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2. O MODELO REGULATÓRIO INGLÊS

2.1. HISTÓRICO DO SETOR DE ABASTECIMENTO INGLÊS

A Inglaterra é um país que dispõe de vasta experiência em relação à forma como vem administrando seus serviços públicos ao longo do tempo, de modo que se tornou referência tanto por suas alternativas de nacionalização e estatização, quanto por seus experimentos de regulação e privatização. O país foi um dos primeiros a desenvolver o modelo de concessão de serviços à exploração privada, no contexto de influência do liberalismo de Adam Smith e do poder econômico da nascente burguesia industrial do século XVIII. Inicialmente, os serviços privatizados foram os de transportes, tendo sido promulgada, ainda em 1706, a legislação para construção da primeira estrada-pedágio (HOLANDA, 1995).

A evolução das transformações institucionais pelas quais tem passado o setor de saneamento inglês nas últimas décadas pode ser retratada, para fins de caracterização, em torno de quatro períodos principais, a saber: a) antes de 1973; b) de 1973 a 1985; c) de 1985 a 1989; d) de 1989 aos dias atuais (AMPARO, CALMON, 2000). Até 1973, a estrutura do setor era caracterizada por sua fragmentação, com as funções de saneamento e regulação divididas entre um número amplo de organizações locais.

Neste modelo descentralizado de gestão que prevaleceu até 1973, os serviços de abastecimento e esgotamento sanitário eram, essencialmente, prestados por centenas de organizações públicas locais, municipais ou intermunicipais, havendo basicamente três tipos de estruturas envolvidas com as atividades do setor: a) operadores de serviços de abastecimento; b) operadores de serviços de esgotamento; c) órgãos de conservação dos rios ou Autoridades Regionais de Águas (River Water Authorities - RWA).

Neste contexto, até meados da década de 1950, haviam mais de mil entidades independentes operando os serviços de água. Nas décadas seguintes, em virtude de fusões e consolidações motivadas pela busca de ganho de escala, decresceu significativamente o número dessas organizações. Já no início da década de 1970, existiam 198 operadores de serviços de água, dos quais 64 eram empresas públicas administradas por autoridades governamentais locais, 101 constituíam empresas contratadas por Conselhos de Administração Conjuntos (conselhos intermunicipais), representados por mais de uma autoridade local, e 33 eram empresas privadas caracterizadas por “companhias estatutárias” que atuavam exclusivamente no abastecimento de água (HOLANDA, 1995; AMPARO, CALMON, 2000; POLLITT, STEER, 2012).21

As companhias de tratamento de esgotos, administradas por autoridades locais, em 1970, totalizavam cerca de 1.300. As Autoridades Regionais de Águas, por sua vez, criadas em 1965, totalizavam, em 1971, 29 Autoridades, responsáveis pela conservação de água, drenagem, pesca, controle de poluição dos rios e, em alguns casos, navegação. Estas Autoridades poderiam construir reservatórios, mas não redes de distribuição ou estações de tratamento. Além desses três tipos de organização, interferiam na área de saneamento outras entidades, como o Water Resources Board, órgão encarregado de pesquisas, e o British Waterways Boards, responsáveis por canais e navegação (HOLANDA, 1995).

O ano de 1973 é considerado crítico para o setor, em função da Lei das Águas de 1973 (Water Act 1973), por meio da qual todo o setor, até então altamente fragmentado, foi reestruturado, com a consequente criação de 10 Autoridades Regionais de Águas (Regional Water Authorities - RWA), sendo nove na Inglaterra e uma no País de Gales. Tais Autoridades eram responsáveis por controlar os usos da água de cada bacia hidrográfica, de

21 Estas companhias estatutárias correspondiam a empresas privadas, não registradas e incorporadas por

decretos individuais do Parlamento, que tinham lucros e distribuição de dividendos controlados por estatuto (Statutory Water Companies). Embora suas ações fossem negociadas na bolsa, estavam sujeitas a uma série de restrições em relação às políticas de dividendos, endividamento, acumulação de fundos, etc. (HOLANDA, 1995; AMPARO, CALMON, 2000).

acordo com o princípio do “gerenciamento integrado” dos recursos hídricos. Essa abordagem integrada de gestão e controle das bacias ganhou notoriedade internacional e apoio de ambientalistas e da comunidade técnicas e acadêmica ligada ao setor (BYATT, 1991; BRIDGEMAN, 2011).

