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IV. Os instrumentos e as suas características

IV. 3 Aspectos técnicos: análise comparativa

Dada a proximidade temporal entre os órgãos da segunda e terceira fases e, sobretudo, as suas similaridades, este subcapítulo analisa o grau de influência que os primeiros exerceram sobre a concepção dos segundos. No entanto, devido ao elevado número de órgãos criou-se uma amostra de catorze exemplares, com base nos seguintes critérios:

1) representatividade de cada construtor (diferentes épocas de construção, quando possível, e diferentes dimensões);

2) condições de conservação do instrumento por forma a facilitar os trabalhos de medições e de registo de som (foram incluídos alguns órgãos inoperacionais, mas a sua escolha deveu-se ao facto de serem exemplares únicos).

A Tabela 4.5 apresenta os órgãos da referida amostra, com a respectiva identificação e as razões da selecção de acordo com os critérios acima expostos. Abrangendo um período de aproximadamente cem anos (1788 a 1892), a amostra contempla dois órgãos de Joaquim António Peres Fontanes (JAPF), quatro de António

Xavier Machado e Cerveira (AXMC), dois de Sebastião Gomes de Lemos (SGL), dois de João Nicolau Ferreira/Silvestre Serrão (JNF/SS), um de Nicolau António Ferreira (NAF), um de Tomé Gregório de Lacerda (TGL) e dois de Manuel de Sousa (MS).

Construtor Data Igreja Observações

AXMC 1788, n.º 22

Convento de S. Francisco (AH-TER)

Primeiro órgão de fachada aberta de AXMC nos Açores.

1790, n.º 29

Matriz de Santa Catarina (Calheta-SJ)

Primeiro órgão de armário de AXMC nos Açores.

1828, n.º 102

Matriz de S. Sebastião (PD-SM)

Último órgão de fachada aberta de AXMC nos Açores; Reflecte a 3.ª e última fase de construção.

1828, n.º 104

Convento de S. André (PD-SM)

Encontra-se em estado original e operacional.

JAPF 1794 Carmo (PD-SM) Único órgão de armário de Peres Fontanes operacional;

1797 S. José (PD-SM) Maior órgão do construtor nos Açores. Operacional e em óptimo estado de conservação.

SGL 1848 Espírito Santo (Maia-SM) Único órgão de armário do construtor. Actualmente em processo de restauro. 1855 Matriz de N.ª Sr.ª da

Estrela (RG-SM)

Único exemplar de fachada aberta operacional.

JNF 1858 S. Pedro (PD-SM) Órgão construído em colaboração com o Padre Silvestre Serrão.

1877, n.º 9

N.ª Sr.ª da Ajuda (Bretanha-SM)

Órgão construído sem a supervisão do Padre Serrão, uma vez que corresponde ao ano da sua morte.

TGL 1865 Matriz de S. Jorge (Velas-SJ)

Exemplar único. Operacional. NAF 1884 S. João Baptista (Pico) Exemplar único. Operacional.

MS 1891 S. Pedro (VFC-SM) Últimos dois instrumentos construídos nos Açores com reminiscências da organaria portuguesa tardo-setecentista.

1892 Matriz de S. Cruz (Lagoa-SM)

Tabela 4.5 – Amostra organológica314

IV. 3. 1 Disposição fónica, nomenclatura e composição dos registos compostos

O plano fónico dos instrumentos em análise segue a estrutura de qualquer órgão: registos simples (família dos Flautados junto com a das Flautas); registos compostos e registos de palheta (ressoador longo ou curto), estes últimos posicionados verticalmente

314 A numeração anexa a alguns instrumentos corresponde à inscrição existente na placa identificativa de

dentro do órgão e/ou dispostos horizontalmente na fachada.315 O plano fónico e a

respectiva nomenclatura são observáveis na parte exterior do instrumento, em ambos os lados da consola, onde se encontram dispostos os manípulos dos registos.316 Por uma

questão de uniformização e sobretudo para uma leitura mais facilitada, a análise de cada instrumento inclui o respectivo plano fónico, o qual obedece à nomenclatura original e estrutura-se pela seguinte ordem:

