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IV. Os instrumentos e as suas características

IV. 2 Tipos de caixas

De acordo com Gerhard Doderer, a caixa de um órgão “costuma assumir duas funções diferenciadas: abrigar o conjunto organológico formado pelos foles, pelas mecânicas e pela tubagem, e ostentar elementos decorativos que se encontram reunidos, principalmente, na sua fachada.”300 Apesar da sua importância, as caixas dos órgãos não

têm sido objecto de estudo sistemático. O primeiro trabalho sobre as caixas dos órgãos históricos em Portugal, configurando-se uma importante compilação, deve-se a Carlos de Azevedo e foi publicado nos anos setenta do século XX. Posteriormente, Gerhard Doderer debruçou-se sobre a temática e demonstrou a existência de um desenho de caixa comum a partir da segunda metade do século XVIII, para a qual convergiram as influências dos inúmeros organeiros que trabalharam em Portugal no final do século XVII e inícios de XVIII.301 Sob a perspectiva da simetria visual de alguns conjuntos de órgãos em Portugal e Espanha destaca-se o contributo de Marco Brescia.302

Considerando que, ao longo da história, o desenho das caixas acompanhou o desenvolvimento técnico dos próprios instrumentos (sendo, por isso, fácil reconhecer um órgão barroco norte-alemão, ou um órgão italiano ou ainda um órgão ibérico de um

299 Sublinhe-se que os dois órgãos que se encontravam na Sé de Angra até à década de oitenta do século

XX e que ficaram destruídos por um incêndio, um atribuído a Peres Fontanes e outro de Silvestre Serrão (1854), não estão contemplados nesta estatística, pois uma das condições consideradas para a inclusão nesta amostra foi a existência física do instrumento.

300 “Portuguese Organ cases of the 18th century: outstanding synthesis of craftmanship and beauty” in

Struggle for Synthesis – The Total Work of Art in the 17th and 18th Centuries, Lisboa 1999, p. 45. A mesma ideia é veiculada por Peter Williams, que considera que a caixa do órgão não constitui um mero adereço ou ornamento exterior, antes uma parte integrante de toda uma estrutura sonante. Cf. A New History of the Organ: From the Greeks to the Present Day, London, Faber and Faber, 1980, p. 190. Também Stephen Bicknell se dedica ao estudo da função e importância da caixa do órgão. Consultar “The organ case”, in Nicholas Thistlethwaite e Geoffrey Webber (eds.), The Cambridge Companion to the Organ, Cambridge University Press, 1998, pp. 55-81.

301 Cf. op. cit.

302 Consultar “L’école Echevarría en Galice, et son rayonnement au Portugal”, Tese de Doutoramento,

mesmo período),303 interessa, neste subcapítulo em particular, descrever a configuração

das caixas existentes nos órgãos dos Açores, e apontar os elementos decorativos que integram.

No que diz respeito à estrutura da caixa existem dois tipos de órgãos nos Açores: armário e fachada aberta. A designação de armário advém da existência de duas portadas colocadas na parte da frente do instrumento.304 Enquanto nos órgãos de Peres Fontanes que se conhecem é comum as portadas abrangerem não só a tubaria mas também a consola (teclado e manípulos dos registos),305 em Machado e Cerveira tapam exclusivamente a tubaria (Fig. 4.1 e 4.2). Este último modelo é replicado nos seis órgãos de armário construídos nos Açores na terceira fase: Igreja do Espírito Santo (Maia – S. Miguel), Igreja de Santa Luzia (Feteiras – S. Miguel), Igreja de S. Miguel (Mosteiros – S. Miguel), Igreja de N. Sr.ª das Vitórias (Santa Maria), Igreja de S. João (Pico) e Igreja de Santa Bárbara (Manadas – S. Jorge).

Fig. 4.1 – Órgão da Igreja do Carmo (Ponta Delgada) JAPF, 1794

Fig. 4.2 – Órgão do Convento de Santo André

(Ponta Delgada), AXMC, n.º 104, 1828

303 Michael I. Wilson em Organ Cases of Western Europe (London, C. Hurts and Company, 1979, pp. 9 a

15), compara sucintamente a evolução dos desenhos de caixas com as características técnicas dos instrumentos de países com tradição organística, nomeadamente, Alemanha, Áustria, Suíça, Dinamarca, Holanda, França, Itália, Península Ibérica e Ilhas Britânicas.

304 As portadas foram inicialmente introduzidas nos órgãos europeus como forma de ocultar o instrumento

quando não era usado, de modo a parecer um elemento decorativo, ao mesmo tempo que protegia a tubaria e o mecanismo do pó e de outras impurezas. Ver Michael I. Wilson, op. cit., p. 10.

305 Além do órgão da Igreja do Carmo, o único outro órgão de armário de Peres Fontanes nos Açores –

Igreja de Santo Antão na ilha de S. Jorge (1790?) – também tem esta mesma característica. No continente, o mesmo se verifica nos instrumentos das igrejas de Santiago de Tavira (1785), Piedade em Santarém (1795) e do Museu da Música (década de oitenta do século XVIII).

