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3.1.1 Aspectos Históricos da Filosofia Indiana

Antes de focarmos o Yoga como tradição, é interessante localizar-nos no tempo com uma breve retrospectiva histórica da filosofia na Índia, tendo sempre em vista as posições do Mestre Bohdan.

No campo da filosofia, a Índia deixou um legado muito vasto e é impossível em um só trabalho de pesquisa um relato minucioso a respeito dos seus monumentais documentos e escrituras. Assim, oferecemos uma visão geral de como o pensamento filosófico está distribuído e citaremos apenas as fases e fontes que estiverem ligadas ao nosso tema. A princípio, costuma-se dividir as escrituras em duas classes: shruti, smritis. Alguns autores (Zimmer-2003) incluem ainda os Purânas e o Tantra como categorias.

Os shruti – a autoridade principal - são as escrituras reveladas, ou seja, diretamente “ouvidas” ou “vistas” pelos rishis, os sábios, durante estados alterados de consciência. Aqui estão incluídos os Vedas e o Upanishads.

Smriti – a autoridade secundária - é um termo mais usado no Yoga Clássico, no sentido de memória profunda, ou ainda, textos que teriam sido “lembrados” em oposição àqueles que foram “revelados”. Eles consistem em: 1- Smrtis ou códigos de lei (Dharma- Sâstras) , 2-Itihâsas ou épicos (Mahábhárata-Bhagavad Gita e o Ramayana), 3- Puranas ou crônicas e as lendas (Brâhmanas), 4- Agamas ou manuais de culto (daqui surgiram os três principais ramos do Hinduísmo:Vaishnavismo, Shaivismo e Shaktismo) e 5- Darshanas ou escolas de filosofia: Nyaya, Vaisesika, Samkhya, Yoga, Mimansa e Vedanta.

Para melhor compreender o desenvolvimento do pensamento filosófico da Índia e do próprio hinduísmo, podemos dividi-lo em cinco fases principais, mas, aqui, citaremos apenas as três primeiras, dando mais destaque à terceira, que está ligada ao nosso tema.

Na primeira fase (1500-1200 a.C.) encontramos os Vedas. Os textos védicos são os únicos documentos traduzidos que representam o mais antigo monumento do pensamento religioso da Índia, sendo considerados os livros sagrados do conhecimento divino. Foram redigidos em sânscrito arcaico e oferecem o caráter excepcional de terem sido concebidos e conservados oralmente. A sua transmissão foi feita de geração a geração de “boca a ouvido”, com o mais extremo rigor e fidelidade, e este sistema ainda é utilizado, apesar de já haver textos escritos. Esses textos foram recebidos em forma de “revelação” pelos “rishis”, homens com poderes especiais, conhecidos por videntes ou profetas. Neles são encontradas questões relacionadas à origem e à finalidade da vida; mantras e hinos com suas explicações e a maior preocupação era quanto à elaboração dos rituais e sacrifícios que deveriam ser oferecidos às divindades. No final dos Vedas, está o

Upanishads,43 mensagens místicas com profundas verdades espirituais. Eles representam,

sobretudo, as primeiras especulações do pensamento indiano de grande alcance metafísico. Para Sri Aurobindo, “os rishis são videntes de uma única Verdade e empregam uma linguagem comum para exprimi-la”. Naquele período, muitos deuses eram reverenciados; alguns teriam sido trazidos pelos árias e outros foram incorporados da religião dos drávidas, povo nativo.

Foram escritos quatro Vedas: Rig Veda, Yajur Veda, Atharva Veda e Sama Veda. Os hinos védicos, ou louvores dirigidos aos deuses, são famosos pelo poder mágico de sua sonoridade e eram recitados segundo regras inflexíveis, a fim de que aqueles que presidiam as cerimônias pudessem entrar em contato com a “essência das coisas” usando da eficácia dos mantras (palavras) que eram consideradas fórmulas sagradas. Alguns hinos são consagrados ao matrimônio, outros aos funerais, e outros, ainda, ao culto ao soma ou ao ritual do fogo. Existe um grande número de hinos que estão mesclados de magia e filosofia, com um tom de encantamento. Neles são encontrados também os primeiros elementos da medicina indiana, com fórmulas de cura para fins específicos: enfermidades, possessões, bem como preces mágicas.

