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IV. Os instrumentos e as suas características

IV.1 Dimensão

Ao observar os órgãos históricos portugueses da segunda e terceira fases da história do órgão nos Açores, distinguem-se três dimensões: grande, média e pequena. No entanto, até ao presente, essas dimensões não se encontram sistematizadas, na medida em que não foram definidas segundo critérios organológicos inerentes à tipologia dos instrumentos. Essa sistematização encerra uma importância bilateral: por um lado, a confrontação das características da organaria portuguesa tardo-setecentista com a organaria espanhola contemporânea partindo da obra do frade espanhol Pablo Nassarre intitulada Escuela Musica segun la practica moderna288 – uma das obras de referência no que diz respeito à classificação dos órgãos nos séculos XVII e início de XVIII no espaço ibérico – e, por outro, as ilações que podem advir dessa classificação no que respeita à relação entre dimensão do instrumento e a categoria da igreja que o encomenda.

Na referida obra de Pablo Nassarre estabelecem-se quatro espécies (categorias) definidas a partir do tubo de Flautado mais grave sobre o qual se processa a intonação do instrumento:289

1ª) 26 palmos (24 palmos em Portugal); 2ª) 13 palmos (12 palmos em Portugal); 3ª) 6,5 palmos (6 palmos em Portugal);

288 Zaragoza, Herderos de Diego de Larumbe, 1724, vol. I, pp. 481-488.

289 Cf. pp. 481, 482, 483: “(...) Son de quatro especies distintas los que ay en magnitude; unos son de

entonacion de veinte y seis palmos, que llaman sus Artifices; outros de treze; outros de seis y medio; y outros Portatiles. Llaman de entonacion de veinte y seis palmos à los mayores, porque tiene esta medida el caño, ò flauta mayor del registro principal, que se llama flautado; y de treze, porque es esta la medida de la flauta mayor de los de la segunda especie. Los de la tercera especie, tiene la mayor seis y medio. Y aunque los Portatiles, que son de la quarta especie, està el tono en proporcion igual con los de la tercera, pero se distingue en no tener tanto de longitud el flautado, por ser tapado, pues toda flauta tapada (como dirè adelante) à menos longitud, tiene el tono mas baxo. (...)” Tradução da autora: “São de quatro espécies distintas os que há, em dimensão: uns são de afinação de vinte e seis palmos, como chamam os artífices, outros de treze, outros de seis e meio e outros portáteis. Chamam de afinação de vinte e seis palmos aos maiores porque tem esta medida o tubo, ou flauta, maior do registo principal, que se chama Flautado, e de treze porque esta é a medida da flauta maior dos da segunda espécie. Nos da terceira espécie tem a maior seis e meio. E ainda nos portativos, que são da quarta espécie, está o tom em proporção igual com os da terceira, mas distingue-se por o flautado não ter tanto comprimento, por ser tapado, pois toda a flauta tapada (como direi adiante) com menor comprimento tem o tom mais baixo.”

4ª) Portativo (mesma proporção sonora dos da 3.ª espécie mas sobre o flautado tapado).

Com esta classificação os órgãos espanhóis ficavam agrupados em quatro tamanhos: grande porte (26 palmos), médio, (13 palmos), pequeno (6,5 palmos) e portativos. No caso dos órgãos portugueses de finais de setecentos e dos órgãos construídos nos Açores na segunda metade do século XIX essa divisão não é tão linear. Além da salvaguarda relativamente à diferença temporal entre os órgãos a que se dedica a obra de Nassarre e os órgãos dos Açores, interessa considerar determinadas idiossincrasias do órgão espanhol, não presentes nos órgãos aqui em estudo. Desde logo, o facto de os meios registos terem, normalmente, correspondência entre as duas mãos, o que não acontece na generalidade dos órgãos portugueses a partir de finais de setecentos e de oitocentos, nos quais é muito comum encontrar como Flautado mais grave da mão esquerda um registo de 6 aberto enquanto na mão direita existe um Flautado de 12 aberto. Na Península Ibérica, à época a que se reporta Nassarre, todo o complexo sonoro do instrumento era pensado a partir do tubo Flautado mais grave, pelo que num órgão sustentado na Oitava real não existiam registos daquela família com intervalos inferiores.290 Consequentemente, a construção dos cheios era normalmente

feita com base na altura do Flautado mais grave, procedimento que volta a não ser linear nos órgãos portugueses de final do século XVIII, onde a fundamental pressuposta pelos registos compostos frequentemente não está presente na família dos Flautados. Refira-