Registos simples (famílias dos Flautados e das Flautas, do mais grave para o mais agudo)

Registos compostos (do mais grave para o mais agudo, com indicação do número de filas)

Registos solistas da mão direita (Voz humana e Corneta)317 Palhetas

Os instrumentos serão analisados pela ordem cronológica da sua construção, de modo a serem comparados entre si. Para uma abordagem mais completa serão igualmente apresentados os esquemas dos respectivos someiros (identificados com a sigla ES), nos quais transparece a forma como cada construtor dispõe os jogos de tubos no someiro.

Os órgãos das igrejas de S. Francisco (Angra) e de S. José (Ponta Delgada) são aqui analisados em conjunto para facilitar a sua comparação, uma vez que ambos são de grandes dimensões e construídos no século XVIII. Como foi referido anteriormente, Peres Fontanes incorpora registos inteiros e meios registos, e Machado e Cerveira apenas meios registos. Verifica-se que a correspondência entre os meios registos homónimos das duas mãos é rigorosamente linear no órgão de Peres Fontanes, não

315 A disposição horizontal deve-se aos espanhóis, sendo por isso uma das idiossincrasias dos órgãos

ibéricos. Cf. Jesus Ángel de la Lama, “Principales características de los órganos renascentistas e barrocos españoles”, Nassarre – Revista Aragonesa de Musicologia, XVIII, 1-2, Zaragoza, Institución «Fernando El Católico», 2002, p. 22.

316 O órgão do Convento de Santo André é o único exemplar da amostra cujo plano fónico é identificado

exclusivamente pelo tipo de som produzido, dada a ausência de etiquetas junto aos manípulos dos registos.

317 Por uma questão de uniformidade a Corneta foi transversalmente considerada registo solístico (como é

tradicional na organaria europeia), apesar de na maioria dos órgãos da amostra ser um registo de carácter principalizante que se integra no cheio.

sendo, pelo contrário, uma preocupação por parte de Machado e Cerveira.318 Atente-se

na forma como Peres Fontanes estrutura os registos da família dos Flautados em ambas as mãos de acordo com os primeiros quatro harmónicos (fundamental – 8ª – 12ª – 15ª), revelando uma preocupação acrescida na sustentação do instrumento, a qual, no caso do órgão do convento de S. Francisco, só se manifesta na mão esquerda.

Igreja do Convento de S. Francisco, Angra do Heroísmo (Terceira) António Xavier Machado e Cerveira, n.º 22, 1788

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-e’’’) Flautado de 12 aberto Flautado de 12 aberto Flautado de 12 tapado Flautado de 12 tapado

Flautado de 6 aberto Flauta em 12 Flautado de 6 tapado Flautim

Dozena Oitava e 12ª (3v) Quinzena Dezanovena (4v) Dezanovena (3v) Simbala (4v) Vintedozena (5v) Resimbala (3v)

Símbala (4v) Voz humana Resímbala (3v) Corneta (5v)

Trompa Clarim

Igreja paroquial de S. José, Ponta Delgada (S. Miguel) Joaquim António Peres Fontanes, 1797 Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-d’’’)

Flautado 12 aberto Flautado 12 aberto Flautado 12 tapado Flauta travessa

Flautado 6 tapado Flauta em 6 Oitava real Oitava real

Dozena Dozena Quinzena (2v) Quinzena (2v) Dezanovena Mistura (5v) Mistura (5v) Símbala (4v) Voz humana Corneta ingleza (5v) Trompa real Trombeta real Trompa de batalha Clarim

Fagote Clarineta

No órgão da Igreja de S. José, o Flautado de 12 aberto da mão esquerda abrange

318 Este foi um aspecto mencionado por David Cranmer em “Organs in the Azorean Archipelago”, e em

toda a extensão do teclado, enquanto no órgão do Convento de S. Francisco surge somente a partir de g, sendo constituído por tubos de madeira (tapados) até ao f#. Em termos de organização dos registos simples, o órgão de S. José evidencia um maior equilíbrio entre as duas mãos, graças à presença de registos de 8’ e 4’ em toda a extensão do teclado, quer da família dos Flautados quer das Flautas (Tabela 4.6).