Na segunda fase, aparecem os Brahmanas, que são os tratados ritualísticos com comentários em prosa, que interpretam o Brahman (o Absoluto), sob o ponto de vista 43 -Para Mestre Bohdan, o Upanishads era um livro independente dos Vedas e não o seu final.

teológico, explicando os ritos e as fórmulas por meio de símbolos. É difícil fixar uma data para os Brahmanas. Alguns autores falam de 1200-800 a.C., e parece que eles se estendem por um período bastante longo, notando-se uma diferença entre os antigos e os mais modernos. Têm um estilo diferenciado e não podem ser comparados a nenhuma das outras literaturas indianas. Nessa fase, os ritos e sacrifícios foram sistematizados e a sociedade recebeu uma estruturação, uma ordem hierárquica com base no conceito de “varna” – cor - que ficou conhecida como “sistema de castas”44. Surgem os brâmanes,

classe social que tinha a responsabilidade de cuidar dos sacrifícios e rituais e servir como intermediário entre o homem comum e Deus.

Surge a idéia clara de um Deus único, período de consolidação do teocentrismo, que ficou conhecido como Brahman. Também era chamado Nirguna, sem qualidades, isto é, aquele que está além de todas as qualidades humanas. Este Deus é colocado distante e só por meio de rituais especiais, elaborados pelos sacerdotes, (brahmanes), usando de uma linguagem sagrada (o sânscrito), ele poderia ser atingido. Desta forma, o povo vai perdendo o seu acesso à divindade. Este período é considerado por alguns estudiosos como a fase “obscura” do Hinduísmo, devido à manipulação feita pelos brahmanes na interpretação dos textos Védicos.

A terceira fase da história, de 800-200 a.C., é marcada por protestos e pela busca da interiorização. Destacam-se as críticas aos rituais e sacrifícios realizados pelos sacerdotes brâmanes. No período que precede o nascimento de Buda, ocorre uma mudança do foco da atenção do homem, do seu universo exterior para o interior, o que vai provocar um desajuste no sistema religioso anterior. Os reis dos deuses, Indra e Varuna e os divinos sacerdotes já não recebiam mais suas cotas de sacrifícios.

O homem passou a buscar um estado crescente de autoconsciência pela reflexão profunda e auto-análise, além de voltar-se para as práticas meditativas e as severas disciplinas do Yoga. O ser humano descobre que existe uma separação marcante entre o eu fenomênico e o Eu transcendental, o atman, profundamente oculto, mas essencial, ainda 44 Sarma explica que: “as classes sacerdotais e militares vieram a ser distinguidas pela divisão de trabalho das pessoas comuns, que juntamente com os nativos conquistados preparavam o solo, cuidavam do gado e faziam o comércio. Assim passaram a existir as quatro castas: Brâhmans, Ksatriyas, Vaisyas e Sudras – mesmo no princípio dos tempos históricos. ... Tirando as invasões, guerras e conquistas, a vida cívica normal das pessoas e suas ocupações diárias, no curso dos séculos, atravessaram todas as divisões de raça e classe e produziram as poderosas associações comerciais da Índia budista, que devem ter dado forte impulso à formação das inúmeras castas hereditárias ocupacionais, que sobrecarregaram o sistema social hindu até os dias que correm. Originariamente, até os Brahmans e Ksatryas eram apenas castas ocupacionais, tornando-se no curso do tempo, hereditárias e exclusivas ... Várias outras influências, tais como excomunhões, casamentos mistos, cruzamentos de raças, migrações distantes e colonizações, contribuíram para o complexo sistema de castas.” (SARMA, D.S., 1967:53).

que esquecido. Conforme o Bhagavad Gita:

O Homem real, o Espírito, não pode ser ferido por armas, nem queimado pelo fogo; a água não o molha, o vento não o seca nem move.

Ele é impermeável, incombustível, indissolúvel, imortal, permanente, imutável, inalterável, eterno e penetra tudo. (BHAGAVAD GITA, II:23.24, 2006:31).

O homem se volta para dentro e busca o seu lado imortal e imutável. Os sentidos, pelo fato de estarem o tempo todo dirigidos para fora, não conseguem entrar em contato com a esfera dessa realidade permanente e, para o pensador indiano, o mundo dos fenômenos é ilusório, sendo sustentado pela ignorância e paixões enganosas. O sábio descobre as causas desta ilusão, não pela glorificação e submissão aos deuses, mas pelo mergulho interior, em contato com o silêncio.

Como frutos dessa reação, dessa busca interior, florescem o Budismo e o Jainismo. Surge dentro do próprio Hinduísmo um movimento onde se passa a dar mais importância à vida interior e mais ênfase ao antropocentrismo, surgindo o conceito de Deus pessoal. O Brahman, que era o distante “Nirguna”, passa a ser chamado de “Sadguna”, Deus pessoal, que, embora transcendente, está presente dentro do Homem e em todos os seres. Embora Uno, apresenta-se sob três aspectos: Brahma, Vishnu e Shiva, ou seja, criação, preservação e transformação.