290 Refira-se como exemplo o órgão barroco da primeira metade do século XVIII da Igreja Paroquial de S.

João Baptista em Fuendejalon (Zaragoza), construído por Francisco Sesma em 1721. O principal mais grave da mão esquerda é de 4’, pelo que a construção da mão direita se sustenta também num registo principal de 4’. M. E. (C-c’) M. D. (c#’-a’’) Bajoncillo Clarín Zímbala Docena Lleno Lleno Ventidozena Zímbala Decisetena Tapadillo Quincena Decisetena Decinovena Corneta Octava Decinovena Violón Violón Tapadillo Octava

A disposição aqui apresentada obedece à estrutura da fonte onde foi retirada: Jesus Gonzálo López e Angela Orleans (coord.), Órganos Historicos Restaurados, Joyas de un patrimonio II, Catálogo, Zaragoza, Tarazona, Diputación de Zaragoza, Arzobispado de Zaragoza, Arzobispado de Tarazona, 1991, p. 84.

se, como exemplo, o meio registo de Corneta do órgão da Igreja do Convento de Santo André (AXMC, n.º 104, 1828) em Ponta Delgada, no qual algumas notas das duas primeiras filas são baseadas num Flautado de 24 palmos que não existe no órgão (Tabela 4.1). Situação idêntica ocorre também nos dois registos compostos da mão direita no órgão da Igreja de S. João Baptista na ilha do Pico (Tabela 4.2).

Corneta (5v) c#’ c#’’ c#’’’ 8ª --- 5ª---Fl.º 12 ab 12ª291 --- 8ª --- 5ª--- 15ª--- 12ª--- 8ª --- 17ª--- 15ª--- 12ª--- 22ª--- 17ª--- 12ª--- Compostas de 12.ª e 19.ª (2 v) c#’ c#’’ c#’’’ 12ª--- 5ª--- 19ª--- 12ª--- 5ª--- Compostas de 15.ª e 22.ª (2 v) c#’ c#’’ c#’’’ 15ª --- 8ª --- 12 ab--- 19ª--- 12ª--- 5ª--- Tabela 4.1 – Composição do meio registo de

Corneta do órgão do Convento de Santo André (Ponta Delgada), António Xavier Machado e Cerveira, n.º 104, 1828

Tabela 4.2 – Composição dos registos compostos da mão direita do órgão de S. João Baptista (Pico), Nicolau António Ferreira, 1884

Independentemente da metodologia de Nassarre se apresentar como um sólido critério organológico no que concerne à tipologia dos instrumentos ibéricos, não se adapta ao núcleo dos órgãos históricos dos Açores, justamente pela assimetria entre os registos de fundo das duas mãos (nomeadamente da família dos flautados ou principais), cujo tubo mais grave da mão esquerda não define, necessariamente, a altura dos restantes registos. Cada uma das partes do teclado (inferior e superior) assume-se como um corpo ou estrutura própria.

Assim, atendendo às especificidades fónicas dos órgãos históricos dos Açores, considera-se a seguinte possibilidade de classificação, de acordo com o principal mais grave de ambas as mãos (Tabela 4.3): categoria A (grande) – órgãos com Flautado 12 aberto em toda a extensão do teclado; categoria B (média) – órgãos com Flautado 6 aberto na mão esquerda, tendo, no entanto, um Flautado de 12 tapado, e com Flautado 12 aberto na mão direita; categoria C (pequena) – órgãos com Quinzena na mão esquerda tendo, também, um Flautado de 12 e 6 tapados, com uma das três

configurações na mão direita: 1) Quinzena, tendo, também, uma Flauta de 12 e outra de 6 palmos; 2) Oitava Real com Flautado 12 tapado; 3) Flautado 12 aberto.292

Categorias M. E. M. D.

