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CAPÍTULO 4 SUJEITOS, LUTAS E PROCESSOS EM SERGIPE

4.1 Assentamentos rurais: escalas e processos

A experiência da criação de assentamentos rurais no Brasil intensificou-se, a partir da década de 1980, resultado das lutas de trabalhadores sem-terra ou com pouca terra. Embora haja registro na história do país, o assentamento de trabalhadores rurais em projetos de colonização, principalmente durante o governo militar, os assentamentos criados a partir desse período possuem outra representatividade, pois são tradutores de lutas pela terra, sob a mediação dos movimentos sociais e de entidades de defesa dos trabalhadores do campo, expressas numa linguagem de reforma agrária.

Os assentamentos rurais podem ser definidos como unidades de produção, criados por meio de políticas públicas governamentais, principalmente federais, envolvendo a distribuição de terras a trabalhadores rurais; terras estas obtidas por diferentes mecanismos: desapropriação por interesse social; compra e doação ou mesmo utilização de terras públicas.

Para Medeiros (2003, p. 77), as intervenções que deram origem aos atuais assentamentos em todo país:

(...) se voltaram para áreas de conflito de tensão social e, como tais também recobriram situações bastante diversificadas: regularização de áreas ocupadas (...) por posseiros, fixação de segmentos de trabalhadores ameaçados de expulsão da terra, na qual viviam como rendeiros, agregados; destinação de terras a populações que, desprovidas desse bem e organizadas pelo MST, pelos sindicatos ou por outras entidades, acamparam e/ou ocuparam áreas como forma de pressão sobre o Estado, preservação de populações e suas tradicionais formas de uso dos recursos naturais, como é o caso dos assentamentos agroextrativistas, fruto da luta de seringueiros pela permanência em terras que exploravam (...), realocação de populações atingidas pela construção de grandes projetos hidrelétricos etc.

Igualmente os benificiários diretos dos assentamentos, também possuem origem diversificada. De acordo com Leite et al. (2004), do ponto de vista da inserção

produtiva encontram-se posseiros com longa história de ocupação da terra; filhos de produtores rurais empobrecidos, que optaram por ocupações como forma de acesso a terra; produtores atingidos por obras públicas (barragens e hidrelétricas); seringueiros que passaram a resistir aos desmatamentos que ameaçavam seu modo de vida; assalariados rurais; populações de periferia urbana (com origem rural), além de aposentados que viam no assentamento uma forma de complemento de renda.

A diversidade e complexidade que envolve a formação dos assentamentos indica que é necessário analisá-los de acordo com suas especificidades, compreendendo os assentamentos como novos territórios, permeados por disputas, lutas, mas também pela construção de identidades e territorialidades.

Somados as estratégias de vivência no novo território, os significados vão se multiplicar em um conjunto de ações, expressas como territorialidades em um “(...) conjunto de práticas e suas expressões materiais e simbólicas capazes de garantirem a apropriação e permanência de um dado território por um determinado agente social, Estado e os diferentes grupos sociais (...)” (CORRÊA, 1996, p. 251). “A territorialidade construída em um assentamento está composta por relações simétricas [e assimétricas], estabelece trocas necessárias e equilibra os ganhos e os custos revelando assim a multiplicidade do espaço vivido” (MEDEIROS, 2009, p. 219).

O território de um assentamento em sua grande maioria se constitui “(...) por um grupo de pessoas que vivem no mesmo espaço e que (...) se engajaram em um movimento cuja identidade comum é ser sem terra, e cujo objetivo comum é a busca pela terra” (MEDEIROS, 2009, p. 216).

Esses assentamentos compreendidos como espaços definidos por novas relações de poder e novos espaços de sociabilidade comunitária, resultam da luta de um grupo social que, pela apropriação, produz e usa esse território estabelecendo múltiplas e complexas relações com o mesmo. Na visão de Leite et al. (2009, p. 11) para além da resolução pontual de um conflito, a criação dos assentamentos e a “(...) nova condição de assentado resulta de uma trama de processos complexos e conflituosos tecida por diferentes atores da estrutura do Estado e da sociedade civil

(...)”, indicando que é necessário incluir no debate sobre a reforma agrária novos elementos.

Para Leite et al. (2004, p. 65):

(...) a partir da criação dos assentamentos, a vida dos assentados assume uma nova dinâmica, surgem novos espaços e redes de sociabilidade, refazem-se e reconstroem-se os antigos, e estabelece-se uma nova dinâmica na relação “para fora” do assentamento, na interação com as cidades e com o poder público municipal, e uma nova inserção na dinâmica política local. Mas ao mesmo tempo em que estão colocadas diversas “novidades”, impõe-se também, com grande força no cotidiano dos assentados, uma dinâmica social e cultural muito próxima ao padrão vigente na região, e o dia-a-dia da maior parte dessa população vai ser marcada predominantemente pelas estratégias de reprodução da unidade familiar (...) pelos vínculos de parentesco e de vizinhança, pela relação com a cidade, com a religião e com os espaços de lazer.