A partir da criação dessas companhias regionais, os ativos foram transferidos dos governos locais para as Autoridades Regionais (RWA), que exerciam uma série de funções classificadas em três categorias: atividades operacionais (abastecimento de água e esgotamento); regulação ambiental e serviços comunitários (drenagem, proteção contra enchentes, etc.). A regionalização significou, portanto, uma nacionalização do setor, uma vez que a administração das RWA ficou a cargo da União, ocorrendo a transferência dos ativos até então de propriedade municipal. No entanto, até 1983, as autoridades municipais ainda detinham representação nos conselhos das RWA, o que se modificou com a edição da nova Lei das Águas (Water Act de 1983).

A Lei das Águas de 1983 deu caráter mais executivo aos conselhos das RWA e consumou o afastamento das municipalidades da gestão do setor. Dessa forma, a total nacionalização do setor ocorreu somente em 1983, a partir da restrição da composição dos conselhos e da transferência integral de responsabilidades para o nível nacional. As companhias estatutárias (privadas) foram legalmente mantidas, de modo que o quadro institucional do setor, entre 1973 e 1989, era composto por 29 companhias privadas (estatutárias) e 10 (nove inglesas e uma galesa) Autoridades Regionais (RWA), conforme ilustrado pelas figuras 1 e 2, a seguir.

FIGURA1-COMPANHIASESTATUTÁRIAS(WATERONLYCOMPANIES) EXISTENTESÀÉPOCADAPRIVATIZAÇÃO

Fonte: OFWAT (2006).

FIGURA 2 - DEZ AUTORIDADES REGIONAIS DE ÁGUA(REGIONALWATERAUTHORITIES-RWA)

Em virtude de sua limitada capacidade de geração e captação de fundos frente às necessidades de expansão e melhorias dos sistemas, as Autoridades Regionais começaram a enfrentar problemas, sobretudo financeiros, oriundos inclusive das políticas monetária e fiscal restritivas impostas pelo governo britânico, tais como a limitação ao crescimento de suas receitas, via controle de tarifas, e à tomada de empréstimos.22

Diante de uma série de problemas criados pela condução da política monetária governamental britânica (crescimento da inflação, queda de investimentos, etc.), em 1985, o ministro da Habitação e Construção anunciou, no Parlamento, que o governo analisava a possibilidade de privatizar o setor de saneamento, argumentando que a privatização proporcionaria melhores condições de acesso das companhias ao mercado de capitais e viabilizaria os investimentos necessários à reabilitação da infraestrutura do setor e ao cumprimento dos padrões ambientais estabelecidos pela Comunidade Europeia. Além disso, argumentava-se que a atração de capital privado diminuiria a pressão sobre as finanças públicas e levaria a ganhos de eficiência no setor.

Neste cenário, em 1986, o governo encaminhou um projeto de lei ao Parlamento propondo que as RWA fossem transformadas em companhias privadas de interesse público (Public Limited Companies – PLC). Houve resistência à proposta original por parte de grupos ambientalistas e daqueles ligados ao Partido Trabalhista e a entidades de classe e de defesa do consumidor, os quais não aceitavam que a provisão de serviços essenciais à saúde pública e ao bem-estar social fossem controlados pela iniciativa privada.

Em relatórios oficiais de debates parlamentares, é possível perceber as divergências políticas acerca da privatização das companhias de abastecimento de água. No Relatório Oficial de 23 de junho de 1986, Simon Hughes, membro do Parlamento Britânico à época, iniciou seu discurso colocando que a Câmara (House of Commons) rejeitaria as propostas governamentais de privatização das RWA, o que iria nas palavras dele

“[...] undermine public accountability without improving efficiency or benefiting the consumer, and which will have serious consequences for capital investment, environmental protection, water resource planning, land drainage, fisheries management and recreational facilities” (UK PARLIAMENT, 1986, p. 31). Hughes acrescentou que aquela sessão parlamentar foi a primeira oportunidade da Câmara para debater os planos que o governo anunciara no início daquele ano (1986). O parlamentar colocou que privatizar o que é um bem-comum fundamental constituiria a maior

22 A título de exemplificação, em 1975, 80% dos investimentos das RWA eram financiados por empréstimos

captados no sistema financeiro, participação que caiu para apenas 10%, em 1986 (AMPARO, CALMON, 2000).

privatização de todas e que o país acreditaria na existência de importantes objeções que tornariam a proposta inaceitável. De acordo com o discurso dele naquela sessão, “today will mark the beginning of an increasingly well-argued, vociferous and, I hope ultimately, convincing campaign that will dissuade the Government from proceeding down such a political course” (UK PARLIAMENT, 1986, p. 31). Em suas colocações, Hughes acrescenta ainda que a principal crítica à proposta governamental é a de retirar um bem-público, como a água, da gestão pública e que isso prejudicaria a prestação dos serviços aos consumidores em diversos aspectos importantes.