A Flautado 12 aberto Flautado 12 aberto B Flautado 6 aberto

[Flautado 12 tap.]

Flautado 12 aberto

C Quinzena

[Flautado 12 tap. e 6 tap.]

Flautado 12 aberto Quinzena [Flauta 12 e Flauta 6 ]

Oitava real [Flautado 12 tap.] Tabela 4.3 – Sistematização das dimensões dos órgãos históricos dos Açores

A Tabela 4.4 elenca todos os instrumentos históricos portugueses da segunda e terceira fases com a indicação do registo mais grave (consoante a nomenclatura adoptada em cada instrumento) de cada uma das mãos e respectiva altura (a abreviatura “Fl.º” corresponde à família dos Flautados).293

Igreja / Construtor / Ilha N.º meios registos

Registo mais grave Class.294

M. E M. D.

Convento de S. Francisco, AXMC, 1788 (TER)

22 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 1 Convento de S. Gonçalo, JAPF, 1793

(TER)

22 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 2 S. Bárbara, JAPF, 1793 (TER)a) 23 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 3

S. José, JAPF, 1797 (SM) 26 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 4 Colégio, AXMC, 1798 (TER) 20 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 5 Angústias, AJPF, 1805 (Faial)a) 22 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 6

Matriz de S. Sebastião, AXMC, 1828 (SM)

21 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 7 S. Pedro, JNF, 1858 (PD-SM) 18 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 8 Santo Antão, JAPF, 1790? (SJ)a) 10 Oitava real295

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 1 Matriz da Praia da Vitória, AXMC,

1793 (TER)

16 Oitava real [Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 2 Matriz da Horta, AXMC, 1814 (Faial) 18 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap] Fl.º 12 ab. B 3 N.ª Sr.ª da Conceição, AXMC, 1815 (TER) 18 Fl.º 6 ab [Fl.º 12 tap] Fl.º 12 ab. B 4

292 A Oitava real ou Quinzena podem surgir como registos simples ou como filas de um registo composto. 293 Dentro desta família serão igualmente incluídos os registos construídos com tubos da família dos

Bordões (tubos tapados). Em Espanha, a família que reúne Flautas e Bordões designa-se Nasardos.

294 Os números que acompanham as letras traduzem a ordem cronológica da construção dos instrumentos

dentro de cada categoria

Igreja / Construtor / Ilha N.º meios registos

Registo mais grave Class.294

M. E M. D.

N.ª Sr.ª da Luz, AXMC, 1826 (SM) 12 Fl.º 6 ab [Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 5 Convento de S. André, AXMC, 1828

(SM)

12 Fl.º 6 ab [Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 6 Misericórdia, AXMC, 1829 (TER) 12 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 7 S. Cruz, AXMC, 1831 (Graciosa) 12 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap] Fl.º 12 ab. B 8 Espírito Santo, SGL, 1848 (Maia-SM) 12 Fl.º 6 ab [Fl.º 12 tap] Fl.º 12 ab. B 9 N.ª Sr.ª da Estrela, SGL, 1855 (RG-SM) 16 Fl.º 6 ab [Fl.º 12 tap] Fl.º 12 ab. B 10 Santa Luzia, JNF, 1860 (Feteiras-SM)a) 15 Fl.º 6 ab [Fl.º 12 tap] Fl.º 12 ab. B 11 Convento de S. Francisco, JNF,1863 (RG-SM) 17 Fl.º 6 ab [Fl.º 12 tap] Fl.º 12 ab. B 12 Matriz de S. Jorge, TGL, 1865 (Velas-SJ) 16 Oitava real [Fl.º 12 tap] Oitava real B 13 S. António, JNF,1875 (Capelas-SM)a) 14 Fl.º 6 ab [Fl.º 12 tap] Fl.º 12 ab. B 14 N.ª Sr.ª da Ajuda, JNF, 1877 (Bretanha-SM) 13 Fl.º 6 ab [Fl.º 12 tap] Fl.º 12 ab. B 15 S. João Baptista, NAF, 1884 (Pico) 14 Oitava real