Convento de S. Francisco (AXMC)

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

8’ 8’ 8’ 8’+ 8’

4’ 4’ - 4’

2’ ⅔ - - -

2’ - - -

Igreja de S. José (JAPF)

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

8’ 8’ 8’ 8’

4’ 4’ 4’ 4’

2’⅔ - 2’⅔ -

2’ - 2’319 -

Tabela 4.6 – Organização dos registos simples nos órgãos do Convento de S. Francisco e da Igreja de S. José

Convento de S. Francisco Igreja paroquial de S. José Dezanovena, 3 v. C c 22ª--- 19ª--- 26ª--- 19ª--- 29ª--- 22ª--- Vintedozena, 5 v. 26ª--- 22ª--- 29ª--- 26ª--- 29ª--- 26ª--- 33ª--- 29ª--- 36ª--- 26ª320--- Simbala, 4 v. 29ª--- 26ª--- 29ª--- 26ª--- 33ª--- 29ª--- 36ª--- 33ª--- Resimbala, 3 v. 29ª--- 26ª--- 29ª--- 33ª--- 29ª--- Dezanovena, 2 v. C c c#’ c#’’ d’’’ 19ª--- 22ª--- 15ª--- Mistura, 5 v. 22ª--- 15ª--- 8ª--- 26ª--- 19ª--- 12ª--- 29ª--- 22ª--- 15ª--- 33ª--- 26ª--- 19ª--- 36ª--- 29ª--- 22ª--- Símbala, 4 v. 29ª--- 22ª--- 15ª--- 8ª--- 33ª--- 26ª--- 19ª--- 15ª--- 33ª--- 26ª--- 19ª--- 15ª--- 36ª--- 29ª--- 22ª--- 19ª---

Tabela 4.7 – Composição dos registos compostos da mão esquerda do órgão do Convento de S. Francisco e de ambas as mãos do órgão da Igreja de S. José321

319 Registo constituído por duas filas iguais, sem repetições.

320 No Inventário dos Órgãos dos Açores, este harmónico corresponde à 33ª. Cf. p. 86. 321 Os registos relativos ao órgão de S. José são registos inteiros.

Convento de S. Francisco

Oitava e 12ª, 3 v. c#’ a#’ c#’’ f#’’ a#’’ 8ª --- 12ª--- 15ª--- Dezanovena, 4 v. 12ª--- 15ª--- 22ª--- 15ª--- 22ª--- 15ª--- Simbala, 4 v. 15ª--- 8ª --- 19ª--- 15ª--- 19ª--- 15ª--- 26ª322--- 19ª--- 15ª- Resímbala, 3v. 15ª--- 12ª--- 15ª--- 19ª--- 15ª---

Tabela 4.8 – Composição dos registos compostos da mão direita do órgão do Convento de S. Francisco

No que diz respeito aos registos compostos, há vários indicadores que apontam para o facto de Machado e Cerveira pretender uma sonoridade mais aguda (Tabelas 4.7 e 4.8). Desde logo, verifica-se a presença de harmónicos mais agudos do que no órgão de Peres Fontanes. Para além disso, aqueles registos contêm um número de repetições inferior ao órgão de Peres Fontanes, onde se parece evitar o uso dos harmónicos mais agudos.

Os registos compostos em Peres Fontanes (Símbala e Mistura) integram a parte inicial do someiro de cheios (mais próxima da fachada), enquanto nos órgãos de Machado e Cerveira estão posicionados a partir do meio do someiro de cheios em direcção à rectaguarda da caixa (ver ES 1 e 2).323

Clarim (MD) Fl.º 6 aberto (ME) Fl.º 12 aberto Fl.º 12 tapado Voz humana Flauta 12 Fl.º 6 tapado Flautim 8.ª e 12.ª, 3v 12.ª Dezanovena, 4v 15.ª Corneta 19.ª, 3v Símbala, 4v 22.ª, 5v

322 No Inventário dos Órgãos dos Açores, este harmónico corresponde à 22ª. Cf. p. 86

323 Nos esquemas dos someiros destes e dos restantes instrumentos os registos fora de linhas indicam as

palhetas horizontais, o sombreado a bege corresponde aos registos em fachada e o cinzento abrange os registos integrados no someiro de cheios, por oposição ao someiro principal, sem qualquer sombreado.

