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Da fundação da diocese de Angra até ao último terço do século XVIII

II. Os órgãos no Antigo Regime

II.1 Da fundação da diocese de Angra até ao último terço do século XVIII

A criação da diocese de Angra deu-se no ano em que aquela localidade foi elevada a cidade, em 1534, correspondendo a um dos procedimentos de evangelização da população açoriana. Da bula da sua instituição, Aequum reputamus, emitida pelo Papa Paulo III naquele ano, consta a obrigação do rei D. João III e do governador local em dotar a Igreja da Sé, bem como as outras igrejas, de alguns equipamentos, entre os quais órgãos.85

85 Cf. Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas da Província de S. João Evangelista das Ilhas dos

Açores, III, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1961, pp. 265. Conserva-se uma cópia autêntica da bula em P-AN, Cod. RES. N. 154, gaveta 10.

A jurisdição espiritual passou assim a ser da responsabilidade da nova diocese, enquanto a temporal se manteve sob a alçada da Ordem de Cristo, responsável pela construção de estruturas adequadas à celebração do culto, devidamente equipadas e assistidas pela Igreja-mãe, a Igreja do Santíssimo Salvador, em Angra.86 O registo mais antigo sobre órgãos diz respeito ao pagamento do organista da Sé de Angra, onde terá existido o primeiro órgão dos Açores. 87 Trata-se do alvará régio de D. João III, datado de 18 de Outubro de 1540, que determina a atribuição de oito mil réis ao tangedor dos órgãos da Sé:

(...) do primeiro dia do mes de Setembro deste ano presemte de mil Ve coremta

em diante, deis em cada hum anno, do dinheiro do rremdimento do dito almoxarifado, ao tamgedor dos orgãos da se da cidade d’Amgra, que ora tamge, oito mill reis de que faço merce ao bispo e cabido da dita see, emquanto o dito bispo não prover diso outra pesoa. (...).88

Para Gerhard Doderer e Manuel Valença, bem como Valdemar Mota e Pedro de Merelim,89 o alvará de D. João III corresponde ao estabelecimento do cargo de organista. Apesar de isso não transparecer no seu conteúdo, a indicação de “gracioso” contida no título do alvará leva a crer que o organista já estava em funções, passando a ser remunerado a partir desse alvará.

86 Sobre a implantação da Igreja Católica nos Açores consultar Susana G. Costa, “A igreja: implantação,

práticas e resultados”, in História dos Açores, vol. I, pp. 173-189.

87 Atendendo a que a ordem seráfica foi a primeira a estabelecer-se nos Açores, alguns investigadores

admitem que os primeiros órgãos que lá chegaram foram deixados pelos frades menores aquando das suas viagens de missionação para o Brasil. Cf. Adriana Latino e Luísa Cymbron, “Manifestações musicais profanas no arquipélago dos Açores na transição do século XV para o XVI”, in Actas do Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua época, vol. IV, Universidade do Porto, 1989, p. 236); Dinarte Machado e Gerhard Doderer, Inventário dos Órgãos dos Açores, Presidência do Governo Regional dos Açores/Direcção Regional da Cultura, 2012, p. 9. Marco Brescia reitera que o primeiro órgão a chegar ao Brasil foi levado por um frade franciscano na frota de Pedro Álvares Cabral. Cf. “El organo Almeida e Silva/Lobo de Mesquita de Diamantina (1782-1787): ingenuo autóctono en el ultramar lusitano” in Barroco Iberoamericano: identidades culturales de un imperio, Carme Calderón, María de los Ángeles Valle e María Inmaculada Moya (coords.), vol. II, Santiago de Compostela, Andavira Editora, 2013, pp. 241-253.

88 Charles-Martial de Witte, “Documents anciens des archives du chapitre d’Angra”, Lusitania Sacra, 1ª

série, IX, 1970/71, p. 155. O documento original, conservado em P-AN, Cartório do Cabido de Angra, não pôde ser consultado em Março de 2013 devido ao seu deteriorado estado de conservação.

89 Cf. Valdemar Mota, Santa Sé do Salvador – Igreja Catedral dos Açores, Angra do Heroísmo, 2007, p.

3; Pedro de Merelim, As 18 Paróquias de Angra – Sumário Histórico, Angra do Heroísmo, p. 520; Manuel Valença A arte organística em Portugal – depois de 1750, Editorial Franciscana, Braga, 1995, p. 265; D. Machado e G. Doderer, op. cit., p. 9.

