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2. O MODELO REGULATÓRIO INGLÊS

2.3. MODELO DE TARIFAÇÃO

O modelo britânico de regulação de preços dos serviços de utilidade pública foi, em grande parte, produto dos programas de privatização de diversos setores ao longo da década de 1980, tais como os de telecomunicações, energia e saneamento. Neste cenário, ocorreu a privatização da British Telecom, em 1984; da British Gas Corporation, em 1986 e da

30 OFWAT decidiu incorporar, em sua revisão tarifária mais recente, um elemento de envolvimento com o

consumidor (customer engagement) no qual as companhias que se envolverem completamente com os representantes dos consumidores e obtiverem apoio justificado de seus planos de gestão estarão aptas a um processo diferente (menos minucioso) de controle de preços (fast-tracking). Isso levaria o regulador a despender menos esforços examinando os planos de gestão das empresas. No entanto, o órgão regulador deixa claro que o acordo com os consumidores é condição necessária, mas não suficiente, para o fast-tracking e que permanece na definição e no controle de preço das tarifas (LITTLECHILD, 2014).

National Bus Company, de 1986 a 1988, enquanto as companhias de saneamento básico e de energia foram privatizadas em 1989 e no período de 1990 a 1991, respectivamente (HOLANDA, 1995).

Em 1983, foi publicado o Relatório Littlechild, que trata da regulação dos serviços de telecomunicação. O Relatório expôs os aspectos-chave do ambiente regulatório no qual o OFTEL (órgão regulador das telecomunicações) operaria, sendo que o estabelecimento deste órgão, em 1984, tornou-se parte importante do processo de privatização da British Telecom. Desde o OFTEL, deu-se a criação de reguladores econômicos independentes para outros setores, tais como energia elétrica, gás natural e transportes. O regulador econômico dos serviços de saneamento na Inglaterra (OFWAT), por sua vez, foi criado na sequência da publicação de outro relatório (1986 Littlechild Report) e da Lei das Águas de 1989.31

A relevância do Relatório Littlechild de 1983 deriva da introdução e da adoção, a partir dele, da regulação price cap e da ferramenta RPI-X para cálculo das tarifas cobradas, elementos explanados adiante. Desde a publicação deste documento, desenvolveram-se as principais características do modelo britânico de regulação de serviços públicos pós- privatização, as quais incluem a necessária independência dos órgãos reguladores, tanto em relação ao governo quanto às firmas reguladas; o incentivo aos ganhos de eficiência das empresas; os focos na competição, quando possível, e nos consumidores, a partir da redução dos preços das tarifas com a manutenção da qualidade dos serviços e da segurança de sua oferta (STERN, 2014).

A publicação do Relatório de 1983 deixou como legado, portanto, a independência regulatória; o aumento de eficiência das companhias e o enfoque concorrencial. Tais elementos, centrais na regulação dos serviços britânicos na década de 1980, ainda se mantêm. Desde então, a concorrência tem sido vista como uma das melhores formas de maximizar o bem-estar dos consumidores dos serviços de utilidade pública. Apesar disso, no caso de indústrias de rede caracterizadas por monopólio natural, a concorrência é dificultada, devendo ser estimulada por meio da regulação (GASSNER, PUSHAK, 2014).

Nesses casos, o preço e a qualidade dos serviços não são determinados por forças de mercado. O papel da regulação econômica tem sido, assim, coibir praticas decorrentes de falhas de mercado, a partir de mecanismos como controle tarifário. Cabe ao órgão regulador, além disso, proteger o interesse do consumidor, atual e futuro, independentemente de sua

31 O Relatório Littlechild de 1986 discute o papel do modelo RPI-X de regulação no contexto das companhias

localização geográfica, assegurando que as tarifas não sejam indevidamente discriminatórias, desfavorecendo consumidores rurais, por exemplo. Mesmo que o custo de prestação dos serviços para consumidores urbanos costume ser mais baixo, essa diferença não deve ser refletida na tarifa (HERN, 2001).