Resímbala, 3v Símbala, 4v Fl.º 12 tapado Resímbala, 3v

Fl.º 12 aberto (ME) Trompa (ME)

Esquema 1 – Someiro do órgão da Igreja do Convento de S. Francisco

Clarim Trompa de batalha Clarim Clarineta Fagote Clarineta

Tr o m p a d e b at al ha

Flautado 12 aberto (ME) Tr

o m p a d e b at al h a Fl.º 12 ab (MD) Fl.º 12 tap. (ME) Fl.º 12 ab (MD)

Voz humana Voz humana

Fl. travessa Fl. travessa

Corneta, 5v Corneta, 5v

Símbala, 4v

Mistura, 5v (MD) Mistura, 5v (ME) Mistura, 5v (MD) Dezanovena e 22.ª, 2v

Quinzena, 2v (MD) Quinzena (ME) Quinzena, 2v (MD) Flauta em 6 (MD) Fl.º 6 tap. (ME) Flauta em 6 (MD)

Dozena (MD) Dozena (ME) Dozena (MD) Oitava real (MD) Oitava real (ME) Oitava real (MD) Trombeta real (MD) Trombeta real (ME) Trombeta real (MD)

Esquema 2 – Someiro do órgão da Igreja de S. José

Em termos de registos solísticos, refira-se a presença da Corneta na mão direita, a qual, de acordo com Jesús de la Lama é o registo solista mais importante do órgão no âmbito dos registos labiais.324 Segundo o mesmo autor, a Corneta inglesa nos órgãos barrocos espanhóis tem normalmente quatro filas, sem a fundamental.325 Apesar de Peres Fontanes ter optado pelo epíteto de “inglesa”, a composição base das cornetas dos dois instrumentos aqui em análise é igual: ambas têm cinco filas, com o harmónico mais agudo de 19ª e sem a fundamental, falta a que o organista teria de fazer substituir com um registo simples de 8’.

Tal como se verá mais adiante neste capítulo (IV.3.2), as medidas dos tubos do registo de Corneta diferem ligeiramente entre Machado e Cerveira e Peres Fontanes, sendo que neste último apresentam dimensões maiores que apontam para um registo da família das Flautas, de secção mais larga e menos principalizante, logo com perfil mais solístico.

324 Cf. El Organo Barroco Español, Valladolid, Junta de Castilla y León, vol. II, 1995, pp. 402.

Independentemente das diferentes terminologias e do número de filas, a Corneta nos órgãos barrocos espanhóis assume sempre uma função solística, estando normalmente colocada numa posição destacada em relação ao someiro. Cf. op. cit., vol. I, p. 242.

Convento de S. Francisco Igreja de S. José Corneta, 5v Corneta inglesa, 5v c#’ c#’’ c#’’’ 8ª --- 12ª--- 15ª--- 17ª--- 19ª--- c#’ f’’ 8ª --- 12ª--- 15ª--- 12ª--- 17ª--- 15ª--- 19ª--- 17ª---

Tabela 4.9 – Composição do registo de Corneta dos órgãos do Convento de S. Francisco e da Igreja de S. José

A posição da Corneta no someiro dos dois instrumentos vem corroborar essa hipótese, transmitindo, paralelamente, a visão dos construtores sobre a sua função no complexo sonoro. Machado e Cerveira coloca o registo de Corneta no someiro de cheios, sendo assim subtraído pelo pedal anulador de cheios. Peres Fontanes integra-o no someiro principal, imediatamente atrás dos tubos de fachada e junto à Flauta travessa, sugerindo deste modo que deve ser utilizado com a Flauta como suporte, num ambiente inequivocamente solístico (ver ES 1 e 2).

