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CAPÍTULO 2 MEDIAÇÕES TEÓRICAS: TERRITÓRIO, IDENTIDADE E

2.2 Território e poder

O entendimento sobre as diversas concepções de território perpassa necessariamente pela questão do poder, ou seja, pelo exercício do poder em todas as escalas. Igualmente pode-se afirmar que o exercício desse poder, suas formas de expressão influenciaram na produção conceitual do território e também na formação de territórios enquanto realidade concreta.

A construção do conceito de poder é permeada por uma infinidade de concepções e orientações teórico-metodológicas, que o concebem de diferentes modos, diferindo também as afirmativas em relação ao exercício do mesmo num determinado território. Para os limites desse trabalho, considera-se as assertivas sobre o poder e suas relações com o território, numa perspectiva multidimensional.

O poder é inerente à formação das diversas sociedades, expresso principalmente como relação de dominação, ocupação, apropriação e administração de áreas, tributos, costumes, leis e línguas. Esses aspectos já eram evidenciados por Nicolau Maquiavel no século XVI, cujas narrativas sobre a arte de governar, destacava que o poder era exercido na apropriação e nas relações de dominação entre os homens, no processo de conquista e comando de uma área/território (MACHIAVELLI, 2010).

Historicamente, as relações de poder têm sido efetivadas de acordo com as características de cada sociedade envolvendo múltiplas relações: materiais, imateriais, geopolíticas, econômicas e culturais, como ilustra Cruz (2011, p. 125):

(...) o fenômeno do poder é visto como algo imanente a todas as relações sociais em todas as escalas dos espaços-temporais. Não há relações sociais isentas de poder, uma sociedade sem relações de poder é algo fictício e irreal. O poder está espraiado por todos os espaços e âmbitos da sociedade, não há algo fora ou exterior ao poder. Mas, se o poder está em toda parte, isso não significa dizer que ele realiza-se da mesma forma e do mesmo modo operante; o poder coagula-se construindo diferentes estruturas e modos estruturais do seu exercício. Assim, ora ele assume a forma de exploração, ora de dominação, ora de opressão/sujeição e, não raras vezes, essas diversas formas de expressão do poder estão complexamente imbricadas e enredadas umas nas outras, constituindo complexas constelações e padrões estruturais de poder.

No campo da Geografia, uma das referências dessa vinculação entre poder e a realidade de cada sociedade é o pensamento de Friedrich Ratzel. Ao analisar a expansão do Estado Alemão, Ratzel demonstra como as relações de poder se efetivam e projetam uma realidade e que o território é imprescindível para alcançar os objetivos políticos. O poder em Ratzel está diretamente relacionado à força, ao domínio de um território. Poder e força são tomados como sinônimos.

Moraes (1990), ao descrever as ideias de Ratzel, afirma que para o mesmo a análise da constituição do Estado como principal forma de poder e de controle, considerou a importância da natureza exterior ao homem, condicionando a sua expansão no espaço, a miscigenação e a própria organização social. Natureza e Estado assumem centralidade na sua argumentação e compreensão do conceito de território.

O conceito de poder e seu exercício amplia-se ao longo do tempo, assim como ampliou-se o conceito de território para além da área. O território, enquanto espaço de controle é indissociável da noção de poder, contudo, este poder, este controle não se limita somente ás relações que envolvem o Estado-nação, uma vez que soma-se ao território as ações do homem ao se apropriar desse espaço. Esse território, definido e delimitado por e a partir de relações de poder só pode ser pensado considerando suas múltiplas dimensões. Ele é um campo de forças; uma teia ou rede de relações sociais com malhas nas superfícies do sistema territorial delimitadoras de campos operatórios (RAFFESTIN, 1993).

A referência a essas múltiplas dimensões, ampliaram o conceito de poder, que passa a incluir aspectos relacionados à vivência dos homens no território, investida de valores simbólicos e afetivos. Concorda-se com as análises de Haesbaert (2007; 2004a; 2004b; 2012) que enfatiza o poder em seu sentido simbólico, em função das multiterritorialidades, expressas pelas histórias dos sujeitos no território. Considerar o poder no sentido simbólico é ultrapassar as concepções de território baseadas unicamente nas relações de poder, num sentido mais concreto ou “funcional”, como ilustra a citação:

O território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder tradicional, material, concreto e de dominação das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural, simbólico e de apropriação (HAESBAERT, 2004a, p.1).

Saquet (2010), em referência Jean Gottmann, destaca que o mesmo atribui ao território significados e funções, historicamente determinados, fruto de sua diversificação e organização, quais sejam: a) servir de abrigo, como forma de segurança e, b) servir como um trampolim para oportunidades. Segurança e oportunidade requerem uma organização interna do território bem como relações externas, de poder e de dominação. Essa concepção apesar de conceber o poder numa perspectiva mais funcional, não descarta outras dimensões, pois segurança e oportunidade, são elementos que apontam para a efetiva apropriação do território pelo homem, um processo cumulativo, que se define em função da funcionalidade do mesmo.