A primeira identificação de um organista, Gonçalo Alvares (com o cognome de “cego”), surge em 1545 na sequência do pagamento de um moio de trigo para tocar nos domingos e festas, efectuado pela Câmara da Vila da Praia, na ilha Terceira.90 Na ilha

de S. Miguel, em 1555, há referência ao organista Francisco Dias na Igreja Matriz da Ribeira Grande.91 Em ambos os casos, nada mais se conhece sobre as suas biografias. Importa sublinhar que a Vila da Ribeira Grande foi crescendo demográfica e geograficamente ao longo da segunda metade do século XVI, chegando a ser, em 1591, a mais populosa do bispado.92

Do único sínodo realizado nos Açores, sob a responsabilidade do bispo D. Frei Jorge de Santiago em 1559, resultaram as Constituições Sinodais do Bispado de Angra, em cujo capítulo “Da immunidade das Ygrejas, & exempçam das pessoas ecclesiasticas” se adverte aos regulares e seculares relativamente ao comedimento a ter dentro do espaço físico da igreja e zonas contíguas no dia dos Fiéis Defuntos ou em qualquer acto fúnebre, circunstâncias em que o órgão não tocava:

Defendemos a todas as pessoas ecclesiasticas e seculares, de qualquer estado & condição que sejão, q nas ygrejas não comão nem bebão, cõ mesas nem sem mesas, nem sobre as couas em dia dos finados, ou quãdo se enterrar algu defuncto, ne cante, ne baile nellas ne em seus adros, ne nos orgãos se tanjão no coro se cante cantigas profanas (...).93

O texto é assaz revelador dos comportamentos associados à prática religiosa da época, onde o espaço da igreja se afigurava como uma sala de festas.94 Os bailes dentro

90 Francisco Ferreira Drumond, Anais da Ilha Terceira, vol. I, Câmara Municipal de Angra do Heroísmo,

Imprensa do Governo, 1850, p. 114. Segundo aquele autor, esta informação foi extraída do Livro de acórdãos da Câmara da Praia, fl. 46 v. Apesar do Fundo da Câmara da Praia da Vitória estar depositado em P-AH, não se encontra disponível para consulta devido ao seu delicado estado de conservação. Na época em apreço, cabia aos poderes concelhios requerer à Coroa as necessidades das igrejas. Cf. Susana G. Costa, op.cit., p. 185.

91 António dos Santos Pereira (ed.), Ribeira Grande no século XVI – Vereações (1555-1578), Câmara

Municipal da Ribeira Grande, 2006, pp. 58 e 144.

92 João Bernardo Oliveira, “Palavras prévias”, in Gaspar Fructuoso, Saudades da Terra, Livro I, Instituto

Cultural de Ponta Delgada, 1998, p. XXIV. Gaspar Frutuoso (1522-1591) é o mais importante cronista açoriano, autor da única crónica sobre o descobrimento e colonização do arquipélago. Era natural da Vila da Ribeira Grande, onde foi vigário da Igreja Matriz por vinte e seis anos, de 1565 a 1591.

93 Impressas em Lisboa nas oficinas de João Blávio de Colónia em 1560, fl. 58 (P-AN, RES/A.R.M.71.). 94 As “cantigas profanas” representavam o ambiente profano dentro do espaço sagrado, igualmente

condenado pelo prelado. Aliás, a sua prática não era exclusiva às igrejas seculares e conventuais insulares, porquanto no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, por exemplo, os capitulares foram forçados

dos templos permaneceram como prática comum nos Açores pelo menos até 1674, quando os visitadores “ordenam que nas matinas cantadas se cantassem apenas responsórios, banindo-se os vilancicos, os descantes e os bailes nos templos enquanto se celebrassem os ofícios divinos”.95

Nas décadas de cinquenta e sessenta do séc. XVI regista-se o estabelecimento de funções associadas à prática musical na igreja sede do bispado: mestre-escola,96 meninos de coro97 e um mestre de capela, sendo este último obrigado a ensinar cantochão e canto de órgão aos clérigos da cidade de Angra e de toda a diocese.98 A ausência de referência ao organista não significa a sua inexistência, antes confirma a sua nomeação em data anterior.