O mesmo processo ocorre com a Voz humana, o outro registo solista da mão direita, que, estando posicionado junto ao Flautado 12 aberto da mão direita, indica que a sua utilização deve ser suportada por esse registo.

Pelo esquema dos someiros (ES 1 e 2) também se confere que Peres Fontanes opta por dispor o duplo someiro de forma sequencial, primeiro o someiro principal e depois o secundário, e Machado e Cerveira acaba por encaixar o someiro secundário no meio do someiro principal. Uma outra divergência reside na forma como se organizam os jogos em cima do someiro: Machado e Cerveira divide o someiro em esquerda e direita (correspondendo à divisão do teclado), e Peres Fontanes distribui os jogos da mão direita pelas duas extremidades, colocando os jogos da mão esquerda ao centro (Fig. 4.14 e 4.15).

Fig. 4.14 – Tubaria do órgão de S. Francisco (com a fachada ao lado direito)

Fig. 4.15 – Tubaria do órgão de S. José (com a fachada ao fundo)

De acordo com as Figuras 4.14 e 4.15, os tubos estão dispostos diatonicamente no órgão de S. José, sendo que em S. Francisco têm a mesma disposição diatónica na mão esquerda, mas na mão direita passa a ser cromática.

Estes dois instrumentos têm igualmente registos de palhetas, interiores e exteriores, as primeiras dispostas verticalmente no interior da caixa (na rectaguarda) e as segundas horizontalmente na fachada. O órgão de S. José exibe o maior conjunto de palhetas no cômputo dos órgãos históricos nos Açores, apresentando, também, um maior equilíbrio entre cada metade do teclado (Tabela 4.10).

Convento de S. Francisco Igreja Paroquial de S. José

M.E. M.D. M.E. M.D.

Trompa (8’ I) Clarim (8’ E) Trombeta real (8’ I) Trombeta real (8’ I) Trompa de batalha (8’ E) Clarim (8’ E)

Fagote (8’ E) Clarineta (8’ E) Tabela 4.10 – Registos de palhetas nos órgãos do Convento de

S. Francisco e da Igreja de S. José 326

326 As letras correspondem à localização no instrumento: “I” significa que a palheta se encontra no

No âmbito da mão direita, destaca-se um dos registos mais característicos da organaria ibérica desde final de seiscentos,327 o Clarim, com 8’ e ressoador longo,

disposto horizontalmente na fachada. A Clarineta – diminutivo de Clarim – é uma idiossincrasia de Peres Fontanes, tratando-se de um registo também de 8’ mas com ressoador curto que, no caso de S. José, está igualmente posicionado na fachada.328

A Trompa real ou Trombeta real é outro registo de palheta de 8’ com ressoador longo muito comum na organaria ibérica dos séculos XVII e XVIII. De acordo com Louis Jambou, constitui a base da bateria de palhetas e encontra-se na posição vertical no interior da caixa, na sua parte traseira, a mesma posição que assume nos órgãos portugueses.329 No órgão de S. Francisco, a Trombeta real surge sob a designação de “Trompa” como meio registo da mão esquerda, enquanto no órgão de S. José abrange toda a extensão do teclado sob a forma de dois meios registos designados Trombeta real. Em ambos os instrumentos está localizada na rectaguarda da caixa (ver ES 1 e 2). A Trompa de batalha, assim designada por se encontrar na fachada em posição horizontal, é mais um meio registo de palheta oriundo da organaria ibérica.330 Apesar de se apresentar com treze palmos na tradição ibérica, nos órgãos de Peres Fontanes e Machado e Cerveira a sua medida varia entre os doze e seis palmos (8’ e 4’, respectivamente). Em S. José apresenta-se com 8’, sendo que os tubos correspondentes às notas mais graves estão dispostos nas laterais do órgão.331 Outro meio registo de palheta da mão esquerda muito disseminado na organaria portuguesa de final de setecentos é o Fagote, com 8’ e ressoador curto.332 Embora no conjunto de instrumentos