No sistema britânico de regulação econômica, pode ser identificada a utilização de dois importantes instrumentos: competição comparativa (yardstick competition) e sistema “teto-preço” (price cap). Por meio do sistema price cap, o regulador econômico estabelece limites máximos para o reajuste das tarifas cobradas pelas operadoras, no intuito de controlar seu poder de monopólio, incentivar sua eficiência alocativa e, ao mesmo tempo, assegurar os níveis de lucratividade necessários à manutenção de suas operações e à expansão dos serviços. Em outras palavras, a regulação price cap envolve a definição de limites máximos tarifários, os quais devem permitir às companhias eficientes financiar suas atividades sem que os consumidores paguem além do necessário.

O pressuposto subjacente ao sistema price cap é o de que todas as empresas têm uma capacidade contínua de redução de custos. Esta capacidade deve considerar dois fatores. O primeiro se refere ao potencial global da indústria, refletido por seus progressos técnicos ou suas ''mudanças na fronteira”. Esses elementos são baseados na avaliação do fator total de produtividade da indústria, considerando outras similares. O segundo fator, por sua vez, abrange o potencial da companhia, individualmente, de progredir rumo à redução de custos (CUBBIN, 2005; POLLITT, STEER, 2012).

A regulação por competição comparativa (yardstick competition) envolve a consideração de vários elementos, dentre os quais podem ser mencionados parâmetros de custos e níveis de serviços, além do cuidado das companhias para com os consumidores quanto a suas queixas e necessidades. A regulação por yardstick competition é importante, inclusive, porque existem diferenças significativas na performance individual das companhias, embora a indústria como um todo tenha se tornado mais eficiente a partir da introdução de mecanismos regulatórios (CAVE, WRIGHT, 2010).

No processo comparativo, devem ser consideradas as diferentes condições com as quais as companhias lidam e que estão fora do controle de sua gestão, tais como fatores geográficos e geológicos. Além disso, o grau de independência da empresa deve ser analisado. 32 A competição comparativa, embora não seja tão efetiva quanto a concorrência

32 Nas companhias completamente independentes, em termos de propriedade de ativos e gestão, seus

em livres mercados, é uma ferramenta útil para estimular a eficiência e auxiliar os reguladores no estabelecimento dos limites de preços das tarifas (BYATT, 1991).

Outra importante característica da regulação de preços, no sistema britânico de regulação dos serviços de utilidade pública, é o reajuste periódico das tarifas em função de potenciais ganhos de eficiência e necessidades de investimento. O setor de saneamento inglês tem obtido ganhos consideráveis em termos de redução de custos e de melhorias da qualidade da água potável, desde meados da década de 1990, quando foram estabelecidos os limites de preços das tarifas para o período inicialmente posterior à privatização. O período de revisão tarifária, atualmente, é de 5 anos.33 Desde a época das privatizações, OFWAT realizou cinco revisões, tendo concluído a mais recente delas em 2014, a partir da qual foram estabelecidos os limites de preços para o período entre 2015 e 2020 (CUBBIN, 2006; BRIDGEMAN, 2011; STERN, 2014; NAO, 2015).

O estabelecimento do sistema price cap a cada cinco anos visava um equilíbrio entre a necessidade de facilitar um ambiente estável às companhias e o fornecimento de incentivos razoáveis (não excessivamente generosos) quanto aos ganhos de eficiência. A revisão quinquenal buscou permitir que esses ganhos fossem repassados adequadamente aos consumidores. O período de cinco anos foi percebido como seguro em relação aos programas de investimentos e à incerteza no ambiente político (LODGE, STERN, 2014; BOLT, 2014). A determinação do preço das tarifas de água que facilita o uso sustentável do recurso é uma tarefa complexa e sujeita à influência política e a lobby por grupos de interesse. Dessa forma, a revisão tarifária periódica pode ser vista como um jogo estratégico principalmente entre regulador e regulado, em que, por um lado, as companhias reguladas detêm grande vantagem de informação, por outro, dependem fortemente do regulador para sua viabilidade comercial (STERN, 2012; BOSCHECK, 2013).

