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Importação de instrumentos da organaria portuguesa tardo-setecentista (ca.1788-

II. Os órgãos no Antigo Regime

II.2 Importação de instrumentos da organaria portuguesa tardo-setecentista (ca.1788-

setecentista (ca.1788-1831): Joaquim António Peres Fontanes e António Xavier Machado e Cerveira

A destruição causada pelo terramoto de 1755 obrigou à reconstrução da cidade de Lisboa e arredores, nomeadamente das igrejas e, por inerência, dos órgãos.164

Joaquim António Peres Fontanes (1750-1818) e António Xavier Machado e Cerveira (1756-1828), que estabeleceram as suas oficinas em Lisboa,165 foram os principais responsáveis pela construção dos novos instrumentos a partir da década de oitenta.166 Da oficina de Machado e Cerveira contabilizam-se cento e cinco órgãos, total apurado através da numeração os instrumentos na respectiva caixa. Da parte de Peres Fontanes, a inexistência de um inventário nacional associada à falta de numeração dos instrumentos, dificulta o processo de contagem. Os instrumentos de ambos proliferaram por todo o país, com menor incidência no norte, mas abrangendo os Açores e ainda o Brasil,167 sendo o exemplo mais emblemático o conjunto dos seis órgãos da Basílica do Palácio Nacional de Mafra (1792-1807).168

164 Ernesto Vieira, op.cit., vol. II, p. 53. Também Ana Paula Tudela aborda esta temática em Geneologia

socioprofissional de uma familia de escultores e organeiros dos secs. XVIII e XIX: os Machados - contributo

para o estudo das Artes e Oficios em Portugal, s/data, p. 23

URL: http://bibliopac.ual.pt/Opac/Pages/Document/DocumentCitation.aspx?UID=1b41f408-5a01-4e05- a651-ff618cff72fd&DataBase=10014_BIBLIO

165 Cf. Ana Paula Tudela, op. cit, pp. 25 e 30 e da mesma autora Os Organeiros da Oficina Fontanes em

Portugal - Séculos XVIII e XIX, Novembro/2014, pp. 4 e 5,

https://www.academia.edu/9460272/Os_Organeiros_Fontanes_em_Portugal.

166 G. Doderer, “Órgão. Portugal”, in Alfred Reichling (ed.), MGGprisma, Barënreiter-Verlag, 2001, pp. 129

e 130.

167 O arquipélago da Madeira não foi contemplado devido à enorme comunidade inglesa aí residente, que

influenciou sobremaneira a construção de órgãos ingleses. Cf. D. Machado e G. Doderer, Órgãos das Igrejas da Madeira. Quanto à existência de órgãos de Machado e Cerveira no Brasil, aventada por Ernesto Vieira na entrada do seu dicionário dedicada a Machado e Cerveira (op. cit., vol. II, pp. 53 e 54), continua a carecer de confirmação, muito embora Marco Brescia contribua com uma série de conexões que fundamentam a sua existência. Cf. “Órgãos e organeiros da Real e Imperial Capela do Rio de Janeiro: de António José de Araújo a Pierre Guigon”, Revista Ictus, vol. 12, n.º 1, 2011, pp. 62-99.

168 Os instrumentos ficaram concluídos nos anos de 1806 e 1807, sendo cada um deles identificado com o

nome da capela sobre a qual se erguia. Assim, Machado e Cerveira assinou os instrumentos do Evangelho (1807), da Conceição (1807) e do Sacramento (1806), e Peres Fontanes assinou o da Epístola (1807), o de Santa Bárbara (1807) e o de S. Pedro d’Alcântara (1807).