Com a potencial privatização, as autoridades locais questionaram o governo central a respeito da legitimidade dessa operação, considerando que a União se preparava para vender ativos que não lhe pertenciam, dada a realização dos investimentos pelas comunidades locais, as quais se viam no direito de demandar compensação financeira por conta da transação. Neste sentido, Hughes expõe que os argumentos governamentais são falhos e seguem sua própria lógica de interesse. De acordo com ele, a motivação governamental em relação à privatização se daria a partir de fatores financeiros pela venda de ativos que não lhe pertencem, ou seja, da negociação das RWAs. Em suas palavras, o governo "when, having sold off as much else as they can, they find that they are running out of money —arguably, to be derived from selling an asset that is not theirs to sell" (UK PARLIAMENT, 1986, p. 31).

Seguindo a própria lógica de interesse, ao incentivar as privatizações das RWAs, o governo teria minorado o impacto que o setor de abastecimento de água causa em outras áreas, o que fortaleceu as objeções em relação à proposta governamental inicial. Hughes apresentou, em seu discurso parlamentar, a importância das externalidades ocorridas a partir das atividades hídricas, ao afirmar que

[...] Water, inevitably, is a universal need, for supply and for removal. It is vitally concerned with health and hygiene. It is of pre-eminent importance environmentally, and what it does environmentally concerns industry, agriculture, food supply, urban and rural living and leisure. It is unacceptable that the Government should seek to dissociate themselves from a close interest in these matters because they affect consumer safety, protection of the consumer from exploitation, adequacy and cost of services, river water quality, flood control — although there is an exception — and the use of chemicals in agriculture, amongst many other things (UK PARLIAMENT, 1986, p. 32).

John Cunningham, outro membro do Parlamento Britânico à época, colocou que os cidadãos acreditam que a água deve ser um recurso de propriedade e controle públicos, argumento com o qual concordaria o Partido dos Trabalhadores. De acordo com o discurso

de Cunningham, o interesse público deve ser preservado na gestão dos recursos hídricos. O parlamentar afirmou naquela sessão que

The Labour party is wholly opposed to proposals to privatise Britain's water assets which are the nation's most fundamental resource and on which our existence depends. We believe that the water industry should be publicly owned and controlled and that it should be under democratic control and accountability at both regional and national levels. We further believe that the existing river basin management concept of organising the industry should be retained. In the event of any disposal of those assets, a Labour Government would return them to public ownership as a matter of priority (UK PARLIAMENT, 1986, p. 45).

Apesar das fortes críticas, o governo, de maioria conservadora, remeteu ao Parlamento uma nova proposta de privatização com modificações no texto original de 1986, retirando-se da responsabilidade das futuras companhias privadas (PLC) o papel de controle e conservação de rios e da poluição, atividades que seriam assumidas por novo órgão público a ser criado para regular as questões ambientais referentes ao setor: a Autoridade Nacional de Rios (National River Authority – NRA). Além desse órgão, seria instituído um regulador econômico, encarregado de proteger o interesse dos usuários dos serviços, fomentar a competição, promover a eficiência econômica e o cumprimento das obrigações contratuais por parte das novas companhias privadas.

Para que as RWA fossem negociadas na bolsa, o governo central solicitou que essas Autoridades Regionais elaborassem planos de gestão de ativos (asset management plans), os quais constituiriam estudos detalhados da condição e do valor de seus ativos, bem como de estimativas de investimentos requeridos para sua recuperação e seu melhoramento, em um horizonte de dez anos. Tais planos proveram a base de avaliação do desempenho técnico e financeiro das companhias privadas, o que se tornou, ao longo do tempo, fundamental para a fixação e revisão das tarifas pelo regulador econômico. Além disso, os planos permitiram ao governo calcular o valor-base das ações das companhias de saneamento, as quais foram negociadas no mercado de capitais em novembro de 1989.