Ainda nesta terceira fase, foi escrito o Upanishads e surgem também seis escolas filosóficas que discutem questões relacionadas com o Absoluto, a Verdade e as Realidades Últimas. São elas: Nyaya, Vaisesika, Mimansa, Sankhya, Vedanta e o Yoga.

De forma resumida, vamos esclarecer o que é o Upanishads.

O Upanishads contém ensinamentos considerados místicos. Representa uma instrução altamente especializada que exigia do discípulo uma profunda qualificação. O discípulo precisava estar preparado e maduro para receber os ensinamentos ou o mestre poderia se recusar a transmitir. Zimmer esclarece:

Não podemos esquecer que o termo equivalente da palavra upanisad – que em todos os lugares era usado para descreve-lo – é rahasyan, “um segredo, um mistério”. Trata- se, portanto, de uma doutrina secreta, oculta, que revela satyyasya satyam, “a verdade da verdade” (ZIMMER, 2003:57).

principais axiomas da metafísica universal. São ramagens novas que se juntam às antigas, esclarecendo-as e enriquecendo-as. Eles são considerados a última parte dos livros considerados sagrados, que foram “revelados”, isto é, shruti. Exprimem em metáforas ou diálogos as mais profundas inquietudes humanas e respondem-nas sob a forma de apólogos (fábulas) ou poemas. São a base do esoterismo ortodoxo e refletem em diversas atitudes intelectuais um puro monismo, que busca conciliar a conceituação filosófica e a intuição mística. Têm como objetivo a compreensão da essência da realidade, da Verdade. Em geral, os textos são muito curtos, e cuidam das especulações já surgidas nos outros períodos, que é a busca da Unidade no seio da diversidade.

Entre os Upanishads conhecidos, 108 representam a essência e doze deles são de particular importância: o Isha-up, o Kena-up, o Katha-up, o Mundaka-up, o Aitareya-up, o Brihadaranyaka-up, o Chandogya-up, o Taittiriya-up, o Mandukya-up, o Prashna-up, o Kaivalya-up e o Svetasvatara.

Podemos considerar como símbolo do Upanishads a famosa expressão “Tat Twam Asi”, que significa “tu és Isto”. Tat é o mesmo que “isso” . Twam é o mesmo que tuus do latim, “teu ou tu” . Asi é “é”. Modernamente seria “Tu és isto”, “Tu és o Absoluto, o “Brahma”. Mestre Bohdan se referia à expressão como idêntica à de Cristo: “Eu e o Pai Somos Um”. Esta palavra, ritual e mágica, encarna a Divindade Suprema. Ela é transcendente, imanente, está além de toda limitação e de toda definição. Cada ser traz em si uma parcela de Brahma: o atman . Impassível, imutável e eterno, esse atman não se deve confundir com o eu pessoal. Ele faz parte de Brahma, como o sal desaparece na água salgada. Ensina o Upanishad : Chandogya-up 12,1:

Joga este sal na água e volta a mim amanhã cedo. Assim fez Cvetaketu.

Seu pai disse-lhe: Trazê-me o sal que jogaste ontem na água. Cvetaketu olhou e já não o viu. Ele tinha se dissolvido.

Toma um pouco da superfície dessa água e prova-a. Que dizes? Está salgada.

Prova de novo e volta para junto de mim. Ele assim o fez e disse: “Está sempre salgada”.

Assim, em verdade, meu amigo, não percebes o Ser, e entretanto Ele esta aí. É por essa essência sutil que tudo é animado; ela é a única realidade, ela é o atman, e tu mesmo Cvetaketu, tu és Isto. (LEMAITRE, 1958:28)

Quanto às seis escolas filosóficas, tradições consideradas ortodoxas, conhecidas também por “darshana” ou “pontos de vista”, que surgiram nesta terceira fase, podemos considerar que elas defendiam algumas idéias específicas. São elas: o Nyaya, o Vaisesika,

o Samkhya, o Mimansa, o Vedanta e o Yoga. Resumidamente:

1 - Nyaya. Seu autor era Gautama; ele escreveu cinco livros e chamou-os de Nyaya Sutras, provavelmente no século III a.C.. Elementos dessa filosofia são encontrados no

Upanishads. A Nyaya é uma tentativa lógica de expor idéias religiosas e filosóficas dos

dogmas do Brahmanismo e como resultado teremos uma defesa lógica do realismo teísta. Esse realismo baseia-se antes de mais nada na prova do realismo da mente (manas) sem cuja participação nada pode ser observado ou percebido. Daí toda importância dada a mente e à lógica.