Fig. 4.3 – Órgão da Igreja de Nossa Senhora da Luz (S. Miguel)

Fig. 4.4 – Órgão da Igreja Matriz da Calheta (S. Jorge)

Os órgãos de armário podem ter ou não uma fachada, a qual consiste na disposição de uma série de tubos alinhados no mesmo plano, normalmente correspondentes ao registo mais grave da mão esquerda. Sem fachada significa que a distribuição dos tubos em cima do someiro fica completamente exposta, como acontece nos órgãos das igrejas Matriz da Calheta de S. Jorge (AXMC, n.º 29, 1790), Matriz das Lajes do Pico (AXMC, n.º 66, 1804), N.ª Sr.ª da Luz nos Fenais da Luz, em Ponta Delgada (AXMC, n.º 100, 1826)306 e S. João Baptista no Pico (NAF, 1884).

Verifica-se que nos instrumentos de armário sem fachada os adereços escultóricos são praticamente inexistentes, ao contrário do que sucede nos órgãos com fachada. Tendo em conta que os órgãos de armário sem fachada eram menos dispendiosos, deduz-se que eram adquiridos por igrejas com menos potencial económico.

As pinturas no interior das portadas da fachada, pensadas de modo a ficarem visíveis com as portadas abertas, cedo se revelaram numa característica dos órgãos

306 Neste órgão existe uma espécie de cortina de fazenda que desce da parte superior da fachada em

direcção ao interior da caixa, ligeiramente inclinada, por cima dos tubos, e suportada numa estrutura de madeira. Segundo Dinarte Machado (Cf. Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 57), este acessório, que também se encontra no órgão da Igreja Matriz das Capelas (S. Miguel), presentemente desmontado, tinha finalidades expressivas, embora não tenha sido ainda possível averiguar a respectiva originalidade, uma vez que ambos os instrumentos não foram alvo de restauro e os seus materiais não foram estudados.

europeus, surgindo frequentemente nos órgãos dos Açores.307 No órgão da Igreja Matriz

de Santa Cruz da Graciosa, também as portadas laterais são ornamentadas, um indício de que deveriam estar abertas sempre que o órgão tocasse (Fig. 4.5).

Nos Açores, este pormenor decorativo é exclusivo dos órgãos de armário da segunda fase. A sua inexistência nos órgãos de armário da terceira fase pode estar associada a uma questão económica, pois seria um elemento que sobrecarregava o orçamento. A única excepção encontra-se no órgão que marca o início da terceira fase, da autoria de Sebastião Gomes de Lemos (Igreja do Espírito Santo na Maia, S. Miguel, 1848).

Fig. 4.5

Órgão da Igreja Matriz de Santa Cruz, Graciosa

AXMC, s/n.º, 1831

(Pormenor das portadas laterais)

Todos os órgãos de armário de Machado e Cerveira têm o limite superior da caixa rectilíneo, uns sem qualquer adorno (Igrejas Matriz de Santa Catarina – S. Jorge, Matriz das Lajes – Pico, Convento de Santo André – S. Miguel, Misericórdia – Terceira e Espírito Santo – S. Miguel), outros com um frontão, como o da Igreja de Nossa Senhora da Luz nos Fenais da Luz em S. Miguel (Fig. 4.3). Por seu turno, os dois órgãos de armário de Peres Fontanes apresentam um limite superior curvilíneo encimado por elementos escultóricos (Fig. 4.1).308

Os órgãos de fachada aberta apresentam sempre uma divisão em três painéis planos, em cuja secção central se dispõem os tubos maiores (normalmente correspondentes ao registo mais grave da mão esquerda) e nas laterais os tubos mais

307 Ver Michael I. Wilson, op. cit., p. 10.

308 O órgão localizado na Igreja de Santo Antão na ilha de S. Jorge, que ainda se encontra por restaurar,

foi alvo de uma pintura descuidada e de má qualidade, que acabou por cobrir todos os elementos anteriores. Também o frontão sofreu uma reconstrução desadequada.

pequenos, configuração que confere uma imagem piramidal que se evidencia no contorno da caixa.