As decisões sobre preços e sobre a alocação dos recursos hídricos requerem conhecimento detalhado das condições hidrológicas dos recursos e de outras variáveis

de um grupo maior de empresas, a comparação dependerá do grau de comunicação com os gestores da unidade mais ampla. Quanto mais essa responsabilidade é transferida e há espaço para a ação independente dos gestores, mais úteis devem se revelar as comparações entre as companhias (BYATT, 1991).

33 À época da privatização, o período para revisão tarifária era ao menos a cada 10 anos, embora pudesse

ocorrer em intervalo inferior, se as companhias solicitassem ou o então diretor do órgão regulador considerasse apropriado. De acordo o diretor, já se pensava sobre uma revisão a cada 5 anos: “A periodic review must take place at least every 10 years, although the licence also provides for a periodic review after five years should a company request it or if I consider it appropriate. Many people expect there to be a review after five years, but it would be premature to make such a judgement yet. It would, however, be prudent to plan for such an eventuality (BYATT, 1991, grifo nosso).”

relativas a questões de ordem socioeconômica, à demanda de água, aos custos e benefícios de utilização dos recursos, entre outros aspectos. A respeito da dificuldade da definição de tarifas e da necessidade de transparência no processo, Boscheck (2013) coloca que

the transparent evaluation of costs and their distribution and of water productivity in different sectors contributes sound data to the water allocation and pricing policy debate [...] Even with complex economic studies, however, it is difficult to determine an eficiente water price and allocation because of the impossibility of accounting for the innumerable individual decisions in an economy (BOSCHECK, 2013, p. 152).

A partir da complexidade das determinações tarifárias e dos diversos interesses envolvidos no processo, surgem embates entre grupos distintos (reguladores, regulados, usuários, por exemplo). Neste contexto, Byatt coloca que “Tariffs were crucial. Those offered by the companies were unfavourable; in particular, standing charges were high. Troubles came to ahead in Yorkshire where [...] protest groups quickly formed” (BYATT, 2013, p. 7).

Ainda sobre conflitos a respeito de decisões tarifárias, foi veiculada em janeiro de 2016, no jornal britânico The Independent, uma matéria informando que o regulador econômico inglês OFWAT foi acusado pelo Parliament’s Public Accounts Committee de beneficiar as companhias de abastecimento em suas revisões tarifárias (WRIGHT, 2016). A notícia evidencia as divergências entre membros do OFWAT e do Consumer Council for Water, organização representante do interesse dos consumidores. No relatório publicado pelo Comitê de Contas Públicas do Parlamento, fica clara a posição dos parlamentares acerca da insatisfação quanto às tarifas estabelecidas pelo OFWAT e das consequências decorrentes dessas definições, as quais podem prejudicar os usuários dos serviços.34

Ao definir periodicamente os limites máximos para aumento de preço das tarifas cobradas, o regulador econômico busca recompensar as companhias mais eficientes e penalizar as menos eficientes, incentivando ganhos de eficiência. Esta abordagem comparativa pode gerar benefícios quanto à diminuição das contas de água em virtudes de ganhos de eficiência.

No entanto, nem sempre esses ganhos são compartilhados com os consumidores e dados revelam que os ganhos têm decaído ao longo do tempo. O regulador econômico apresentou que os ganhos de eficiência resultaram em uma diminuição de cerca de £ 39 na

34 “The Water Services Regulation Authority’s (Ofwat’s) approach to setting price limits for water companies

in England and Wales has not resulted in the best possible deal for customers. By consistently overestimating financing costs, Ofwat has allowed companies to make windfall gains which have not been shared in a structured way to ensure customers get a fair deal (HC, 2015, p. 3).

conta média anual entre 2000 e 2005, enquanto, entre os anos de 2010 e 2015 o valor foi de aproximadamente £ 11, como pode ser observado no gráfico 3, a seguir (ALLAN, 2006; HC, 2015; NAO, 2015).