Em 1560, encontra-se o pagamento ao “tamgedor de orgaõs” Salvador Francisco, no valor de mil e seiscentos reis,99 nos registos da primitiva Igreja da Misericórdia em Ponta Delgada.100 Para a mesma igreja, em 1575, a mesa contrata Manoel Cabral para servir de capelão e “tanger os orgaõs” às missas, recebendo de ordenado pela primeira função dois mil réis e pela segunda mil e seiscentos.101 Igualmente significativo é o pagamento de treze mil réis a Sebastião Barboza pelos “orgãos velhos que se lhe serviam e pelos novos qe deu a esta casa”, no ano de 1607/1608102 (justamente os anos imediatamente seguintes ao término da construção da

igreja), evidenciando-se uma prática de reutilização de materiais. Entre o último terço

a proibir qualquer manifestação profana, quer cantada quer tocada, em 1576. Cf. Ernesto Gonçalves de Pinho, Santa Cruz de Coimbra – Centro de Actividade Musical nos Século XVI e XVII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1981, p. 57.

95 Luís Bernardo Leite de Ataíde, Etnografia, Arte e Vida Antiga dos Açores, edição facsímile, vol. I,

Presidência do Governo, Direcção Regional da Cultura, 2011, p. 80.

96 P-AN, Carta de D. Sebastião de 26 de Maio de 1563, Mitra de Angra, pasta 1, doc. 5.

97 Em 1553, D. João III ordena a aquisição de quatro moços de coro com o pagamento de mil reis a cada

um por cada ano: P-AN, Mitra de Angra, pasta 1, doc. 4. Catorze anos mais tarde, em 1567, D. Sebastião requeria mais 4 moços de coro para o serviço da catedral, desta feita com o pagamento anual de quatro mil réis e uma veste de pano vermelho. Cf. Charles de Witte, op.cit., pp. 191 e 202.

98 Charles de Witte, op. cit., p. 195. Trata-se de um alvará de D. Sebastião datado de 1567, no qual consta

igualmente a obrigação do mestre de capela em ensinar, a título gracioso, vinte “moços pobres” que o bispo designasse, sujeitando-se às restante obrigações tal como os “outros mestres de capella”, auferindo vinte mil réis por ano.

99 Cf. [Extractos dos Livros da Misericórdia de Ponta Delgada] efectuados por Rodrigo Rodrigues(fl. 15

v.)e pertencentes a uma coleção familiar. Agradeço a colaboração do Dr. Pedro Pascoal no acesso a essa colecção.

100 Segundo Isabel Soares d’Albergaria, foi um dos templos mais imponentes das ilhas, superando o seu

congénere da ilha Terceira, e desapareceu na primeira metade do século XIX. Consultar Isabel Soares d’Albergaria, op. cit., p. 23.

101 Cf. [Extractos dos Livros da Misericórdia de Ponta Delgada], fl. 5 v. 102 Cf. idem, fl. 53.

do século XVI e a primeira metade de XVII, são identificados como organistas nessa igreja, além dos já mencionados: João Lopes Corrêa, Manoel d’Andrade, Miguel Daredes, Martim Camacho e o padre Francisco Fernandes Maciel. A actividade destes organistas reflecte uma prática organística dinâmica, na qual participavam outros instrumentos como a harpa, o baixão e o corneto.103

Por ocasião da morte do pai do capitão donatário Rui Gonçalves da Câmara, em 1577, foi celebrado o ofício de defuntos na Igreja Matriz de Ponta Delgada, em cuja descrição Gaspar Frutuoso faz referência aos órgãos:

(...) E o dia antes, a hora de vésperas, o foram visitar todos os oficiais das Câmaras de toda a ilha, cobertos de dó para o acompanharem, mas ele não foi às vésperas que, estando todo o povo presente, se cantaram com um primeiro nocturno do ofício dos defuntos, solenemente. Estava a nave do meio da igreja de S. Sebastião, da cidade de Ponta Delgada, onde se fez o ofício, e os peares todos, coro, orgãos e a fronteira toda do cruzeiro cobertos de dó. (...) onde disse a missa do ofício o vigairo Sebastião Ferreira (...). E Afonso de Goes, mestre da capela, com os cantores, que estavam em dois bancos, cobertos de pano preto, no meio de todos os outros padres, cantaram a missa e o ofício com música funeral e muita solenidade (...).104

Em 1584, a Igreja de S. Sebastião, em Angra, manifestou a necessidade de um ordenado para o organista, a qual foi atendida posteriormente pelo rei através de vinte cruzados anuais para o efeito.105 De facto, Frei Agostinho de Monte Alverne, nas suas

Crónicas da Província de S. João Evangelista das ilhas dos Açores – a narrativa de

perfil histórico dos Açores mais significativa do século XVII (contendo testemunhos anteriores) – confirma que a paróquia de S. Sebastião tinha vigário, cura, quatro beneficiados, tesoureiro e organista.106

103 Dado o alargado corpus de informação sobre a prática musical sacra, este arquivo merece um estudo

aprofundado. Apesar de não ter sido efectuada qualquer pesquisa nas datas em estudo sobre a Igreja da Misericórdia de Angra, é perfeitamente plausível que esta realizasse os modelos musicais da sua congénere micaelense.

