. 30) esclarecem que “[...] Among the targets established by the PLANASA there was a well defined intention of stimulating state companies [Companhias Estaduais de Saneamento Básico—CESBs] instead of municipal companies”.

106 De acordo com Lucena (2006), a década de 1970 teria sido cunhada como Década do Saneamento Básico,

devido ao progresso das atividades realizadas no setor. O Planasa foi instituído com o propósito de ampliar a cobertura do saneamento no país e, ao centralizar a gestão e a execução dos serviços em empresas públicas estaduais, buscou a obtenção de ganhos de escala, pela atuação das companhias em áreas mais amplas, bem como aumentar a capacidade de alavancar financiamentos para o setor (SEROA DA MOTTA, 2004). Em 1970, apenas 60% da população urbana era abastecida de água. Este percentual passou para 86%, em 1991, e 91%, em 1995. Já a cobertura do esgotamento passou de 22%, em 1970, para 49%, em 1991, alcançando, em 1995, 66% (PARLATORE, 2000). Em valores absolutos, o número de pessoas beneficiadas com o abastecimento de água, no período, passou de 11,9 milhões para 49,6 milhões. Já em relação ao esgotamento sanitário, os números apresentam uma melhora na prestação dos serviços que passa de 6,1 milhões para 17,4 milhões de pessoas atendidas (FARIA, FARIA, 2004). Parlatore (2000) apresenta os investimentos realizados em abastecimento de água e esgotamento por meio do Planasa, Pronurb e Pró-saneamento, entre 1970-1998.

107 Seroa da Motta (2004) argumenta que a cobertura dos serviços não foi incrementada de forma linear entre

regiões e faixas demográficas, de modo que, concentrada em regiões e classes de renda mais ricas, não conseguiu mitigar os efeitos distributivos. Apesar da ampliação da cobertura dos serviços, o Plano não permitiu

A cobrança de tarifas irrealistas pelas CESBs e os custos elevados oriundos de ingerência política na sua gestão foram fatores que contribuíram para a insustentabilidade do Plano (PARLATORE, 2000). Os recursos financeiros aplicados no Planasa eram oriundos do FGTS, principal fonte financiadora; dos orçamentos da União, dos estados e dos municípios; do próprio BNH e dos empréstimos internos e externos adquiridos junto a agências de fomento. O SFS mobilizava os recursos necessários ao Plano, reunindo-os por meio do Programa de Financiamento para o Saneamento (FINANSA), ligado ao BNH, e dos Fundos de Financiamento para Água e Esgoto (FAEs), constituídos pelos governos estaduais. As Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs) eram as responsáveis pela execução de obras no setor, pela manutenção dos sistema e pela prestação dos serviços (FARIA, FARIA, 2004; LUCENA, 2006; TUROLLA, OHIRA, 2007).

Neste contexto, o modelo do Planasa fez com que a União condicionasse a oferta de crédito para investimentos no setor à criação das CESBs, as quais teriam acesso aos recursos do BNH. Ao incentivar os municípios a concederem os serviços às companhias estaduais de saneamento, o governo federal centralizou a prestação dos serviços em nível estadual.108 De acordo com Souza e Costa (2013, p. 591), isso marcou o início de uma relação

assimétrica e conflitiva entre estados e municípios, uma vez que as CESBs ganharam amplo poder “[...] tornando-se inteiramente responsáveis pela definição de prioridades, tecnologias e estratégias de expansão”, protagonismo permitido pelo arranjo criado pelo Planasa.109

o alcance da universalização, sobretudo nas regiões desprivilegiadas socioeconomicamente. De acordo com Souza e Costa (2013), a estadualização da provisão dos serviços pelas CESBs, nos anos 1970, representou uma relação assimétrica entre municípios e estados e uma posição política autoritária dos estados buscando impor suas regras e seus interesses sobre os municípios. Eles colocam que essa posição de dominância é responsável por condicionar a atual política pública setorial no Brasil.

108 Convém esclarecer que os recursos só seriam disponibilizados a empresas públicas estaduais que prestassem

o serviço regionalmente, de modo que os estados que desejassem aderir ao Plano devessem criar uma CESB, que atuaria como operadora pública e concessionária dos municípios, os quais deveriam entregar a operação desses serviços públicos a uma CESB, caso quisesse receber os recursos do governo federal. Isso fortaleceu os estados e induziu cerca de 75% dos municípios a entregarem a operação de seus serviços de abastecimento e esgotamento às CESBs (CUNHA, 2011). De acordo com Seroa da Motta e Moreira (2004), aproximadamente 3.200 municípios aderiram ao Planasa.

