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Assim definido o conceito de democracia em Raúl Proença, importa agora

No documento Republicanismo, Socialismo, Democracia (páginas 191-195)

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2. Assim definido o conceito de democracia em Raúl Proença, importa agora

dissecar o conceito correlativo de Estado democrático, ou seja, o instrumento de poder que permite a realização prática da democracia. Qual a sua finalidade, quais as suas funções, qual a sua arquitectura constitucional?

2.1. Em termos genéricos, a finalidade do Estado democrático consiste,

como é lógico e coerente, na criação das condições jurídicas, económicas, sociais e culturais necessárias ao livre desenvolvimento do indivíduo, que já vimos ser o suporte último da soberania. Ele terá, por isso, duas funções principais a desempenhar:

2.1.1. A primeira consiste em assumir-se como o garante e impulsionador

dos direitos e liberdades individuais para todos e cada um dos seus cidadãos, mediante uma determinada organização jurídico-política da sociedade, consubs- tanciada naquilo a que Proença chama o «Estado liberal», isto é, «o Estado (…) que admite fronteiras inultrapassáveis para além das quais lhe é vedado fazer uso da sua autoridade e do seu poder, que reconhece acima dele uma moral, e nutre um respeito absoluto pela eminente dignidade da pessoa humana» («Do Estado absoluto ao Estado liberal», Seara Nova, n.º 231, 29 de Dezembro de 1930).

Mas para cumprir uma tal função é necessária não apenas uma organização jurídico-política mas também uma determinada organização económico-social, baseada naquilo a que Proença chama o «Estado-interventor», que exclui tanto o Estado colectivista como o Estado instrumento de interesses económicos privados, ambos à sua maneira opressores do indivíduo. O Estado interventor é aquele que é capaz de garantir uma redistribuição equitativa da riqueza e um mínimo de independência económica para todos e cada um dos seus cidadãos. Através de que meios? Neste ponto, Proença será sempre muito vago. Não lhe encontramos uma linha sobre quais as nacionalizações a promover – sendo certo que lhe repugnava a colectivização da economia – ou sobre o grau e o tipo de cooperativismo a implantar ou ainda sobre a reforma fiscal a realizar. Apenas sabemos que se mostrava adepto dos programas reformistas dos partidos traba- lhistas e sociais-democratas europeus, sendo confessa a sua particular simpatia pela experiência governativa do trabalhista inglês Ramsey Mac Donald.

2.1.2. A segunda função do Estado democrático consistirá em promover

«o desenvolvimento progressivo da cultura e da justiça» («Para um evangelho… III – Os letrados e a política», Seara Nova, n.º 118, 3 de Maio de 1928), ao

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qual se devem subordinar todas as realizações materiais. Por isso compete ao Estado não apenas assegurar «um alimento suficiente a toda a gente», mas tam- bém «um ócio suficiente a toda a gente e um mínimo de supérfluo, para que todos se elevem à dignidade, â nobreza e à plenitude da vida espiritual», já que «o ócio bem entendido é o verdadeiro fim da vida humana» («Para um evange- lho… VIII – Da Defesa da Democracia (1.ª parte)», Seara Nova, n.º 182, 10 de Outubro de 1929).

Esta é uma função que obriga o Estado a intervir não apenas na área da economia, como vimos há pouco, mas também na área do social, legislando em matéria laboral, desde a regulação do horário de trabalho ao regime das férias, e na área do cultural, mormente por via do desenvolvimento do sistema de ensino e da investigação científica e tecnológica. Só assim o progresso material estará subordinado ao progresso cultural amplamente participado. Em causa, estão aqui as estratégias meramente produtivistas dominantes no mundo contemporâneo e levadas a cabo quer pelo Estado burguês~liberal, quer pelo Estado fascista, quer ainda pelo Estado bolchevista.

Assim definidas as finalidades e funções do Estado democrático, a realizar no âmbito quer da sua vertente liberal, quer da sua vertente interventora, as quais, como vimos, não só não se contradizem como se reclamam uma à outra, importa agora estabelecer os mecanismos institucionais que permitem ao conjunto dos cidadãos participar no controlo do exercício do poder. Sem esses mecanismos, o poder tende ao abuso e ao absoluto, por maiores que sejam as qualidades pessoais dos seus detentores. Por isso afirma lucidamente: «Não há governos democráticos, há regimes democráticos, o que é diferente» («Para um evangelho… X – Da Defesa da Democracia (3.ª parte)», Seara Nova, n.º 225, 6 de Novembro de 1930), até porque «todo o governo é autocrático, tanto quanto pode sê-lo» (ibid.). Controlar o poder não significa, evidentemente, subtrair-se à acção deste, porque também não pode haver Liberdade sem Autoridade, entendidas como a condição uma da outra. Como se vê, Proença nunca perde a oportunidade de se demarcar de qualquer pulsão anarquizante, tão comum entre os republicanos de influência proud’honiana.