104 Saudades da Terra, Livro IV, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1998, pp. 380 e 381. Afonso de

Goes foi o segundo mestre de capela daquela igreja (Cf. Idem, pp. 126 e 174). Segundo Luísa Cymbron e Adriano Latino, Goes teria uma “sólida formação humanística e musical, adquirida provavelmente numa das escolas adjuntas às catedrais da sua região de origem, Elvas, Évora ou ainda o colégio de Vila Viçosa” (Cf. op. cit., p. 36). Este é um dos casos que testemunha a aproximação às práticas desenvolvidas no continente através da circulação de entidades religiosas, administrativas e militares.

105 Cf. Pedro de Merelim, op.cit., p. 407. 106 Cf. op. cit.,vol. III, p. 25.

O contrato para a aquisição de um órgão para a Sé de Angra, em 1586, é o mais antigo documento que se conhece do género nos Açores.107 A entidade compradora é

constituída pelo bispo de Angra, D. Manuel de Gouveia, em representação da Sé, um tesoureiro e ainda um mordomo da Confraria de Nossa Senhora do Rosário,108 em representação da mesma. Como vendedor apresenta-se Nicolau de Resende, sobre o qual o contrato apenas diz ser clérigo de missa e morador na cidade de Angra.109 Com base nestes escassos dados surgem duas hipóteses relativamente ao construtor do órgão: aceitar Nicolau de Resende como construtor, ou considerá-lo como intermediário de algum construtor português ou até mesmo espanhol, pois nessa época os Açores, enquanto região portuguesa, encontravam-se sob o domínio de Filipe II de Espanha, sendo inclusivamente palco de inúmeros confrontos entre os partidários de D. António, o Prior do Crato, e de Filipe II de Espanha.110

Os quarenta mil reais relativos ao valor da compra, assim como os custos da manutenção e conservação do órgão, são repartidos pela fábrica da Sé e a referida confraria. Sobre as características do instrumento o texto revela apenas que Nicolau de Resende tinha “uns orgãos realejos que tangiam cravo e outras diferenças de órgãos”:

(...) foi dito Nicolau de Resende que ele tinha e possuia uns orgãos realejos que tangiam cravo e outras diferenças de orgãos os quais vendia como logo de feito vendiam deste dia para sempre à fábrica da sé e à confraria de nossa senhora do rosário e irmandade para ambos juntamente usarem deles e os terem e possuirem e isto por preço logo numeado de quarenta mil reais os quais logo recebeo por esta maneira: vinte mil reais que confessou ter recebido da dita irmandade e confraria da sua ametade do preço e os outros vinte mil reais que

107 Compra o Bispo D. Manuel de Gouveia uns orgãos para uso da igreja da Se a Nicolau de Reisende

(1586), P-AN, Cabido da Sé, Mitra de Angra, casa forte, pasta 2, doc. 48. Agradeço desde já a disponibilidade e colaboração do Dr. Pedro Pascoal (Instituto Cultural de Ponta Delgada) e da Prof.ª Doutora Margarida Lalanda (Universidade dos Açores), na descodificação completa do texto, bem como da sua contextualização nos procedimentos católicos da época. Quer na bibliografia genérica, quer na bibliografia sobre os órgãos dos Açores (ex. Dinarte Machado e Gerhard Doderer, op. cit, p. 9) a data do referido contrato tem sido recorrentemente deturpada para 1589, apesar da sua clara enunciação no manuscrito.

108 Esta confraria, junto com a do Santíssimo Sacramento e ainda dos Fiéis de Deus, foram revitalizadas

pelo Concílio de Trento (cf. Susana G. Costa, “A Igreja: implantação, prátics e resultados” in História dos Açores, vol. I, p. 191) e proliferaram pelas paróquias açorianas graças ao impulso do então bispo de Angra, D. Frei Jorge de Santiago. Esta participação das confrarias ter-se-á mantido, de resto, até ao século XIX, inclusive, quando o órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada foi adquirido pela Confraria do Santíssimo Sacramento da mesma igreja, em 1826.