Fig. 4.6 – Órgão da Igreja de S. José (Ponta Delgada), JAPF, 1797

Fig. 4.7 – Órgão da Igreja Matriz de S. Sebastião (Ponta Delgada), AXMC, n.º 102, 1828

O desfasamento cronológico encontrado entre as datas da placa do construtor (1828) e da caixa (1830), no órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada, sugere que a pintura da caixa terá sido efectuada após a conclusão do instrumento. Esta hipótese confirma-se por uma das cláusulas do contrato de construção daquele órgão, onde se estabelece que a pintura é da responsabilidade da entidade compradora (ver cap. II.2 e Anexo 4). Outros elementos que sustentam a hipótese de as caixas serem pintadas nos Açores são as referências a caixas de “madeira lisa” ou de “madeira de pinho” encontradas nos despachos de transporte dos órgãos para a Igreja de N.ª Sr.ª da Luz (S. Miguel), construído e enviado para os Açores em 1826 (Fig. 4.8),309 e para a Igreja do Convento de Santo André, construído em 1828 e enviado para os Açores em 1829 (Fig. 4.9).310 Todavia, no Plano por onde se devem seguir para armar o órgão (ver Anexo 3), documento assinalado no capítulo anterior (II.2) há um forte indício de que o órgão já

309 P-Lant, Junta do Comércio, mç. 272, cx. 530. 310 P-Lant, Junta do Comércio, mç. 285, cx. 564.

estaria pintado quando chegou a S. Miguel: “(...) assim como tambem meter o Someiro, porq. no cazo de se roçar alguma couza da Pintura não seja na frente aonde logo se veja;”.311

Fig. 4.8 – Guia de transporte do órgão para a Igreja de N.ª Sr.ª da Luz (Fenais da Luz – S. Miguel), 1826

Pela mesma ordem de ideias, é igualmente provável que a pintura dos tubos de fachada presentes em alguns órgãos de Peres Fontanes e de Machado e Cerveira, concretamente S. Francisco em Angra (Fig. 4.10), paroquial de Santa Bárbara na ilha Terceira, Sé de Angra (Peres Fontanes e Joaquim Silvestre Serrão) e Matriz de Ponta Delgada (Fig. 4.7), seria realizada no local a que se destinava o órgão. No continente, esse tipo de ornamentação surge apenas em alguns instrumentos dos séculos XVII e XVIII, sendo totalmente desconhecida em instrumentos dos referidos organeiros.312

311 P-Lant, Junta do Comércio, mç. 272, cx. 530.

312 Como por exemplo na Sé de Lamego e em S. Bento da Vitória, no Porto. Cf. Carlos Azevedo,

Baroque Organ-Cases of Portugal, Amsterdam, Frits Knuf, 1972, pp. 28-29 e 42-43. Em Espanha, esse tipo de ornamentação encontra-se esporadicamente em órgãos do século XVIII da província de Aragão, Consultar Jesus Gonzálo López e Angela Orleans, (coord.), op. cit., pp. 32-38.

Fig. 4.9 – Guia de transporte do órgão para a Igreja do Convento de Santo André (Ponta Delgada – S. Miguel), 1829

Fig. 4.10 – Órgão do Convento de S. Francisco, Angra do Heroísmo (pormenor de um tubo com boca pintada)

Os instrumentos de fachada aberta adquiridos pelos conventos masculinos franciscanos – órgãos da Igreja Paroquial de S. José (Fig. 4.6) e do Convento de S. Francisco em Angra (Fig. 4.10) – ostentam o símbolo da ordem.

Verifica-se, portanto, que os instrumentos da segunda fase apresentam um nível de decoração mais elaborado e rico do que os da terceira fase, sendo frequente naqueles o uso de dourados e matizados e nestes menos policromia.313 A excepção cabe aos

313 Excepção encontrada nos órgãos da Igreja de N.ª Sr.ª da Apresentação nas Capelas (AXMC, n.º 94,

1821), em S. Miguel, e na Igreja do Colégio em Angra, em que as caixas têm muito pouca policromia. Cf. Inventário dos Órgãos dos Açores, pp. 67 e 79.

primeiros órgãos da terceira fase, nomeadamente da Igreja Matriz da Ribeira Grande (1855) e de S. Pedro de Ponta Delgada (1858), cujo programa decorativo pode ser entendido como reflexo da estabilidade económica que ainda se vivia nos Açores, ou, em última análise, do reaproveitamento de uma caixa pré-existente (Fig. 4.11 e 4.12).

Fig. 4.11 – Órgão da Igreja Matriz de N.ª Sr.ª da Estrela (Ribeira Grande)

Sebastião Gomes de Lemos, 1855

Fig. 4.12 – Órgão da Igreja de S. Pedro (Ponta Delgada)

João Nicolau Ferreira, n.º 2, 1858

O exemplo mais peculiar no âmbito da decoração encontra-se no único instrumento de Nicolau António Ferreira (Igreja de S. João Baptista no Pico, 1884), cuja opção decorativa é completamente diferente dos restantes instrumentos. Não sendo conhecidas as razões que justifiquem a diferença, nem tampouco se se trata de um procedimento original ou ulterior, pois ao longo do século XX muitas igrejas dos Açores ficaram com o seu interior descaracterizado devido a intervenções desajustadas, o facto é que o instrumento apresenta uma caixa pintada de branco, com madeira escura apenas na consola, recorrendo aos dourados e explorando sobretudo os tons de azul, sobre um fundo branco e conjugados com o dourado (Fig. 4.13).

Fig. 4.13 – Órgão da Igreja de S. João Baptista (Pico), Nicolau António Ferreira, 1884