109 O protagonismo das CESBs não se alterou com o esgotamento do Planasa entre 1980 e 1990. Com o fim do

BNH e do sistema do Planasa, ocorreram tentativas descontínuas e ineficazes de reestruturar o setor de saneamento, que esteve, no período, sob a tutela de vários ministérios, com competências dispersas, mas certo grau de centralização em determinado órgão. Desse modo, a vinculação institucional do setor foi caracterizada pela migração de órgãos e transformação de ministérios, desde o Ministério da Ação Social (MAS) até o atual Ministério das Cidades. Em 1986, o BNH foi incorporado pela Caixa Econômica Federal (CEF), que passou a assumir os antigos papéis do Banco em relação ao financiamento do setor. No entanto, a CEF reduziu sensivelmente a oferta de recursos, submetida às severas limitações orçamentárias. Em 1987, o Ministério de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (MDU) foi transformado em Ministério da Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente (MHU), que passou a ser, em 1988, Ministério da Habitação e do Bem-Estar Social (MBES). Em 1989, o MBES foi incorporado ao Ministério do Interior, extinto pelo governo Collor (TUROLLA, 2002;

O financiamento do setor por meio da utilização de recursos do BNH, do FGTS, dentre outros, permitiu a criação de programas considerados prioritários na década de 1970. No entanto, na década de 1980, a experiência do Planasa a começou a apresentar sinais de declínio. Inaugurou-se, a partir da década de 1980, uma crise institucional no setor, que se estendeu pela década de 1990 e é representada por indefinições institucionais e uma série de transformações nos órgãos públicos, mudanças que impactariam significativamente a gestão dos serviços de saneamento no Brasil. As dificuldades pelas quais passou o Plano, no fim dos anos 1980, culminaram em sua extinção formal em 1992.110

O declínio do Planasa, no final da década de 1980, não alterou, no entanto, o formato predominante de provisão dos serviços de saneamento atualmente, tendo preservado a hegemonia das CESBs. Dado que os serviços de abastecimento de água no país são prestados majoritariamente (77,9% dos municípios atendidos) por empresas estaduais (BRASIL, 2016) permanecem fortemente influenciados por um modelo instituído ainda na década de 1970 (CARVALHO, SAMPAIO, 2015; CORREIA, 2008; SOUZA, COSTA, 2013). Para Souza e Costa (2013), a reprodução das estruturas institucionais do Planasa no atual regime regulatório do setor pode ser explicada pela noção de dependência de trajetória. Os autores argumentam que as decisões de determinados atores, acumuladas ao longo do tempo, deixaram legados difíceis de se reverter.

Parece haver um consenso na literatura que, após o fim do Planasa, o setor vivenciou uma situação de indefinição quanto à prestação e à regulação dos serviços. Diversos autores, tais como Conforto (2000); Turolla e Ohira (2007); Correia (2008); Souza (2011); Madeira (2010); Souza e Costa (2013); Carvalho e Sampaio (2015), entre outros, argumentam que o fim do Planasa significou um vácuo institucional duradouro, até que fosse discutido um novo desenho a fim de orientar a política setorial em relação aos serviços de saneamento no país. Para Conforto (2000),

[...] a indefinição das questões fundamentais no ordenamento jurídico-legal do setor de saneamento vem dificultando sua modernização, tanto em referência aos processos de privatização quanto em relação à própria melhoria da gestão pública desses serviços essenciais (CONFORTO, 2000, p. 167)

LUCENA, 2006). Em 1990, é criado o Ministério do Estado da Ação Social, transformado, em 1992, em Ministério do Bem-Estar Social, extinguido no final da década de 1990.

110 Parlatore (2000) e Lucena (2006) apresentam os principais problemas do Planasa. De acordo com Parlatore

(2000), o que debilitou profundamente o Plano, a partir de 1986, foi ele não ter atingido por completo suas metas e diretrizes. Tupper e Resende (2004) e Seroa da Motta (2004), por sua vez, criticam o regime tarifário do Plano. A partir da extinção do Planasa, em 1992, suas linhas de crédito foram unificadas no Programa de Saneamento para Núcleos Urbanos (PRONURB) (FARIA, NOGUEIRA, MULLER, 2005).