As características técnicas e fónicas constituem-nos como os representantes do típico órgão português,169 que se apartou definitivamente do órgão espanhol na

sequência da influência da música italiana no contexto sacro português, tendo aqueles organeiros de ajustar progressivamente a morfologia dos órgãos às novas tendências estilísticas.170 A concepção do “órgão português” é resultado, portanto, da conjugação da antiga tradição organeira ibérica, da qual conserva algumas características como o teclado partido entre o Dó e o Dó# centrais, a presença de meios registos e de palhetas horizontais, com algumas influências italianas e novos elementos técnicos e fónicos.171

Assim, no órgão português de finais de setecentos e inícios de oitocentos verifica-se o gradual crescimento do âmbito do teclado, não só através do abandono da oitava grave curta (característica transversal a todos os instrumentos anteriores) em prol da oitava grave completa, mas também do aumento da tessitura aguda, que progressivamente se estende até ao Sol sobreagudo, culminando num teclado com 56 teclas na segunda metade do século XIX. Além disso, integra um mecanismo de anulação de “cheios” que permite a alternância rápida entre dois planos sonoros distintos, como forte e piano,172 num único teclado, através da existência de um someiro

principal e outro secundário, este último conhecido como “someiro dos cheios”. Machado e Cerveira, ao contrário de Peres Fontanes, aplica esse sistema também aos registos de palhetas e, quando existem, ainda aos registos de eco (exemplo do órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada, n.º 102, 1828). Desta forma, o organista pode preparar antecipadamente a registação e accionar um pedal durante a execução sem ter de afastar as mãos do teclado. Aquele pedal, comummente designado por pisante, em forma de estribo, taça ou régua,173 ora bloqueia ora abre o fornecimento de ar ao “someiro de

169 Cf. Gerhard Doderer, “Órgão. Portugal”, p. 130.

170 Ver João Vaz, “Dynamics and Orchestral Effects in Late Eighteenth-century Portuguese Organ Music:

The Works of José Marques e Silva (1782-1837) and the Organs of António Xavier Machado e Cerveira (1756-1828)” in Interpreting Historical Keyboard Music, John Kitchen e Andrew Woolley (eds.), Ashgate, 2013, pp. 158 e 159.

171 Durante o período da actividade de Peres Fontanes e Machado e Cerveira, aproximadamente entre 1780 e

1828, encontram-se outros organeiros activos em Portugal, mas cuja acção se terá desenvolvido sobretudo fora da capital lisboeta. Refira-se, por exemplo, Leandro José da Cunha (1743-p.1819), Frei Domingos de S. José Varela (1762-1834), Manuel de Sá Couto (1768-1837) e, apenas no período inicial, Gaetano Pasquale Oldovini (ca.1710/1720-1785) e Francisco António Solha (ca.1715-ca.1795).

172 Na Europa Central e do Norte, esse recurso dinâmico era conseguido através de um segundo teclado,

frequentemente com indicação na partitura. Cf. João Vaz, “A obra para órgão de Fr. José Marques e Silva..”, pp. 152 e153.

173 Em virtude da inexistência de bibliografia sobre este tipo de terminologia, optou-se por adoptar a

cheios”, modificando o nível dinâmico e o tipo de sonoridade.174 Todos os instrumentos

de Peres Fontanes e Machado e Cerveira integram o mecanismo de anulação de cheios, independentemente da sua dimensão. Considere-se, por exemplo, o órgão mais pequeno de Machado e Cerveira nos Açores, um instrumento de armário que se encontra na Igreja Matriz das Lajes do Pico, construído em 1804, n.º 66, e que dispõe de oito meios registos com pedal anulador de cheios (Fig. 2.2).175

Fig. 2.2 – Igreja Matriz da Santíssima Trindade Lajes do Pico António Xavier Machado e Cerveira, nº 66, 1804

(Pormenor do pedal anulador de cheios. Fotografia cedida por Dinarte Machado)

A par dessa particularidade, o órgão português apresenta outra característica que se tornou lugar-comum no plano fónico dos instrumentos, embora com origem ainda incerta: o meio registo da mão direita Voz Humana (do italiano voce umana), cujo efeito ondulante é obtido através da sua afinação com o Flautado de 12 aberto mas com batimentos inferiores.176 A sua introdução em Portugal tem sido cautelosamente associada a Pasquale Caetano Oldovini, organeiro genovês com acção no centro e sul de

174 Cf. J. Vaz, “Dynamics and Orchestral Effects…”, pp. 161 e 162.

175 Este facto já foi mencionado por João Vaz na sua Tese de Doutoramento “A obra para órgão de Fr.

José Marques e Silva (1782-1837)...”, vol. I, p. 155, embora indique nove meios registos quando, na realidade, são oito meios registos.

