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Questão Agrária e Reforma Agrária: aspectos históricos e conceituais

CAPÍTULO 3 MEDIAÇÕES HISTÓRICAS: QUESTÃO AGRÁRIA, REFORMA

3.1 Questão Agrária e Reforma Agrária: aspectos históricos e conceituais

Embora os conflitos pela posse da terra se figurassem como um elemento presente na realidade brasileira, o debate sobre a realidade agrária no Brasil, até os anos 1950, ficou restrito ao círculo de intelectuais. Os conflitos “(...) não se expressavam por meio de uma linguagem da reforma agrária (...)”. Isso ocorreu somente “(...) no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, quando a reforma agrária se tornou uma demanda ampla, proposta disputada por diferentes forças sociais, transformando-se na tradução política das lutas por terra que se desenvolviam em diversos pontos do país” (MEDEIROS, 2003, p. 14).

A expressão questão agrária foi introduzida no Brasil pelos primeiros estudiosos da Economia Política, os chamados clássicos, que analisaram principalmente, o processo de desenvolvimento do capitalismo no campo. Os estudos sobre a questão agrária são relativamente recentes, sugiram a partir dos debates promovidos pelos partidos políticos por volta de 1960. Antes de 1960 esses estudos tinham como referência a obra de Roberto Simonsen, com pesquisas sobre a história econômica do país, defendendo a tese de que sempre predominaram relações de produção capitalistas no desenvolvimento da agricultura brasileira (STEDILE, 2005b).

Um dos pontos centrais em torno do debate sobre a questão agrária brasileira é a origem do latifúndio e as formas de posse e uso da terra no país. Pode-se afirmar que os problemas envolvendo o acesso a terra e a concentração fundiária no Brasil,

estão diretamente relacionados à forma como foi empreendida a colonização brasileira de caráter mercantilista14.

A colonização, que se processou de modo mais efetivo a partir de 1530, pode ser entendido como um processo progressivo de incorporação ao domínio português das terras inabitadas ou ocupadas pelos indígenas que aqui viviam, organizados em agrupamentos familiares, que praticavam um comunismo primitivo, tendo a terra como “bem comunal”.

A divisão em capitanias hereditárias, segundo Medeiros (2003) foi o recurso encontrado pela Coroa Portuguesa para garantir a posse sobre as terras conquistadas, diante da ameaça de invasão estrangeira e da pirataria. Seria necessário transformar a terra conquistada em colônia para a exploração, o que necessariamente demandaria novas formas uso e de propriedade da terra e instituições jurídicas capazes de consolidar a ação dos colonizadores.

As capitanias hereditárias foram distribuídas aos chamados donatários, quase sempre membros da nobreza portuguesa ou prestadores de serviços a Coroa, que tinham o dever de fazer a capitania prosperar e o direito de repartir e distribuir parcelas de suas capitanias a quem tivesse condições, ou seja, recursos para explorá- la. Assim, a opção pelas capitanias e a “(...) criação de grandes unidades produtivas voltadas para a exportação alguns produtos tropicais de alguma forma determinou o destino do modo de apropriação da terra no Brasil: grandes fazendas, com base no uso da mão de obra em abundância (...)” (MEDEIROS, 2003, p. 9-10). A configuração econômica, social e territorial brasileira tem como sustentáculo a tríade: grandes propriedades, monoculturas voltadas para a exportação e o trabalho escravo.

No interior dessas grandes propriedades rurais desenvolveu-se um sistema de produção concentrador de riquezas e explorador da mão de obra humana. A forma de acesso a terra, viabilizada pelas capitanias, excluiu desse acesso uma parcela significativa da população, que não possuíam os requisitos para o usufruto, tais

14 O mercantilismo foi uma política econômica adotada na Europa durante o Antigo Regime

(Absolutismo). Dentre suas características pode-se citar o Metalismo, o Protecionismo Alfandegário e o Colonialismo, firmado, por meio do Pacto Colonial e da balança Comercial.

como pertencer à nobreza ou ter posses suficientes para pagar tributos, gerar divisas, enfim fazer prosperar as sesmarias.

Contudo, “do outro lado” do latifúndio, à margem da grande propriedade, segundo Medeiros (2003, p. 10):

(...) em algumas áreas ainda não apropriadas por elas ou mesmo em terras abandonadas (ou por não serem próprias aos cultivos ou por já estarem degradadas), constituíram-se, ao longo do tempo, pequenas unidades produtivas instáveis (...) sob a permanente pressão do crescimento e do avanço territorial das grandes propriedades. A ocupação dessas áreas era a única forma de acesso a terra para aqueles que não possuíam os requisitos legais da posse. Com o passar do tempo essas ocupações tornaram-se mais efetivas em função do próprio crescimento da população. Assim a pressão dos posseiros pelo acesso a terra e pela regularização da propriedade da terra, são elementos que devem ser considerados na história fundiária brasileira.