As concepções de poder e suas variantes nas Ciências Sociais tiveram como referência principal as ideias de Michael Foucault. Esse autor foi um dos principais expoentes das relações de poder para além das instituições e do aparelho estatal e erigiu um pensamento que parte da compreensão do poder como uma rede de relações variáveis e multiformes, presentes em todos os espaços sociais e inerentes à própria sociedade.

O pensamento de Foucault concebe o poder como algo presente no dia a dia, nas relações entre pessoas, na família, no grupo de amigos e nas instituições. Como o poder é inerente à formação das sociedades e as relações sociais, só é possível pensar uma sociedade sem relações de poder a partir de uma abstração teórica ou como um tipo ideal. Essa concepção de poder foi essencial, pois definiu outros campos de estudo sobre o poder, ampliando a possibilidade de estudo do mesmo para além da atuação do Estado.

Ao propor uma microfísica do poder, Foucault desloca o poder tanto do espaço de análise quanto do nível em que este se efetua, ou seja, deixa de considerar a questão do poder no âmbito tão somente institucional, para formas de exercício do poder que se expandem por toda sociedade, penetrando na vida cotidiana. Na

verdade, para Foucault, não existe o poder, mas relações de poder que não se reduzem somente à opressão e à dominação e que existem outros elementos sutis e eficazes de controle e sujeição, elementos velados, que permeiam o cotidiano e a relação entre as pessoas.

O autor destaca que embora as referências ao poder sejam muito antigas somente “(...) após 1968 (...), a partir das lutas cotidianas e realizadas na base com aqueles que tinham que se debater, mas malhas mais finas da rede do poder (...)” (FOUCAULT, 1979, p. 06) é que surgem as análises sobre o poder, distintas das ideias de constituição de soberania ou de aparelho de Estado. O poder em termos jurídicos ou políticos era um elemento inerente à própria sociedade moderna, contudo:

Ninguém se preocupava com a forma como ele se exercia concretamente e em detalhes, com sua especificidade, suas técnicas e suas táticas. Contentava-se em denunciá-lo no ‘outro’, no adversário, de uma maneira ao mesmo tempo polêmica e global: o poder no socialismo soviético era chamado de totalitarismo; no capitalismo ocidental, era denunciado pelos marxistas como dominação de classes; mas a mecânica do poder nunca era analisada. (FOUCAULT, 1979, p. 06).

Pode-se dizer que foi a partir da percepção sobre a mecânica desse poder e do deslocamento das análises que colocava o exercício do poder subordinando à instância econômica e ao sistema de interesses, “(...) que apareceu a concretude do poder e ao mesmo tempo a fecundidade possível destas análises do poder, que tinham como objetivo dar conta destas coisas que até então tinham ficado á margem do campo político” (FOUCAULT, 1979, p. 06).

Ainda sobre o poder Foucault (1988, p. 89-91) destaca que:

(...) o poder não é algo que se adquire, (...) o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis (...); (...) as relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações; (...) mas lhe são imanentes, (...) são os efeitos imediatos das partilhas, desigualdades e desequilíbrios (...);

(...) o poder vem de baixo (...) e não há uma posição binária e global entre os dominadores e dominados, dualidade que repercute de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do corpo social (...);

(...) as relações de poder são (...) intencionais e não subjetivas (...); não há poder que se exerça sem uma série de miras e objetivos (...); (...) onde há poder há resistência (...) e esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder (...). Elas não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência (...). Estes pontos de resistência estão presentes em toda rede do poder (...).

O poder em Foucault é apreendido nas relações, em cada instante e não é somente um conjunto de instituições e de aparatos que garantem a submissão dos cidadãos a um determinado Estado, mas o nome que se dá à uma situação complexa de vida em sociedade, envolvendo uma multiplicidade de relações de forças inerentes ao campo onde o mesmo se expressa.

Como cada conceito é resultado de um momento histórico e aos interesses relacionados à sua criação, na visão de Foucault (1979), a formulação da problemática do poder de certa forma tem no Marxismo e na Fenomenologia um obstáculo, pois a Fenomenologia se remetia ao sujeito constituinte e o Marxismo fazia referência ao econômico; à ideologia e ao jogo das superestruturas e infraestruturas. Assim, essas duas formas de pensamento tomadas como referência, limitaram a compreensão do poder enquanto relação, que se exerce e se manifesta em níveis variados e em pontos diferentes do tecido social. Um poder que esta no cotidiano, nas relações entre homens e mulheres, nas famílias, nos grupos restritos, um poder intencional, pensado e exercitado considerando objetivos e fins.