As especificidades descritas conduzem a compreensão sobre a formação dos assentamentos rurais no Brasil e em Sergipe, tendo como norte a perspectiva da processualidade histórica, considerando a apropriação desses territórios como característica principal, seja pelo uso ou pela multidimensionalidade das relações de poder. Assentamentos criados principalmente para responder as pressões e reivindicações de trabalhadores em processo de luta:

(...) se num primeiro momento, os assentamentos aparecem como verdadeiros enclaves sociais, sob a estreita responsabilidade e controle do executivo federal, a sua simples presença implica em uma ampliação do campo de forças com quem podem dialogar, disputar atenção ou mesmo se opor, passando a compor um espaço disputado politicamente” (LEITE, et al., 2009, p. 10).

Assevera-se que a constituição dos assentamentos tem acarretado a introdução de novos elementos e agentes que ocasionam alterações nas relações de poder, pois como se trata de uma área de conflito fundiário, quer envolvendo resistência quer ocupação de terras, o simples fato de ocorrer uma desapropriação e a consequente criação do assentamento significa o reconhecimento do conflito por parte do estado, que se concretiza na sua intervenção mediante desapropriação (MEDEIROS, 2003).

Para a esfera local do poder público a “(...) criação dos assentamentos também tem colocado desafios (...) na medida em que a ela cada vez mais se dirigem reivindicações ligadas à infraestrutura básica (...) saúde e educação, condições para escoamento da produção, etc” (LEITE, et al., 2009, p. 10). Ainda na visão de Leite et al. ( 2004, p. 65):

(...) ao criar o assentamento, o Estado assume a responsabilidade de viabilizá-lo. Queira o Estado (...) ou não, o desempenho de um assentamento é um desempenho do Estado. (...) O Estado assegura o acesso à terra, mas é preciso produzir dentro de parâmetros aceitáveis pela burocracia estatal – escolhendo produtos definidos como “de mercado”, usando sementes selecionadas, defensivos agrícolas, fertilizantes aprovados e assim por diante. Em contrapartida, o Estado compromete-se a assegurar condições ao assentado para que produza dentro desses limites.

A concepção dos assentamentos enquanto territórios reafirma a necessidade de entender essas unidades num contexto histórico, político e econômico da questão agrária, dos movimentos sociais no campo e da luta e resistência dos trabalhadores pelo acesso à terra (SOUSA; CUNHA, 2008). Nessa perspectiva o capítulo em questão tem como proposta realizar uma abordagem histórico-geográfica balizada pelos condicionamentos e pelo papel dos sujeitos na formação desses territórios.

Compreende-se que para se chegar ao entendimento sobre os referenciais que norteiam a construção da identidade territorial nos assentamento rurais do estado de Sergipe faz-se necessário pensar o tempo no/dos assentamentos numa perspectiva histórica e geográfica, estabelecendo relações entre “antes, agora e depois”, ou seja, situar o objeto de estudo numa dimensão mais geral da questão agrária brasileira e seus rebatimentos na escala local, considerando tempo, espaço, dimensões e dinâmicas.

Nesse sentido, compreender os condicionantes da luta pela terra em Sergipe “(...) na sua inteireza e profundidade (...) implica vê-los não como um acontecimento local, particularizado, mas como elemento constitutivo de um fenômeno sócio- político de âmbito nacional” (LOPES, 2007, p. 07).

A busca por essas inter-relações não tem por objetivo aprofundar a temática, pois acredita-se que essa tarefa já foi realizada por outros autores que estudam a questão agrária no Estado. A passagem por essa história tem o propósito de

contextualizar o surgimento dos territórios dos assentamentos como um momento de materialização dessas lutas, sobretudo a partir da década de 1980 e pela possibilidade de entendê-los sob novas abordagens a exemplo dos processos identitários.

É a partir desse momento que as demandas e as reivindicações pelo acesso a terra tornaram-se mais presentes no campo sergipano e quando os conflitos passam a expressar-se em torno de uma linguagem da reforma agrária. Esses conflitos traduzem a insatisfação dos trabalhadores frente ao modelo de desenvolvimento implantado, que instituiu um crescimento concentrador de riquezas e excludente.

Esses territórios foram criados pela apropriação política que ocorreu institucionalmente por meio do Estado e também pelas ações dos movimentos sociais, como um comportamento coletivo, organizados territorialmente, através de lutas pela conquista e posse da terra, resultando numa outra forma de produção do espaço geográfico. Em Sergipe verifica-se essa dupla especificidade em relação à criação dos territórios dos assentamentos: a intervenção do Estado e a ação dos movimentos sociais.

A ação dos movimentos sociais, em relação à criação dos assentamentos rurais no Estado é um fato expressivo e se exprime na intensa atuação dos trabalhadores na ocupação das terras consideradas improdutivas ou em situação irregular21, mediados

por diferentes atores sociais (igreja, sindicatos e movimentos sociais). Entidades que saíram em defesa dos trabalhadores e que guiados por preceitos ou por ideologias, reuniram trabalhadores na busca por um outro projeto de sociedade.

Esses trabalhadores, ao se engajarem na luta pela terra, construíram uma identidade fundada na resistência e desejo de construir um espaço de trabalho e de enraizamento. Esse espaço, pelas suas características (apropriação, relações de poder, espaço de referência e de pertencimento) é um território, uma construção social, marcado pelo simbolismo e que exprime a organização estabelecida por um determinado grupo (VARGAS, 1999, p. 469).

21 Muitas propriedades ocupadas possuíam dividas com a União, resultante do não pagamento do