Na visão de Sousa (2009) esses posseiros pressionaram as autoridades do Brasil colonial a tomarem outro caminho para acautelar e defender os privilégios da propriedade da terra. Essa luta por novas formas de apropriação tornou possível o aparecimento da propriedade capitalista e da propriedade camponesa15.

A legislação que regulamentou as formas de acesso a terra foi estabelecida em 1850, com a promulgação da Lei de Terras. A Lei de Terras foi criada em 1850 e surgiu como forma de regulamentar à situação de posse e propriedade das terras com a extinção do regime de sesmarias. Ao legitimar o direito de posse, a Lei regulamentava as condições preexistentes de uso da terra, contudo sua face mais importante era a que se voltava para o futuro, quando determinou que a posse da terra só se efetivaria mediante compra, proibindo a aquisição de terras devolutas (MEDEIROS, 2003).

Considerada um marco jurídico para adequação ao sistema econômico vigente, a Lei de Terras apresentava duas características principais: a primeira diz respeito à implantação da propriedade privada das terras, ou seja, a transformação

15 Propriedade é a relação do sujeito que trabalha (produtor e autoprodutor) com as condições de

produção e reprodução, no entanto tal relação terá formas diferentes dependendo das condições dessa produção (BATTOMORE, 2001).

de um bem da natureza, em mercadoria; a segunda estabelecia que qualquer cidadão poderia ser proprietário de terra mediante compra.

Considerando a conjuntura história e política que sinalizava para o fim eminente da escravidão, a Lei de Terras serviu como uma barreira ao acesso a terra, para futuros escravos libertos, pois seus mecanismos possibilitaram a manutenção da concentração fundiária e a disponibilidade de mão de obra, que posteriormente seria utilizada na cafeicultura.

Aparentemente o texto jurídico buscava simplesmente regulamentar a posse da terra no país, via compra, contudo essa estratégia impediu que os futuros homens e mulheres, cidadãos libertos, ascendessem à condição de pequenos proprietários de terra. A Lei de Terras também foi de grande importância para a constituição de um mercado de trabalho, uma vez que a possibilidade do fim da escravidão criaria um problema de mão de obra. Nas palavras de Graziano da Silva (2001, p. 28) “(...) quando a mão de obra se torna formalmente livre, todas as terras têm que ser escravizadas (...) se houvesse homem ‘livre’ com terra ‘livre’ ninguém iria ser trabalhador nos latifúndios”. Assim muda-se o sentido da escravidão, do homem para o bem. Complementando as afirmativas Szmrecsány (1999, p. 27):

Essa Lei não apenas transformou a terra em mercadoria como impossibilitou o seu acesso a todos os que não tivessem dinheiro para adquiri-la. Os trabalhadores livres e os libertos da escravidão só poderiam subsistir na agricultura mediante a venda de sua força de trabalho aos proprietários das terras e do capital. Ao mesmo tempo, a nova legislação propiciou a libertação de capitais antes engajados no trafico negreiro, e a sua aplicação produtiva em diversos ramos de atividades, inclusive na agricultura.

As relações de trabalho que se desenvolveram no sistema colonial, impossibilitaram qualquer forma de ascensão do trabalhador e ainda criou mecanismos que acentuaram o estado de miséria desses trabalhadores. Para Martins (1990, p. 59):

(...) a Lei de Terras e a legislação subsequente codificaram os interesses combinados de fazendeiros e comerciantes, instituindo as garantias legais e judiciais de continuidade da exploração da força de trabalho, mesmo que o cativeiro entrasse em colapso. Na eminência

de transformações no regime escravista, criavam as condições que garantissem ao menos a sujeição do trabalho. Importava menos a garantia de um monopólio de classe sobre a terra do que a garantia de uma oferta compulsória de forma de trabalho à grande lavoura. Para além de estabelecer o regime de posse da terra, a legislação criou os mecanismos essenciais para uma exploração mais intensa dos trabalhadores e consolidou o grande latifúndio como estrutura básica da distribuição de terras no Brasil, reproduzindo privilégios e benefícios, pois os mesmos personagens históricos que receberam as sesmarias, posteriormente regularizaram sua posse e transformaram-nas em propriedades privadas. Esse movimento cíclico, que historicamente penalizou trabalhadores e favoreceu a classe detentora de terras e de capital se consolidou ao longo da história do país, definindo as relações de produção e as relações de trabalho e direcionando a produção e a organização do espaço agrário.

