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Um governo tutelar

No documento Republicanismo, Socialismo, Democracia (páginas 44-48)

Paralela à moralidade castilhista era a índole tutelar do regime implantado por Júlio de Castilhos. O cidadão era considerado, à maneira pombalina, como peça da engrenagem do Estado. Nada de direitos individuais sobranceiros à coletividade. Nada de controle da máquina do governo pela «média da opinião», como reivindicavam os gasparistas2 e, posteriormente, os assisistas3. O poder vem

2 Gasparistas: seguidores do líder maragato (liberal), Gaspar da Silveira Martins (1835-1901), opositor ferrenho do

regime castilhista durante a guerra civil entre maragatos e pica-paus (castilhistas), ocorrida no Rio Grande do Sul no período de 1893 a 1897.

3 Assisistas: seguidores do líder liberal Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938), que chefiou a oposição contra

a ditadura de Borges de Medeiros, tendo dado ensejo à guerra civil em que se defrontaram, no Rio Grande do Sul, borgistas e assisistas, entre 1922 e 1923.

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do saber, não do voto. Victor de Britto caracterizou muito bem a concepção castilhista do poder, quando afirmou que para esta tradição, «a autoridade saída do consentimento geral dos povos não passa de uma fórmula grotesca, cuja impotência e incapacidade para a solução dos magnos problemas, oferecidos pela civilização hodierna, dia a dia se vão afirmando na consciência dos homens esclarecidos. A obsoleta democracia foi-se com a bancarrota da metafísica. A sociedade precisa ser regida pelas mesmas leis, submetida aos mesmos métodos positivos das matemáticas e da biologia. Isso de soberania popular, de governo do povo pelo povo, são conceitos vãos, criados para estorvar a ação da autoridade no estudo das questões sociais, cuja solução só se deve inspirar na necessidade histórica e na utilidade pública» [Britto, 1908: 48-49].

O Castilhismo partia do princípio de que a sociedade caminha inexoravel- mente rumo à sua estruturação racional. Atingem-se esta convicção e os meios necessários para torná-la realidade, através do cultivo da ciência social. Esta é, sobretudo, privilégio de personalidades carismáticas, que se impõem nos meios sociais onde se encontram. Quando uma personalidade esclarecida pela ciência social assume o governo, pode transformar o caráter de uma sociedade que levou séculos para constituir-se. A ação política de Castilhos inscreveu-se neste contexto: não consultou a opinião do povo, nem sequer indagou as condições de receptividade do meio para a sua ação, porque, impelido por um meio poderoso – visão científica da sociedade e da missão que nela lhe correspondia – soube aproveitar o concurso dos fatores determinantes e, de acordo com eles, influir nas multidões. A crise do governo representativo, para o pensamento castilhista, provém daqui: se a única alternativa para a estruturação racional da sociedade é a imposição do governante esclarecido, qualquer outro tipo de organização social que não for o seu tornar-se-á necessariamente caótico. Daí a feroz crítica que o Castilhismo desatou contra o sistema parlamentar (sistema para lamentar, segundo o deputado castilhista Germano Hasslocher).

No sistema castilhista, o Executivo convertia-se num superpoder sobranceiro ao Legislativo e ao Judiciário. Competia ao Executivo (que presidia com mão de ferro o Partido Republicano Rio-Grandense, definitivamente majoritário na Assembléia e tornado, praticamente, partido único no Estado), elaborar os projetos de lei e submeté-los à apreciação dos cidadãos. Se, passados 90 dias da publica- ção do projeto de lei nenhum cidadão se pronunciasse contra, se identificando perante o intendente municipal, o projeto virava lei. A assembléia legislativa era puramente orçamentária e a votação das matérias, nela discutidas, deveria ser

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efetivada mediante o mecanismo do voto a descoberto. A sua missão não consistia em legislar, mas em votar o projeto de gastos que o Executivo lhe apresentava. E o Judiciário ficava em mãos do Executivo, ao serem os seus membros nomeados pelo Presidente do Estado, segundo dispunha a Constituição gaúcha de 14 de Julho de 1891 (artigos 7 a 11, 21 e 31 a 33), de autoria de Júlio de Castilhos.

É bem verdade que Castilhos aqui não inovou. Seguiu o modelo elaborado por Augusto Comte, na sua proposta de ditadura científica. Acerca da inspira- ção comteana de Castilhos, escreveu Rubens de Barcelos: «Enquanto muitos republicanos permaneceram embalados ao ritmo da Marselhesa, alimentando o espírito com a ideologia revolucionária dos convencionais franceses, exaltados celebrantes de uma forma de soberania popular que entrega os governos aos azares da opinião flutuante, transformando-os de órgãos diretores da sociedade, que devem ser, em meros executores da vontade indisciplinada das correntes ocasionais; enquanto outros, fiéis a Montesquieu, quedaram-se na obsessão das garantias da divisão tripartidária dos poderes, e procuraram nos federalistas americanos o ensino doutrinário, Castilhos achou na meditação da obra de Comte e na observação dos fatos históricos a fórmula mais capaz de resolver, de um ponto de vista humano, o insanável problema político» [apud Paim, 1984: 107-108]. É evidente que não apenas Castilhos se inspirava na obra de Comte. As correntes do Apostolado Positivista e do Positivismo Ilustrado também o fize- ram. Mas, tanto o Apostolado quanto os Positivistas Ilustrados privilegiavam a educação das mentes e das vontades no método positivo, como caminho para a implantação da sociedade racional, enquanto que Castilhos inverteu a equação: tratar-se-ia, para garantir a regeneração da sociedade, primeiro de instaurar um regime forte, que, em segundo lugar, educasse compulsoriamente os cidadãos. O Castilhismo foi, assim, um modelo de tutoria política, muito mais estatizante que as demais vertentes do positivismo.