Infelizmente, a série de artigos sobre o livro de Benda é interrompida exac- tamente quando Proença se propunha abordar a problemática da arquitectura institucional do Estado. Restam-nos as duas pistas que nos deixa no final do último artigo: a falsidade da doutrina da independência absoluta dos poderes defendida por Montesquieu e a imprescindibilidade da subordinação do poder executivo ao

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poder parlamentar, se quisermos evitar um controlo falível, insuficiente ou ilusório dos governados sobre os governantes. Trata-se, de uma problemática que continuará, porém, a aflorar dispersamente noutros artigos, sob a dupla preocupação da defesa da superioridade do regime parlamentar sobre o regime ditatorial e da necessidade da reforma da instituição parlamentar, com vista a assegurar a sua eficácia. Essa reforma devia ser feita não de maneira a substituir a representação política pela representação dos interesses, como no corporativismo, mas pela representação, ao lado do parlamento político, dos técnicos ou das «competências». Tratar-se-ia de converter o Senado numa «assembleia técnica, em parte profissional, em parte científica», eleita por sufrágio especializado. Se bem que com poderes meramente consultivos, Proença reconhece-lhe, porém, um «direito de iniciativa limitado na proposição das leis e que a outra câmara obrigatoriamente consultaria antes de pronunciar os seus votos, tomar as suas decisões e editar as suas leis» (Páginas de

Política, vol. II, p. 55). Para além disso, urgia também alterar profundamente os

regulamentos e os métodos do trabalho parlamentar.

No proémio ao 2.º volume das Páginas de Política, de 1939, Raúl Proença tem ainda a preocupação de se demarcar das outras soluções institucionais preco- nizadas à época, como era o caso do presidencialismo, do governo dos técnicos, do rotativismo entre dois grandes partidos, um à direita e outro à esquerda, do corporativismo e do federalismo das regiões. Note-se, porém, que, no caso do presidencialismo, esclarece não ter uma «oposição irredutível» a essa ideia, mas apenas pouca simpatia em consequência da má experiência ocorrida com o sidonismo (ibid., p. 44). Se nos lembrarmos da crítica que em 1925 formu- lara a um Presidente da República com meros poderes de notário de regime, é possível supor que, se tivesse tido a oportunidade de aprofundar os mecanismos institucionais de controlo do poder, se viesse a mostrar aberto a algum tipo de solução semipresidencialista, ou, pelo menos de regime parlamentar com correcção presidencial, como é o caso do nosso actual regime constitucional.

Resta-nos abordar, por último, aquilo a que podemos chamar as condições práticas de realização do Estado democrático no contexto nacional e internacional então vivido. Condições sem as quais os esforços empreendidos no sentido de levar por diante as finalidades preconizadas e os meios institucionais propostos se veriam condenados ao insucesso. Julgo podê-las resumir nas seguintes: 1) respeito pelo pluralismo ideológico e pela livre expressão de opinião através da imprensa; 2) justa repartição da riqueza; 3) construção de um Estado Universal ou República do Mundo.

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A primeira condição implicava à cabeça a neutralidade do Estado, mas requeria igualmente uma efectiva liberdade de ensino e uma não menos real liberdade de imprensa. Não eram exigências fáceis de defender no meio republicano da época, que punha em causa o Estado neutro em nome do chamado Estado republicano, limitava severamente a liberdade de ensino em nome de um laicismo radical e se mostrava incapaz de assegurar um efectivo pluralismo de opiniões sobretudo na grande imprensa. O pluralismo ideológico e a liberdade de opinião passa- vam ainda por um novo regime de imprensa que a pusesse ao alcance de todos, retirando o monopólio da opinião aos argentários. Para esse efeito, preconiza a criação de uma espécie de entidade reguladora, como diríamos hoje, e que define como um «serviço colectivo dirigido e fiscalizado por representantes eleitos de

todos os partidos» (Polémicas, p. 837), mas também intelectuais e jornalistas,

com funções próximas do que viriam a ser em tempos recentes o Conselho de Imprensa e a actual ERCS.

Mas também não põe de parte a possibilidade de criação de um grande jornal de serviço público dirigido por esta entidade. Procurava, em última aná- lise, conciliar o máximo respeito por uma total liberdade de imprensa com o direito de todas as correntes políticas e de opinião, e não apenas as dotadas de apoios plutocráticos, de verem amplamente difundidos os seus pontos de vista e as suas críticas.

Estado e escola neutros, acesso de todas as correntes e partidos à grande imprensa, eis, pois, os instrumentos de um efectivo pluralismo ideológico e de opinião, sem o qual o controlo democrático do poder se tornaria uma ilusão.

A segunda condição prática de realização do Estado democrático consistia na justa distribuição da riqueza, de forma a transformar a simples igualdade jurídica dos cidadãos numa efectiva igualdade de poderes. Demarcando-se tanto do liberalismo como do colectivismo, Proença mostra-se favorável a um planeamento da economia que evitasse a anarquia na produção, a uma reforma fiscal que penalizasse os maiores rendimentos e as grandes heranças e a políticas assistenciais no domínio social. É uma temática que, no entanto, não desenvol- verá no concreto.

A terceira e última condição prática de realização do Estado democrático no contexto internacional então vivido, marcado pelo choque dos nacionalis- mos, consistia na criação de um Estado Universal ou República do Mundo, só concebível pelo sacrifício, na ordem jurídica internacional, das várias soberanias nacionais a uma Autoridade supranacional reguladora de todos os conflitos,

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na perspectiva kantiana do projecto de Paz Perpétua. Para atingir tal objectivo, necessário se tornava levar a cabo toda uma campanha pedagógica capaz de con- trariar a «cultura exasperada do Orgulho Nacional» e de fazer aceitar o «liame federativo» acompanhado de uma «força coercitiva supranacional», com a sua Justiça e o seu Exército. Como se vê, um projecto extremamente ambicioso e com alguma carga utópica, sobretudo no contexto então vivido.

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