Portugal entre 1742 e 1769, estabelecendo residência e oficina em Évora.177 Não

obstante a falta de documentação que comprove a relação causa e efeito, o facto é que aquele registo consta do Mappa de registar o orgão178 – um documento de finais do

século XVIII (ver cap. VI) – e faz parte parte do plano fónico da generalidade dos instrumentos de médias e grandes dimensões de Peres Fontanes e Machado e Cerveira no continente.179 Nos Açores, tal como se verá no cap. IV, surge em treze dos vinte instrumentos desses organeiros.

Gráfico 2.1 – Distribuição dos órgãos importados por ilha

Os vinte órgãos que actualmente existem nos Açores com datas de construção entre 1788 e 1831, são da autoria de António Xavier Machado e Cerveira e Joaquim António Peres Fontanes (Gráfico 2.1). Desses, apenas um está atribuído a António Joaquim Fontanes (oficial desde 1799),180 encomendado pelo Convento da Glória na cidade da Horta, em 1805 e actualmente na Igreja das Angústias da mesma cidade (que

177 João Paulo Janeiro refere tratar-se de uma característica comum aos órgãos de Oldovini existentes no

Alentejo. Cf. “Pascoal Caetano Oldovini – A actividade de um organeiro genovês no Sul de Portugal, no século XVIII”, Organi Liguri, vol. I, Génova, 2004, pp. 6 e 7. Ver também João Pedro d’Alvarenga, [Notas para] Dieterich Buxtehude (1637-1707) – Órgão da Sé Catedral de Faro, Rui Paiva, Academia de Música de Santa Cecília, 2007, CD.

178 P-Ln, s.c.

179 Em Espanha, assim como em França e Alemanha, o registo designado Voz humana corresponde a um

registo de palheta, permanecendo como registo labial ondulante apenas em Itália, país de origem de G. Oldovini.

180 Cf. Ana Paula Tudela, Os Organeiros da Oficina Fontanes em Portugal – Séculos XVIII e XIX, 2014,

p. 5: https://www.academia.edu/9460272/Os_Organeiros_Fontanes_em_Portugal. Com a assinatura de António Joaquim Fontanes subsiste um instrumento na Igreja Paroquial de Oeiras, de 1829.

será aqui contabilizado como sendo da oficina de Peres Fontanes).181

Com base nos dados apresentados no subcapítulo anterior, os seis instrumentos de Peres Fontanes e os catorze de Machado e Cerveira que sobrevivem nas igrejas açorianas terão sido encomendados para substituir instrumentos mais antigos, à semelhança das principais igrejas do continente.182 Considera-se, assim, a época de importação dos novos instrumentos como sendo a segunda fase da história do órgão nos Açores. É de notar o elevado número de instrumentos de Machado e Cerveira na ilha Terceira, possivelmente devido ao facto de ser a ilha onde se instalou a sede da diocese. Atendendo às datas de construção e salvaguardando a presença de outros instrumentos que não sobreviveram, verifica-se que os períodos com maior índice de instrumentos correspondem ao final do século XVIII e aos anos vinte do século XIX, sendo o final da primeira década e também a segunda década do século XIX as fases que registam menos instrumentos. Este período menos prolífico deve-se, seguramente, à instabilidade política, social e económica que o país viveu com as invasões francesas. Sendo que Peres Fontanes morreu em 1818, os instrumentos da década de vinte dos anos de oitocentos são exclusivamente da autoria de Machado e Cerveira.

O primeiro órgão português de que há notícia nos Açores é atribuído a Peres Fontanes e ficou colocado na Sé Angra por motivos que ainda não foram apurados documentalmente.183 As fontes não são consentâneas quanto ao processo, menos ainda à sua data de construção e identificação do respectivo organeiro. Consta que a embarcação que transportava o instrumento em direcção a outro destino184

(eventualmente Macau), teve de ancorar em Angra por motivos técnicos ou

181 Nesta época, Joaquim António Peres Fontanes estaria a trabalhar nos três órgãos da Basílica de Mafra

da sua autoria: São Pedro d’Alcântara, Santa Bárbara e Epístola.