As ideias de Foucault influenciaram a produção da “Geografia do Poder” de Claude Raffestin, que também considera o poder numa perspectiva multidimensional, em suas distintas variantes, desde a atuação do Estado até as relações que se estabelecem em outras situações da vida cotidiana. Para Raffestin as relações de poder são um componente indispensável na efetivação de um território. “O campo da relação é um campo de poder que organiza os elementos e as configurações (...)” e, o território “(...) é a cena do poder e o lugar de todas as relações” (RAFFESTIN, 1993, p. 53-58).

A vinculação entre território e poder é amplamente mencionada por Raffestin (1993, p. 144) que concebe o território como:

(...) um espaço, onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e por consequência, revela relações marcadas pelo poder. O espaço é a ‘prisão original’, o território a prisão que o homem constrói para si. (...) o território se apóia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partir do espaço (...) expresso por uma representação revela a imagem desejada de um território, de um local de relações (...).

Destaca-se que a abordagem da multidimensionalidade do poder de Raffestin são inerentes às relações sociais, poder “(...) que se traduz na compreensão múltipla do território e da territorialidade” (SAQUET, 2010, p. 33). Se o território é construído pelas relações sociais por meio da apropriação e consequente produção do espaço, essa apropriação é sempre um processo permeado por relações de poder, uma tessitura que exprime a área de exercício dos poderes ou área de capacidade dos poderes. Essa tessitura é sempre um enquadramento do poder ou de um poder (RAFFESTIN, 1993).

Para Candiotto e Santos (2009), Raffestin inclui novas variáveis na sua busca pela sistematização de uma Geografia do Poder. O autor diferencia o poder por meio de duas proposições: o Poder manifestado através dos aparelhos institucionais complexos, que encerram o território, controlam a população e dominam os recursos, sendo visível, identificável e controlado pelo Estado, e o Poder presente em cada relação, as vezes invisível.

Saquet e Galiotto (2009, p. 49), também analisando as ideias de Rafesstin sobre a relação entre poder e território, concluem que para o autor são “(...) as relações de poder que cristalizam o território e as territorialidades. O território é o lugar de relações a partir da apropriação e produção do espaço geográfico”.

As afirmações de Raffestin (1993) sobre a importância das relações de poder na efetivação de um território se expressa, quando o mesmo destaca que a criação de um território, por meio das relações sociais, de poder e dominação, só é possível, quando os indivíduos constroem malhas, nós e redes, delimitando campos de ações e de poder. A construção de um território se efetiva pelas ações dos atores socais como bem descreve Raffestin (1993, p. 7/8):

O território não poderia ser nada mais do que o produto dos atores sociais. São eles que produzem o território, partindo da realidade inicial dada que é o espaço. Há, portanto um “processo” do território, quando se manifestam todas as espécies de relações de poder.

Ao criar um território, se cria também um sistema territorial, resultado justamente das relações de poder, quer seja do Estado, empresas, quer seja de instituições e indivíduos.

Do Estado ao indivíduo passando por todas as organizações, pequenas ou grandes, encontram-se atores sintagmáticos que “produzem” o território (...). Em graus diversos, em momentos diferentes e em lugares variados, somos todos atores sintagmáticos que produzem territórios. (RAFFESTIN, 1993, p. 152).

Atores sociais, nós e redes são, pois componentes na construção de um sistema territorial e esse sistema é, por sua natureza, responsável pela coesão de territórios e pelo controle de pessoas e coisas, enfim, pela efetivação das relações de poder. As tessituras, os nós e as redes, sustentam as práticas espaciais econômicas, política e culturais, revelando a produção territorial desses atores.

Território e poder, tempo e espaço não podem ser analisados separadamente, pois o território enquanto espaço apropriado e componente do processo de organização do espaço geográfico assume novos significados, contudo mantendo em seu bojo a ideia de dominação e controle social.

O território enquanto espaço apropriado e componente do processo de organização do espaço geográfico assume novos significados, contudo sempre relacionado à dominação e controle social. O conceito de território quer sejam materialista ou idealista, quer lhe atribuam um caráter absoluto ou relacional ao território deve-se levar em consideração a necessidade de compreensão e redimensionamento das relações de poder, relações estas que estão em toda parte e em todos os níveis, desde a família até o Estado (SAQUET, 2002) e que são responsáveis pela cristalização do território e das territorialidades. Essas relações estão em constante mutação tanto de conteúdo quanto de significado.

Considerando as assertivas de Foucault e Raffestin, infere-se que ao se constituir um território, permeado por relações de poder, estas relações vão se

moldando e se definindo em função da funcionalidade desse espaço. Ao se criar um assentamento se estabelece relações de poder das mais diversas ordens: dos assentados em relação às instituições e destes com seus pares no próprio assentamento. Essas relações tornar-se-ão simétricas ou conflituosas, conforme a capacidade de articulação entre os grupos de interesses.