A consolidação da grande propriedade se fez paulatinamente, independente do ciclo econômico vigente e estabeleceu os rumos do desenvolvimento no campo, um desenvolvimento desigual e contraditório. Ao estabelecer a propriedade privada da terra e submeter o trabalhador as mais diversas formas de dominação pela necessidade do trabalho, esse desenvolvimento ganha um componente valioso, viabilizado através do processo que Oliveira (1991) denominou de metamorfose da renda da terra em capital. Paulino (2007, p. 340), sobre a metamorfose da renda da terra, enfatizada por Oliveira (1991) destaca que:

Esse novo componente, a renda da terra, foi essencial no processo de acumulação e na manutenção da estrutura agrária do país ao longo dos séculos, incidindo inclusive sobre a questão territorial, uma vez que é a dinâmica das forças produtivas que determinam a configuração do território.

Convém destacar que apesar da omissão na história agrária brasileira, o período que vai da criação da Lei de Terras até o início dos anos 1960, foi marcado por conflitos recorrentes (a princípio localizados), que paulatinamente começam a se

unificar em torno de uma linguagem comum: o direito ao acesso a terra e a melhores condições de vida e trabalho.

Um dos aspectos mais importantes desse período e que expressa politicamente à luta pelo acesso a terra são as Ligas Camponesas, criadas a partir de 1945, sob a iniciativa do Partido Comunista. A criação das Ligas Camponesas representou uma forma de contestação ao "pacto agrário" que existia entre as classes dominantes e que mantinha no Nordeste e outros regiões do país, uma estrutura de produção baseada na agricultura, reiterando o papel dessa região no processo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, como fornecedora de alimentos, matérias-primas para exportação e mão de obra para o centro-sul do país .

Essa estrutura de dominação, capitaneada pelo Estado, em certo sentido amortecia os conflitos sociais e dava a ideia que reinava no campo o que Azevêdo (1982) chamou de "paz agrária". Essa "paz" na verdade era apenas aparente uma vez que as insatisfações e as revoltas deixavam de ser potenciais para assumir a forma de luta contra o latifúndio e contra a exploração do trabalhador.

No caso da região açucareira do Nordeste brasileiro, essa "paz" foi quebrada, com a elevação dos preços do açúcar no mercado internacional e a consequentemente expansão da área produtora de cana-de-açúcar, que oferecia aos proprietários de engenhos e das fazendas aforadas uma renda mais elevada do que a que eles recebiam. Arrendadas as terras, eram os foreiros pressionados a se retirarem ou a destruir suas lavouras e substituí-las pela cana que alimentava as usinas.

A criação das Ligas sintetiza a resistência do campesinato à expansão do capitalismo no campo brasileiro, quando o processo de expropriação os atinge e quando esses moradores "foreiros16", parceiros, posseiros e pequenos proprietários,

são compelidos a se tornarem trabalhadores assalariados das plantações em expansão, perdendo sua independência como trabalhador autônomo (DOURADO, 2001).

As Ligas Camponesas atuaram no país entre os anos de 1945 e 1964 e sua extinção se insere num quadro mais geral da história política do país. A partir de

1964, os militares assumem o poder empreendendo uma verdadeira "caçada" a todos os movimentos populares, inclusive as Ligas Camponesas, somando-se a esse episódio as disputas político-ideológicas e divergências internas.

Assim do ponto de vista econômico, chega-se a década de 1960, com uma agricultura amplamente integrada ao circuito do capital industrial, via processo de modernização conservadora, contrastando com um setor camponês, familiar, completamente subordinado e subjugada a esse capital. Na estrutura da propriedade, o mesmo movimento cíclico se repete, “(...) multiplicação de pequenas propriedades, pela compra e venda e reprodução das unidades familiares. Por outro lado em vastas regiões, a grande propriedade (...) avançava e concentrava mais terras e mais recursos (...)” (STEDILE, 2005a, p. 32), reproduzindo uma tendência história e “natural” da lógica capitalista.

Do ponto de vista político, intelectual e ideológico, inicia-se um amplo debate sobre a interpretação da questão agrária brasileira. O debate derivou, principalmente do estado de crise que o país vivia e procurava explicar as razões dessa crise (política, econômica, agrária, social) tendo como marco de análise a nossa formação histórica e as relações do espaço agrário com a dinâmica do desenvolvimento do país.