Turolla e Ohira (2007, p. 201-202), por sua vez, colocam que após o colapso do Planasa “[...] as iniciativas governamentais se revelaram pontuais e desarticuladas, enquanto a Política Nacional de Saneamento permaneceu por toda a década de 1990 sem regulamentação”. Turolla (2002) esclarece que, apesar das diversas mudanças de vinculação institucional, foi possível alcançar relativo sucesso na ampliação da cobertura dos serviços e na modernização do setor, a partir de iniciativas do governo federal. No entanto, tais avanços foram obtidos por ações executivas, sem que tivesse ocorrido mudança estrutural na organização do setor, o que teria permitido maior sucesso quanto à prestação dos serviços na década de 1990.111

No intuito de solucionar a situação institucional na década de 1990, foram idealizados dois conjuntos de ações: um voltado para a redução das desigualdades socioeconômicas, privilegiando sistemas sem viabilidade econômico-financeira; outro para a modernização e o desenvolvimento institucional do setor, destacando-se, como exemplo do primeiro grupo de programas federais, o Programa de Saneamento para Núcleos Urbanos (PRONURB), o Pró-Saneamento e o Programa de Ação Social em Saneamento (PASS). No segundo, podem ser mencionados o Programa de Modernização do Setor de Saneamento (PMSS), o Programa de Pesquisa em Saneamento Básico (PROSAB), entre outros.112

Os anos 1990 foram marcados, portanto, por: a) uma ação modernizante, com esforço para avaliação de políticas e de medição de desempenho do setor, inclusive por meio do aprimoramento de mecanismos como o Sistema Nacional de Informações em Saneamento (SNIS), no âmbito do PMSS; b) uma migração entre órgãos no setor, que esteve sob a tutela de vários ministérios no período; c) um avanço pontual dos serviços de saneamento, com as feições herdadas ainda pelo Planasa; d) uma disputa acirrada pela titularidade sobre a prestação desses serviços, o que levou alguns municípios e estados a recorrer à Corte

111 De acordo com Seroa da Motta (2004) o orçamento federal esteve distribuído entre vários ministérios

(Saúde, Integração Regional e do Meio Ambiente) e não estavam claras e totalmente definidas, na década de 1990, as divisões efetivas de trabalho e responsabilidade entre ministérios e agências então existentes. Para o autor, a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (ASSEMAE) e a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES), entre outras organizações de sindicatos e associações voltadas ao setor, assumiram um papel cada vez mais importante neste cenário. A Política Nacional de Saneamento dos anos 1990, pautada em princípios de universalização, participação e descentralização, teria permanecido sem regulamentação por toda a década, não tendo sido institucionalizada em forma de lei, o que prejudicou sua implementação (TUROLLA, 2002; LUCENA, 2006).

112 Neste período, o setor era financiado pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e por

instituições de fomento, tendo papel de destaque o Banco Mundial (BIRD) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Para maiores detalhes acerca dos principais programas federais em saneamento na década de 1990, verificar Turolla e Ohira (2002, p. 15).

Constitucional (ADI 1842),113 e) um incipiente processo de incremento da participação privada, dificultado por um contexto de significativo dissenso entre os diferentes grupos de interesse, os quais suspenderam, momentaneamente, divergências quanto à titularidade dos serviços para derrubar a proposta de privatização das empresas estaduais.114

No final da década de 1990, os esforços do governo federal estiveram concentrados na liberalização da prestação dos serviços, de modo que diversas iniciativas foram adotadas a fim de tornar o setor mais atraente ao investimento privado, destacando-se a aprovação da Lei Federal nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que dispõe sobre a concessão da prestação de serviços públicos no país, e a proposição de dois Projetos de Lei de iniciativa do Senado (PLS 266/1996 e PL 4.147/2001), que viabilizariam a privatização do setor (SOUZA, 2011; SOUZA, COSTA, 2013).115

Nos anos 2000, o setor iniciou um intenso processo de reestruturação institucional. Neste contexto, um novo modelo começou a ser discutido, inserido ainda em uma perspectiva de diminuição da participação do poder público na prestação dos serviços, com a concessão deles à iniciativa privada, e de maior controle pelo uso da água. No entanto, a discussão desse modelo não ocorreu sem divergências. Houve diversas disputas políticas entre estadualistas e municipalistas, os quais constituíam os principais grupos de interesse.