182 É disso reflexo a apreciação do historiador terceirense Ferreira Drumond (também conhecido por ser

organista) em 1850, reportando-se aos órgãos anteriores a Peres Fontanes e Machado e Cerveira: “não haviam órgãos de oitava larga, com registos de palhetaria, e outras admiraveis exhibições que hoje se admiram (...)”. Cf. Annaes da Ilha Terceira, Angra do Heroísmo, Imprensa do Governo, vol. III, 1850, p. 131.

183 A indicação de Peres Fontanes é avançada (oralmente) pelo organeiro Dinarte Machado,

fundamentando-se no tipo de estrutura do instrumento e na tubaria que subsistiu. Aquela mesma informação é também mencionada pelo musicólogo Manuel Valença em A arte organística em Portugal depois de 1750,... p. 267. Por sua vez, a descrição do instrumento por parte de um autor estrangeiro que visitou a ilha Terceira na década de 1950, atribui a autoria a Machado e Cerveira, alertando inclusivamente para a necessidade de manutenção. Cf. “Organs of two islands”, Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, n.º 27 e 28, 1969-70, pp. 493-500.

meteorológicos e, atendendo ao tempo que aí permaneceu, o então bispo de Angra requereu à rainha D. Maria I a sua cedência para a Sé, a qual foi concedida em jeito de oferta,185 razão pela qual a legenda original de uma das suas reproduções (Fig. 2.3)

identifica-o como o “órgão de D. Maria I”.

Fig. 2.3

Joaquim António Peres Fontanes (atr.) (1778?)

Sé de Angra do Heroísmo – Terceira Legenda:186

Sendo que o bispo em causa era D. Frei João Marcelino, em funções na diocese angrense entre 1774 e 1782, é provável tratar-se de um instrumento ainda da década de setenta, talvez de 1778, se se tiver em conta que esta é a data gravada pelo organeiro Luís Esteves Pereira em inúmeros tubos que compõem o órgão que construiu para a Capela do Seminário de Angra, em 1986, reutilizando tubos de órgãos históricos onde interviera.187 Contudo, na lista de instrumentos da família Fontanes publicada por Ana

185 Não obstante o facto de esta informação surgir em documentos historiográficos não foi encontrada

qualquer fonte primária relativa ao processo.

186 “Angra do Heroísmo – Retalhos de outras eras”, Os Açores – Revista ilustrada, Ponta Delgada, 1923,

ano I, n.º 8, p. 10.

187 Este organeiro estava encarregado de restaurar os órgãos da Sé de Angra após o sismo de 1980 que

danificou a cidade de Angra. Três anos depois deflagrou um incêndio na Sé que inviabilizou o projecto de restauro dos dois órgãos lá colocados, e, na sequência disso, surgiu a proposta para a construção de um novo órgão a cargo daquele organeiro, o que não veio a realizar-se por falecimento do mesmo, sendo então o projecto atribuído ao organeiro Dinarte Machado. Cf. D. Machado e G. Doderer, Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 92.

Paula Tudela188 não consta qualquer instrumento de 1778, o que faz com que a data de

construção do instrumento permaneça desconhecida. Aquele instrumento foi colocado numa tribuna da nave central do lado da Epístola e foi destruído por um incêndio ocorrido em 1983. Das escassas informações existentes, deduz-se que seria o maior do conjunto açoriano, com 28 registos (muitos dos quais presumivelmente divididos), palhetas interiores e horizontais, anuladores de cheios e de palhetas e uma pedaleira com extensão de uma oitava (Fig. 2.3a),189 tal como viria a ter o órgão construído para o Convento de S. Franciscano em Ponta Delgada, actual Igreja Paroquial de S. José.190 Note-se que a referida pedaleira é uma particularidade dos órgãos barrocos espanhóis, de cuja zona da Galiza vêm os antepassados de Peres Fontanes.191

A proliferação de casas conventuais nos Açores de setecentos (quer masculinas quer femininas) levou à aquisição de um representativo número de instrumentos. Dos vinte instrumentos de factura portuguesa, pelo menos doze foram adquiridos por igrejas

188 Cf. Os Organeiros da Oficina Fontanes em Portugal – Séculos XVIII e XIX.

189 A única descrição pormenorizada do instrumento encontra-se em “Organs of two Islands”, pp. 493-

500.