As dez companhias privadas de saneamento (PLC) constituídas a partir da negociação receberam licenças para operar expedidas pelo secretário de Estado do Meio Ambiente, as quais valeriam, a princípio, por um período de 25 anos. As 29 companhias estatutárias já existentes, por sua vez, receberam autorização para manter suas operações, sob novo marco regulatório instituído pela Lei das Águas de julho de 1989. Nos dez primeiros anos do novo regime, as companhias de saneamento foram autorizadas a praticar aumentos anuais das tarifas de até 5% acima da inflação, para financiamento dos

investimentos necessários, o que produziu impacto significativo nas contas de água, que cresceram 28% em termos reais nos seis primeiros anos da privatização (BYATT, 2013).

Em virtude das críticas de que as companhias privadas haviam realizado operações sobre as quais os ônus recaíam aos consumidores e do receio governamental quanto a reações contra a privatização, em 1991, foi anunciada a antecipação do processo de revisão das tarifas. Inicialmente previsto para dez anos após a promulgação da Lei das Águas de 1989, o processo foi antecipado para 1995 e resultou no rebaixamento dos reajustes das tarifas de 5% para 1% acima da inflação, em média, entre o período de 1995 a 2005, considerando que o governo reconhecia os lucros excessivos das empresas, entre 1989 e 1995, além da necessidade de que fossem obtidos ganhos de eficiência no setor (AMPARO, CALMON, 2000).

As características do setor de saneamento após a privatização envolvem consideráveis mudanças institucionais, incluindo a separação das atividades governamentais e regulatórias em diferentes órgãos instituídos a partir de então, os quais incluem: Environment Agency (EA), denominada à época da privatização National Rivers Authority (NRA); Drinking Water Inspectorate (DWI); Office of Water Services (OFWAT), entre outros. O primeiro desafio colocado à época da privatização seria, portanto, fazer o regime funcionar, em um contexto de impopularidade especialmente causado pelos aumentos significativos das tarifas (BYATT, 2013).

Além disso, em decorrência da privatização, o setor passou por um importante processo de incorporações e fusões. Em 1989, doze dos originais vinte e nove operados privados de serviços de água se fundiram, formando cinco novas companhias. Em 1993, uma das 10 companhias de água e esgotos (Severn Trent Water) incorporou a operadora de água localizada em sua área de atuação (East Worcertershire Water). O processo de incorporações foi acelerado a partir de 1994, quando o governo vendeu no mercado de capitais sua participação acionária nas companhias de água e esgoto, sendo absorvidas outras quatro operadoras de água (AMPARO, CALMON, 2000).

Existem atualmente, no setor de saneamento da Inglaterra e do País de Gales, dezoito grandes empresas privadas regionais independentes, sendo 10 responsáveis pela prestação de serviços de abastecimento água e esgotamento sanitário em conjunto, conforme ilustrado pela Figura 3, e 8 encarregadas somente do abastecimento de água.23 A Figura 4,

23 Embora a figura 3 não apresente as companhias responsáveis somente pelo abastecimento de água na

além de apresentar as companhias inglesas e galesas de abastecimento de água e esgotamento sanitário por região, especifica o valor médio das tarifas cobradas pelas respectivas companhias para consumidores domésticos em 2014-2015.

FIGURA3-COMPANHIASINGLESASEGALESASDEABASTECIMENTOEESGOTAMENTOE TARIFASMÉDIASPORELASPRATICADASPARACONSUMIDORESDOMÉSTICOS

Fonte: National Audit Office (NAO, 2015).

South Staffordshire and Cambridge; e 8) Sutton and East Surrey. Os serviços prestados são financiados, de modo geral, a partir do pagamento das tarifas pelos usuários e de investimentos privados. No entanto, pode haver subsídio governamental, como é o caso da South West Water, que recebe, anualmente, subsídio do governo no valor de £50 para cada consumidor doméstico. A indústria conta com 22 milhões de consumidores domésticos e 2 milhões de usuários não domésticos (NAO, 2015).

Após ter passado por períodos de privatização e reestruturação, o setor de abastecimento inglês adquiriu, em termos regulatórios, uma configuração bastante distinta do modelo descentralizado de 1973. A atual estrutura regulatória do setor foi criada pela Lei das Águas (Water Act) de 1989, que definiu as condições de financiamento do sistema, a política tarifária, tendo, ainda, introduzido um modelo de privatização no qual deveria haver a clara separação entre a prestação dos serviços de saneamento e sua regulação, o que levou à criação de órgãos de regulação com escopos distintos. O marco regulatório implantado a partir do Water Act de 1989 criou, portanto, uma estrutura bipartite, com a separação funcional entre reguladores econômicos e reguladores de qualidade ambiental.