109 Fl.1.

110 Sobre os acontecimentos nos Açores atinentes ao domínio dos espanhóis ver Paulo Drumond Braga,

logo contou e recebeo em reais de 8 castelhanos [em moeda] que recebeu de Baltazar Fernandes, tesoureiro da fábrica da sé desta cidade tantos que fizeram a dita soma de vinte mil reis e por eles e pelos vinte já recebidos disse que se dava por pagar e satisfeito do preço dos ditos órgãos e dava fábrica da sé e irmandade nossa senhora do rosário por quites (...).111

Não obstante a ausência de estudos exclusivamente dedicados ao realejo em Portugal, onde era utilizado nas igrejas quinhentistas,112 o teórico espanhol Pablo Nassarre define-o como um órgão de pequenas dimensões, também designado “portativo”,113 justamente por ser amovível, situação que transparece naquele contrato

através do procedimento de guardar o órgão na capela de Nossa Senhora do Rosário no fim das festas realizadas no altar-mor.114

Considerando as características gerais dos órgãos em Portugal na centúria de quinhentos (uma das épocas áureas da organaria em Portugal) – usualmente de pequenas dimensões, um único teclado com extensão de C/E-a’’, oitava grave curta e sem palhetas horizontais115 –, surge, portanto, a dúvida sobre a indicação de cravo e "outras differenças de orguaos", a qual pode significar, por um lado, um craviórgão (instrumento popular na Europa e em Portugal no século XVI)116 e, por outro, um órgão

111 Cf. Compra o Bispo D. Manuel de Gouveia uns orgãos para uso da igreja da Se a Nicolau de

Reisende (1586), Cabido da Sé – Mitra de Angra, Casa Forte, pasta 2, doc. 48, fl. 1 v.

112 Refira-se como exemplo o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (cf. Filipe Santos Mesquita de

Oliveira, “A génese do tento no testemunho dos manuscritos P-Cug MM 48 e MM 242 (com uma edição crítica dos ricercari de Jacques Buus e das suas versões recompostas”), Tese de Doutoramento, Universidade de Évora, 2011, p. 48) e também a Sé de Évora, em 1589 (cf. João Pedro d’Alvarenga, “On performing practices in mid-to late 16th-century. Portuguese church music: The Capella of Évora Cathedral”, Early Music, vol. XLIII, n.º 1, Janeiro 2015, p. 12.

113 Pablo Nassarre na sua obra Escuela Musica segun la practica moderna, vol. I, Zaragoza, Herderos de

Diego de Larumbe, 1724-1725, p. 483, refere: “En los Organos menores, que comunmente se llaman Realexos, ò Portatiles, se haze el flautadillo tapado, porque ocupa menos lugar; y se pone en la misma entonacion de los que llevan el flautado de seis palmos y medio.”Tradução da autora a partir do original: “Nos órgãos menores, que comummente se chamam Realejos ou Portativos, faz-se o flautado tapado, porque ocupa menos espaço, e põe-se a mesma afinação dos que têm o flautado de seis palmos e meio.”

114 Em termos de localização dentro da igreja, Maria Bernadette Dufourcet esclarece que, quer em França

quer em Espanha, os realejos posicionavam-se junto ao coro baixo. Cf. “El órgano barroco francés e español”, Nassarre – Revista Aragonesa de Musicologia, XXII, Zaragoza, Institución «Fernando El Católico», 2006, p. 109.

115 Cf. Gerhard Doderer “A arte organística em Portugal no passado e no presente, Boletim da Associação

Portuguesa de Educação Musical, 88, Janeiro/Fevereiro, 1996, p. 5.

116 Ernesto Gonçalves de Pinho faz inúmeras referências a craviórgãos no Mosteiro de Santa Cruz de

Coimbra. Cf. Santa Cruz de Coimbra Centro de Actividade Musical, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1981, p. 166.

com diferentes dimensões, ou ainda com potencialidades sonoras novas para os padrões da época.117

O contrato acima indicado também menciona a presença do órgão na celebração do culto, quer da própria Sé, quer da Confraria de Nossa Senhora do Rosário, depreendendo-se uma actividade diária:

(...) celebração e festas do culto divino da dita sé e capela da confraria de nossa senhora do rosário as quais festas todas serão as festas principais que se fizerem no altar-mor da dita sé: de nosso senõr e de nossa snõra solenes e as festas do apostólo São Pedro e São Paulo e de São João Baptista e santa Cruz de Maio118

nas missas novas e festas de todos os santos e pontificais e de São Tiago Maior e na capela de nossa snõra do rosário todas as festas que se nela celebrarem de nossa senhora e nas salvas e missas cantadas que for necessario assim na capela de nossa senhora como no altar-mor não sendo dias da semana poderão porém tambem tanger a todas as missas cantadas assim aos sabados como de semana