190 O mesmo sistema de pedaleira encontra-se, por exemplo, no órgão do Evangelho da Sé de Braga,

construído por Frei Simon Fontanes, em 1738.

191 Sobre os antepassados da família Fontanes consultar Marco Brescia, “L’école Echevarría en Galice, et

son rayonnement au Portugal”, Tese de Doutoramento, vol. I, Paris, Sorbonne, 2013, pp. 203-205.

192 Valdemar Mota apresenta o único registo fotográfico com uma perspectiva da fachada do instrumento,

a qual denuncia a riqueza decorativa. Cf.op. cit., p. 37.

Fig. 2.3a192

Joaquim António Peres Fontanes (atr.) (1778?)

conventuais (Gráfico 2.2), dez dos quais da ordem franciscana (os órgãos que se encontram nas Igrejas do Colégio de Angra e Matriz da Praia da Vitória terão sido transferidos de conventos da ordem de Santo Agostinho).193 Atesta-se, assim, a

preponderância das ordens religiosas, principalmente a de S. Francisco, no contexto organístico açoriano, sendo que o maiornúmero de órgãos nos conventos das ilhas de S. Miguel e Terceira é sintomático da maior concentração de conventos nessas ilhas, por serem as mais populosas.

Gráfico 2.2 – Número de instrumentos adquiridos pelas igrejas paroquiais e conventuais

No âmbito dos conventos masculinos, contabilizam-se três instrumentos: dois de Machado e Cerveira e um de Peres Fontanes. O primeiro grande instrumento foi adquirido pela Igreja de Nossa Senhora da Guia do Convento de S. Francisco, em Angra, assinado por Machado e Cerveira, em 1788. A aposta em instrumentos de grande porte e visualmente imponentes prosseguiu com a encomenda de um órgão, desta feita a Peres Fontanes, em 1797, para o Convento de S. Francisco, em Ponta Delgada (actual Igreja de S. José).

O órgão da Igreja de S. José, além de ser o maior instrumento histórico actualmente existente nos Açores, é também o mais relevante, graças às suas características preservadas no criterioso restauro a que foi submetido em 1995, por Dinarte Machado. Por ocasião da sua chegada, foi proferido um sermão de Acção de

193 Respectivamente, Convento da Graça, em Angra, e Convento de S. Tomás, na Praia da Vitória. Cf. D.

Graças, em 25 de Dezembro de 1799, por Frei José de Monserrate, o qual estimulava os fiéis à contribuição para o pagamento do órgão, no valor de doze mil cruzados,194 pelo

que se infere que a despesa com o instrumento foi suportada pelos donativos da população de Ponta Delgada (Anexo 1).

O último instrumento que se conhece para um convento franciscano masculino (Convento de Nossa Senhora das Lajes do Pico) tem a assinatura de Machado e Cerveira e data de 1804, instalado actualmente na Igreja Matriz da mesma freguesia (ver Fig. 2.1).195 Trata-se de um exemplar de pequenas dimensões, muito menos imponente que os seus congéneres “conventuais”.