GRÁFICO 3 - MUDANÇA NA CONTA MÉDIA DE ÁGUA DE CONSUMIDORES DOMÉSTICOS DEVIDOAGANHOSDEEFICIÊNCIA

Fonte: National Audit Office (NAO, 2015).

No sistema price cap, a tarifa cobrada por um bem ou serviço é fixada em função de um índice de preços no varejo, o RPI (Retail Price Index). As companhias de abastecimento de água são reguladas, então, a partir de uma formula que considera a variação do índice de preços no varejo (RPI) e um valor X, que pode ser positivo ou negativo e é específico para cada companhia, referente aos ganhos de produtividade que podem ser obtidos.

Os preços são, ao longo do intervalo regulatório, reajustados pelo índice de inflação, sendo reduzido o fator de produtividade. Ao final do período regulatório, é fixado um novo limite com os ganhos de eficiência distribuídos entre prestador e usuários. O cálculo da tarifa

pode, então, ser traduzido pela seguinte fórmula: P = RPI- X, no qual “P” equivale ao preço; “RPI” ao índice de preços no varejo e “X” ao fator de produtividade. O reajuste da tarifa ocorre, portanto, a partir do cálculo do índice de preços no varejo, diminuindo-se o ganho de produtividade.35 (GALVÃO JR., PAGANINI, 2009; MADEIRA, 2010; HERN, 2001).

A fórmula pode ser escrita também da seguinte forma: RPI± K. Quando ocorreu a primeira revisão tarifária no setor, em 1994, o regulador econômico redefiniu esse fator (K) como a soma de duas variáveis: -X e +Q, representando a primeira (-X) uma esperada redução nos custos, decorrente de ganhos de produtividade, e a segunda (+Q) os investimentos adicionais financiados pelas tarifas para atender aos novos padrões de qualidade impostos pelas autoridades regulatórias, particularmente no que diz respeito a aspectos ambientais (AMPARO, CALMON, 2000; BRIDGEMAN, 2011).

A ferramenta RPI-X para cálculo das tarifas cobradas no setor de saneamento data da década de 1980 e é oriunda da regulação dos serviços britânicos de telecomunicação. Nos anos seguintes a 1983, a ferramenta de regulação foi adotada por todo o Reino Unido nas indústrias privatizadas e nos setores regulados. Não somente no Reino Unido, mas em muitos países no exterior, incluindo Austrália e Nova Zelândia, entre outros da América Latina e da UE. Como o sistema price cap não define preços específicos, as companhias de telecomunicações teriam flexibilidade para ajustar os preços individualmente em resposta a pressões do mercado. Dessa forma, uma das vantagens do método é a flexibilidade e o amplo grau de liberdade da empresa, uma vez que o regulador fixa um teto de preços e a regulada pode cobrar tarifas inferiores ao teto (LITTLECHILD, 2014).

Outras vantagens apresentadas pelo sistema price cap são: estímulo à redução de custos e à eficiência produtiva, uma vez que a empresa se apropria da redução de custos; menor custo para regular, na medida em que não se faz necessário o acesso aos dados contábeis das empresas. Já as desvantagens incluem a possibilidade de ocasionar subinvestimento, dado que as companhias não têm garantias em relação às decisões tomadas nas futuras revisões tarifárias. O subinvestimento levaria à diminuição do padrão de qualidade dos serviços prestados. Além disso, o sistema pode outorgar lucros excessivos às empresas e agravar os problemas de assimetria de informação, devido à dificuldade de se

35 Convém esclarecer que a fórmula estabelece a média para o reajuste de uma cesta de tarifas, de modo que a

tarifa de um dado serviço pode variar anualmente acima do valor estabelecido, enquanto outros serviços podem sofrer reajustes menores. No entanto, na média, o reajuste anual não deve ultrapassar o teto autorizado pelo OFWAT.

calcular a produtividade da empresa (HOLANDA, 1995; GALVÃO JR., PAGANINI, 2009; MADEIRA, 2010).36