aqui em análise surja somente no órgão de Peres Fontanes, colocado na fachada, o

327 Segundo Jesús de la Lama, o primeiro meio registo de palheta da mão direita com ressoador longo a

ser colocado na fachada foi o Clarim. Cf. El Organo Barroco Español, vol I, p. 286. Também Marco Brescia, baseado em larga medida nos estudos de Lama, analisa o surgimento e desenvolvimento das palhetas horizontais em Espanha, particularmente na escola criada por Joseph de Echevarría. Consultar “L’École Echevarría en Galice, et son rayonnement au Portugal”, vol. I, pp. 22-25.

328 Este registo consta igualmente do plano fónico do órgão da Igreja de Santa Bárbara (Peres Fontanes,

1793), na ilha Terceira, assim como no órgão da Epístola da Basílica de Mafra (Peres Fontanes, 1807).

329 Cf. Evolución del órgano español siglos XVI-XVIII, Ethos, Universidade de Oviedo, vol. I, 1988, p.

294-295.

330 Outro meio registo de palheta horizontal de treze palmos que integra o conjunto de palhetas em

Espanha a partir do final do século XVII. Cf. Jesús de la Lama, “Principales características de los órganos renascentistas e barrocos españoles”, p. 25.

331 Esta disposição deve-se ao facto de o órgão ter sido instalado originalmente num dos arcos da nave

central, de onde terá sido removido nos anos quarenta do século XX para o coro alto. Cf. Inauguração do Órgão de Tubos da Igreja de São José – Integrada na Semana de São José 1995, s/p.

332 Na organaria hispânica o Fagote surge somente em meados do século XVIII, normalmente para

Fagote é muito comum nos órgãos dos Açores, tal como se verá ao longo deste capítulo. No caso do órgão de S. José, a Trombeta real está inserida no someiro de cheios e é anulada pelo pedal de cheios, enquanto as palhetas exteriores dependem da acção manual, sistema pelo qual também funcionam os jogos de palheta do órgão de S. Francisco.

Outra especificidade é a presença no órgão de Peres Fontanes de uma pedaleira de doze notas (Dó1-Si1) acoplada à oitava grave (ver cap. VI, Fig. 6.7), situação única nos Açores e pouco vulgar no continente,333 além de um acessório com efeito de tambor, com as notas Ré e Lá.

Apesar de o órgão de S. Francisco ser anterior ao de S. José, apresenta uma extensão do teclado superior, com cinquenta e três notas (C-e’’’), por oposição às cinquenta e uma do órgão de S. José (C-d’’’).

Tal como estes dois últimos órgãos representam os instrumentos da amostra de maiores dimensões do século XVIII, os órgãos da Igreja Matriz da Calheta (S. Jorge) e da Igreja do Carmo (Ponta Delgada), de Machado e Cerveira e Peres Fontanes, respectivamente, sintetizam os exemplares de pequenas dimensões do século XVIII contemplados na amostra.

333 Segundo as fontes que fornecem dados sobre a morfologia dos órgãos da Sé de Angra (de Peres

Fontanes e de Joaquim Silvestre Serrão), estes instrumentos tinham uma pedaleira com doze notas. Cf.

António Teixeira de Macedo, Breve Memoria sobre o Estado da Agricultura, Commercio e Industria do Districto de Ponta Delgada offerecida Ao Exm.o Sr. Antonio Maria de Fontes Pereira de Mello, Ministro e Secretário d’Estado das Obras Publicas Commercio e Industria, Ponta Delgada, 1853, pp. 26 e 27; “Organs of two islands”, p. 495.

Igreja Matriz de Santa Catarina, Calheta (S. Jorge) António Xavier Machado e Cerveira, nº 29, 1790 Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-d’’’) Flautado de 12 tapado Flauta em 12

Flautado de 6 tapado Flauta em 6 Quinzena Compostas de 22.ª

Clarão Corneta

Fagote Oboé

Igreja do Carmo, Ponta Delgada (S. Miguel) Joaquim António Peres Fontanes, 1794

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-d’’’) Flautado 12 tap. Flautado 12 abert.