A par dos conventos masculinos, a sociedade açoriana assistiu a uma forte implementação de conventos da segunda ordem franciscana (irmãs clarissas e irmãs concepcionistas), devida essencialmente à necessidade de assegurar um futuro digno às filhas segundas (Tabela 2.5). O facto de estas não receberem parte equitativa da herança familiar inviabilizava um bom matrimónio, e a dedicação à vida consagrada, tida em alta consideração, era a única forma de serem respeitadas em sociedade.196 Como consequência, a entrega à vida espiritual nem sempre se regia pela vocação, mas sim pela imposição dos progenitores, resultando numa vivência conventual aquém dos princípios orientadores da congregação. A admissão à vida conventual era obrigatoriamente acompanhada dos respectivos dotes e, por vezes, de uma pensão anual, criando à partida uma hierarquia natural na malha inter e intra conventual feminina.197

194 AIPSJ, documento avulso com o título Sermão d’Acção de Graças pella fellis chegada do Orgão, q

recitou Fr. Jozé do Mons Serrate neste Conv.to de S. Fran. de P.ta Delg.da, à face de toda a Nobreza della,

no dia 25 de Dezb.ro de 1799.

195 Cf. Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 129.

196 Consultar Rui de Sousa Martins, “As artes conventuais nos Açores e o processo de criação do Arcano

místico da Ribeira Grande”, Arquipélago, 2ª série, XIII, 2009, 49-85; Susana G. Costa, “Igreja, Religiosidade e comportamentos”, in História dos Açores... vol. I, pp. 423-425; Maria Fernanda Enes, “A vida conventual nos Açores – Regalismo e secularização (1759-1832)”, Lusitania Sacra, 2.ª série, 11, 1999, p. 323, e John Webster, “A Ilha de S. Miguel em 1821”, in Arquivo dos Açores, vol. XIII, Universidade dos Açores, 1983, p. 142.

Ilha Convento Construtor/ano Estado actual198

Terceira S. Francisco [actualmente Museu de Angra]

António Xavier Machado e Cerveira, n.º 22, 1788

Restaurado em 2011 S. Miguel S. André [actual Museu de

Ponta Delgada]

António Xavier Machado e Cerveira, n.º 29, 1790

Restaurado em 1991 Terceira S. Gonçalo Joaquim António Peres Fontanes, 1793 Restaurado em 1996 Terceira N.ª S.ª da Conceição Joaquim António Peres Fontanes, 1793 Desmontado S. Miguel N.ª S.ª da Conceição

[actual Igreja do Carmo]

Joaquim António Peres Fontanes, 1794 Restaurado em 1989 Pico N.ª S.ª da Conceição António Xavier Machado e Cerveira,

n.º 66, 1804

Restaurado em 1990 Faial Convento da Glória António Joaquim Peres Fontanes, 1805 Desmontado Terceira Convento da Luz António Xavier Machado e Cerveira,

n.º 81, 1815

Restaurado em 1996 S. Miguel S. André [actual Museu de

Ponta Delgada]

António Xavier Machado e Cerveira, n.º 104, 1828

Não restaurado Tabela 2.5 – Instrumentos adquiridos por conventos da ordem de S. Francisco

(femininos e masculinos)

Perante este contexto, depreende-se que os conventos femininos dispunham de maior disponibilidade financeira do que os masculinos e que, por essa razão, havia uma hierarquia que se expressava, entre outros aspectos, no tipo de instrumento adquirido.

As freiras clarissas do convento de Santo André, em Ponta Delgada, terão sido as primeiras da ilha a encomendar um órgão a Machado e Cerveira, em 1790, um órgão de armário, com o número 29 e doze meios registos. A sua posterior venda à Igreja Matriz de Santa Catarina da Calheta, na ilha de S. Jorge, no ano de 1827, deu origem à compra de mais um outro instrumento de Machado e Cerveira em 1828. Segundo a bibliografia existente, aquela venda deveu-se ao excessivo volume sonoro do instrumento para as vozes femininas,199 não sendo referido o convento de origem: Dinarte Machado e Gerhard Doderer assinalam a transferência de um convento feminino micaelense,200 Cunha de Azevedo esclarece o motivo da venda mas não revela o nome do convento,201 enquanto Manuel Valença refere que a sua origem é o Convento da Esperança.202 Foi entretanto encontrada a escritura de venda,203 a qual esclarece que

198 O restauro de todos os instrumentos foi da responsabilidade do organeiro Dinarte Machado. 199 Cf. Manuel d’Azevedo da Cunha, op.cit., p. 272.

200 Op. cit., p. 105. 201 Op. cit., pp. 271 e 272.