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 16 S. Pedro, MS, 1891 (VFC-SM) 15 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 17 Matriz S. Cruz, MS, 1892 (SM) 15 Oitava real

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 18 Matriz de S. Catarina, AXMC, 1790

(Calheta-SJ) 10 Quinzena [Fl.º 12 tap] [Fl.º 6 tap] Oitava real296 [F.ª 12] [F.ª 6] C 1

S. Mateus, AXMC, 1793 (Graciosa) 12 Quinzena Fl.º 12 ab. C 2 Carmo, JAPF, 1794 (SM) 13 Quinzena

[Fl.º 12 tap] [Fl.º 6 tap]

Fl.º 12 ab. C 3 Matriz das Lajes, AXMC, 1804 (Pico) 8 Quinzena

[Fl.º 12 tap] [Fl.º 6 tap] Fl.º 12 ab. C 4 N.ª Sr.ª da Apresentação, AXMC, 1821 (Capelas-SM)a) 12 Quinzena [Fl.º 12 tap] [Fl.º 6 tap] Fl.º 12 ab. C 5 N.ª Sr.ª das Vitórias, JNF, 1867 (S. Maria)a) 8 Quinzena [Fl.º 12 tap] [Fl.º 6 tap] Fl.º 12 ab. C 6 S. Miguel, FBM, 1890 (Mosteiros –SM)a) 10 Quinzena [Fl.º 12 tap] [Fl.º 6 tap] Quinzena [Flauta] [Flautim] C 7

a) Instrumentos cujos dados foram extraídos exclusivamente do Inventário dos Órgãos dos Açores por se encontrarem em condições precárias de conservação ou encaixotados.

Tabela 4.4 – Dimensões dos órgãos históricos dos Açores (2.ª e 3.ª fases)

296 Fila de um registo composto.

O órgão da Igreja de S. Bárbara das Manadas, na ilha de S. Jorge, é excluído da Tabela 4.4 por não reunir os dados suficientes para a sua classificação, embora visualmente se apresente com dimensões reduzidas.297

Dos trinta e três instrumentos contemplados na Tabela 4.4 apenas um evidencia padrões pouco comuns. Trata-se do órgão da Igreja Matriz das Velas (1865) que, apesar de não cumprir com os critérios relativamente à mão direita, fica assim mesmo integrado na categoria B pelo facto de possuir um registo de 4’ principal na mão esquerda (Oitava real).298

Gráfico 4.1 – Distribuição geográfica dos órgãos da 2.ª e 3.ª fases segundo as suas dimensões

De acordo com o Gráfico 4.1, os órgãos de grandes dimensões pertencem maioritariamente à segunda fase, uma época marcada pela prosperidade económica resultante dos lucros da exportação da laranja, e localizam-se nos principais pólos urbanos: Ponta Delgada (S. Miguel), Angra (Terceira) e Horta (Faial). Em contrapartida, proliferam os instrumentos de médias dimensões na terceira fase, durante a qual, na década de sessenta, se começam a sentir os efeitos da queda da produção e

297 De acordo com as informações do Inventário dos Órgãos dos Açores (cf. p. 103), este instrumento

apresenta o seguinte plano fónico:

M. E. (C-c’) M. D. (c#’-g’’’)

Flautado 12 tapado Flautado 12 aberto Flautado 6 tapado Flauta em 12 Compostas de 12.ª e 19.ª Corneta (3v)

Cheio (3v) Cheio (4v)

298 Tal como se verá mais adiante neste capítulo, este instrumento sofreu várias intervenções, pelo que não

exportação da laranja (ver cap. I). O facto de a ilha Terceira abranger o maior número de instrumentos de grandes dimensões e não registar instrumentos de pequenas dimensões parece dever-se à situação privilegiada de ser a sede da diocese.299