Flautado 6 tap. Flautado 6 tap. Quinzena 8ª Real, 15ª, 19ª, 22ª Dezanovena e 22ª Mistura Cornetilha Voz humana Fagote Clarineta

Também aqui Peres Fontanes apresenta meios registos e registos inteiros e Machado e Cerveira exclusivamente meios registos. Não obstante a dimensão dos instrumentos, dispõem de registos simples, compostos, solistas e de palheta, uma junção de famílias que nem sempre estará presente nos órgãos da terceira fase.

Igreja Matriz de S. Catarina (Calheta)

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

- 8’ - 8’ - 4’ - 4’ - - - - 2’ - - - Igreja do Carmo M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

- 8’ 8’ -

- 4’ - 4’

- - - -

2’

Tabela 4.11 – Organização dos registos simples nos órgãos da Igreja Matriz da Calheta e da Igreja do Carmo

Em ambos, o principal de 4’ da mão direita (Oitava real) não surge na versão simples mas sim como uma fila de um registo composto, e o registo principal mais grave da mão esquerda é uma Quinzena, aspectos que traduzem a intenção dos

construtores em criar um instrumento de pequenas dimensões.334 No entanto, no órgão

da Igreja do Carmo, Peres Fontanes introduz um Flautado de 12 aberto na mão direita. No contexto dos registos compostos destaque-se o meio registo de Clarão (m. e.) com cinco filas no órgão de Machado e Cerveira e os dois meios registos de Mistura, com três filas, no órgão de Peres Fontanes. A utilização destes registos, em concreto, também revela a intenção dos respectivos construtores, pois a idiossincrasia do registo de Clarão reside na integração de um intervalo de terceira (24ª), o qual se reflecte no resultado sonoro, enquanto o registo de Mistura abrange apenas intervalos de oitava e de quinta.

Tabela 4.12 – Composição dos registos compostos da mão esquerda dos órgãos da Igreja Matriz da Calheta e da Igreja do Carmo

Igreja Matriz de Santa Catarina (Calheta) Compostas de 22ª, 4 v. c#’ c#’’ 8ª --- 12ª --- 8ª --- 15ª--- 12ª --- 19ª --- 15ª--- Igreja do Carmo (PD) 8ª Real, 15ª,19ª e 22ª, 4 v. c#’ c#’’ 8ª --- 15ª --- 19ª--- 15ª --- 22ª --- 19ª---

Tabela 4.13 – Composição dos registos compostos da mão direita dos órgãos da Igreja Matriz da Calheta e da Igreja do Carmo

A composição das Compostas de 22ª de Machado e Cerveira (m.d.) é muito semelhante à composição do registo de 8ª Real, 15ª, 19ª e 22ª de Peres Fontanes

334 Recorde-se que estes instrumentos foram encomendados por igrejas conventuais femininas (ver cap. II.

2).

Igreja Matriz de Santa Catarina (Calheta) Clarão, 5 v. C c# g# 19ª--- 15ª --- 22ª--- 19ª --- 15ª--- 24ª--- 22ª --- 19ª --- 26ª--- 24ª --- 29ª--- 26ª --- Igreja do Carmo (PD) Mistura, 3 v. (inteiro) C c# c#’’ 22ª--- 15ª --- 8ª---- 26ª--- 19ª --- 12ª--- 29ª--- 22ª --- 15ª --

(m.d.). A tendência de Machado e Cerveira relativamente à presença de harmónicos agudos, mencionada no contexto do órgão de S. Francisco, não se manifesta tão explicitamente no órgão da Igreja Matriz da Calheta.

Ao nível dos jogos solísticos da mão direita nota-se a ausência da Voz humana no órgão de Machado e Cerveira. O registo de Corneta, não obstante assumir a designação de “Cornetilha” no órgão de Peres Fontanes, tem o mesmo número de