O pai do Positivismo inspirou-se, para elaborar a sua proposta da ditadura

científica, na figura de Napoleão Bonaparte, que na Constituição francesa de

1802 sistematizou o modelo de ditadura esclarecida dos Cônsules que, no sentir de Comte, salvou a França da instabilidade revolucionária. Vale a pena nos determos uns momentos na análise do arquétipo bonapartista, que deu ensejo aos vários modelos de ditadura científica que foram tentados ao longo do século XIX, inclusive no Rio Grande do Sul.

Inoperante a representação política no modelo napoleônico, a Nação ficava sem instrumentos para exigir dos membros do Governo a mínima responsabilidade.

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Os Cônsules e os seus Ministros viraram espécies de semideuses, irresponsáveis perante a sociedade e inatingíveis. A França caminhava na contramão da história dos países onde houve um amadurecimento da representação, como a Inglaterra. A respeito, Necker escrevia: «A responsabilidade dos Ministros na Inglaterra é algo real e bem concreto. Mas tudo é diferente na França. Hoje, tudo caminha em sentido contrário. Nada de Câmara dos Pares, que se imponha pelo seu cará- ter hereditário. Nada de assembléia política representativa da Nação. Nada de Parlamento, enfim, enraizado no espírito e no coração do povo. E além do mais, nenhuma liberdade para escrever, para opinar sem pautas e sem tutores. Como, com uma tal distribuição política, com uma desproporção tão marcante entre a autoridade Executiva e todas as outras autoridades, ousaria alguém acusar um Ministro! Essa seria uma empresa tão vã quanto perigosa» [Necker, 1802: I, 84]. Em meio a essa falta de controles sobre o poder, a burocracia miúda tornou- se todo-poderosa, à sombra do Primeiro Cônsul e dos seus Ministros. O efeito de tudo isso foi a morte da liberdade e o fortalecimento do absolutismo. Todos passaram a ter medo, menos o chefe do Executivo. Todos ficaram reféns do seu poder sem freio. Eis o sombrio quadro traçado por Necker: «Que acontecerá com a liberdade no meio de todos esses dispositivos políticos? O que o Cônsul quiser. O Tribunado poderá lhe dirigir a palavra. Mas está previsto que não é obrigado nem a escutá-lo, nem a lhe responder. O Senado Conservador está investido do direito de anular os atos inconstitucionais. Mas ousará tal coisa? (…) E todo mundo, em determinado momento, terá medo, exceto o Cônsul» [Necker, 1802: I, 85].

Ora, nenhuma estabilidade institucional poderia advir de um tal regime. Tratava-se de uma República de faz-de-conta. Tudo girava ao redor do único poder verdadeiramente forte: o general Bonaparte. A feição dessa pseudo Repú- blica foi resumida perfeitamente por Jean-Jacques Chevallier, com as seguintes palavras: «Uma fachada de sufrágio universal (simples direito de apresentação). Uma fachada de assembléias: o Senado, o Tribunato, o Corpo Legislativo. No governo uma fachada de três cônsules, sendo que o poder repousava realmente no Primeiro Cônsul. Na tarde em que o texto constitucional foi solenemente promulgado nas ruas de Paris, as pessoas perguntavam: O que há na Constituição? E a resposta era a seguinte: Há Bonaparte. O referendum sobre um texto cons- titucional tinha fatalmente virado um plebiscito sobre um homem» [Chevallier, 1977: 107]. A propósito dessa enorme encenação, escreveu Necker: «Mostrare- mos agora que toda essa organização é, ao mesmo tempo, motivo de irritação

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para a massa geral dos Cidadãos, bem como um atentado aos seus direitos, um estorvo para o Governo e um constrangimento prejudicial para o bem do Estado» [Necker, 1802: I, 4-5].

No caso do modelo de executivo hipertrofiado transplantado para os pampas, tratava-se, sem dúvida, de uma autêntica ditadura científica. A respeito, Vences- lau Escobar escreveu na sua obra Apontamentos para a história da Revolução de

1893: «Tal obra era, pois, a consagração da preconizada Ditadura Científica, o

supremo ideal político da poderosa mentalidade do sábio de Montpellier (…). Por um tal sistema constitucional, ficava o presidente investido de grande soma de poder público; era quase, senão, um ditador, cuja atribuição ia até nomear seu próprio substituto legal (…), para governar sem dar contas à opinião (…). O estatuto político rio-grandense é o mais bem ideado embuste democrático» [Escobar, 1920: 37-38].

É evidente que o autoritarismo castilhista, embora pretendesse garantir a «continuidade administrativa», mediante a indicação do sucessor à Presidência do Estado pelo seu antecessor, gerou mais turbulências do que períodos de tranqüi- lidade. Estão aí, para provar a minha apreciação, as duas grandes conflagrações que varreram os campos do Estado, no final do século XIX, no período 1893 / 1897 (o conflito entre pica-paus e maragatos) e nas primeiras décadas do século XX (a guerra entre borgistas e assisistas, que terminou com a assinatura do Tra- tado de Paz de Pedras Altas, em 1923). A instabilidade, outrossim, alargou-se aos sucessores do modelo castilhista, Getúlio e os seus colaboradores da Segunda Geração. O Diário de Getúlio patenteia duas coisas, aos olhos de quem quiser lê-lo com cuidado: a férrea vontade do líder são-borgense de modernizar o Brasil, de um lado, e, de outro lado, as constantes preocupações, ao longo do consulado getuliano, em face das inúmeras conspirações de que foi objeto o Executivo hipertrofiado, alvo natural de todos os descontentes.

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