2 - Vaisesika. Suas raízes estão no Upanishads. O autor do Vaisesika Sutra é Kanada e a obra é composta de dez livros. É talvez mais velha que a Nyaya, ou talvez tenha sido compilada no século III A.C. O tema principal do Sistema é a Teoria Atômica, sendo que o Livro I discute cinco categorias de substâncias; o Livro II especifica as categorias; o Livro |III trata dos sentidos, da alma e da mente; o Livro IV, fala sobre a estrutura atômica do Universo; o Livro V trata da Natureza da ação; o Livro VI fala da Ética; o Livro VII trata da qualidade do Self; e os Livros VIII, IX e X, falam sobre a percepção, da inferência e da casualidade.

3 - Samkhya. O sábio Kapila é considerado o fundador, mas, pouco se sabe sobre ele. Acredita-se tenha vivido antes do surgimento do budismo e era considerado o melhor dos siddhas, homens iluminados. Essa tradição divulga a renúncia a tudo que não seja o Si Mesmo, usando do discernimento (viveka) que é interpretado como uma compreensão investigativa. A história do Samkhya não pode ser determinada com precisão e alguns elementos já foram encontrados nos antigos Vedas, o que pode representar uma antiguidade ainda maior. Textos esotéricos como Katha, Shvetashvatara e Maitrayaniya-

Upanishads representam escolas pré-clássicas do Samkhya, que surgiram por volta de 500

e 200 a.C. Estas escolas mostraram ter uma forte ligação com o Yoga, por isso, ás vezes, são tratadas como Samkhya-Yoga, mas há distinções entre elas. Alguns autores acreditam que Patanjali teria sido influenciado por esta doutrina ao organizar a sua filosofia do Yoga. No Bhagavad-Gita (5.4), o Yoga é equiparado ao Karma-yoga e o Samkhya ao caminho da renúncia. A partir do ano 1000 d.C. a tradição Samkhya declinou.

4 - Mimansã. De acordo com Jaimini, o primeiro autor da escola Mimansã, deve-se apelar o menos possível para as realidades “não vistas”. Para os teóricos dessa escola, teístas e ateístas, a evidência alegada que prova a existência de Deus era insuficiente, além do mais não havia necessidade de um autor para os Vedas ou um Deus para validar os rituais védicos. Na verdade, eles temiam polêmicas como estas, pois poderiam destronar os

Vedas, cuja autoridade estava acima de qualquer julgamento.

5 - Vedanta. Para Feuerstein “o Vedanta foi sistematizado no Brahama-Sutra de Badârâyana (provavelmente século II d.C.). Esse tratamento conciso deu origem a inúmeras interpretações, algumas bastante divergentes. A escola mais conhecida e influente é a Kevala Advaita (não-dualismo absoluto) de Shankara (ca.788-820)” FEUERSTEIN, 2005:249). Para Shankara45 o autor do Vedanta Sutras é Vyâsa. A escola Vedanta

começou sua análise da verdade com o Upanishads. Haviam duas visões: a dualista (Avaita) e a não dualista (Advaita). Uma subordinação da verdade ordinária à verdade religiosa é uma característica da Advaita Vedanta, não dualista. Desta visão, um dos principais expoentes foi Gaudapada, no século VII, cujo comentário sobre a Mandukya

Upanishads impressionou o acadêmico Louis Renou. No início do século VIII d.C., um

jovem da seita Shivaita, de nome Shankara, provocou uma perfeita revolução no norte da Índia ao lançar suas idéias. Ele foi o maior defensor da metafísica não-dualista, o Advaita Vedanta. Reformador religioso, grande filósofo e adepto do Yoga, estabelece um sistema filosófico com base nos Vedas, mas fundamentado pelos Upanishads. Daí o nome Vedanta “parte final dos Vedas”. Para atrair o povo, ele adota também como fundamento doutrinário o Bhagavad-Gita, uma obra que já tinha grande popularidade e admite a bhakti (devoção) como um dos meios para alcançar a perfeição. Shankara fundou dez ordens monásticas para atender os renunciantes que aderiam às suas idéias e se tornaram cada vez mais populares. Ele foi o responsável pela grande mudança sofrida pelo hinduísmo, reintegrando as seitas em torno de um único credo, o que hoje dá essa visão politeísta e monoteísta, isto é, o praticante escolhe a divindade que quiser, mas estará sempre servindo a um único deus: Brahma. Ele é considerado um epíteto de Shiva. Helena Blavatsky considera “Shankarâchârya, o mais sábio dos Mestres Esotéricos da Índia”. (BLAVATSKY, 1996:141). Mestre Bohdan também era um grande admirador de Shankara.