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Republicano radical?

No documento Republicanismo, Socialismo, Democracia (páginas 66-75)

manuEL dE arriaga, rEPubLiCano radiCaL?

2. Republicano radical?

Tudo indica que nos anos oitenta do século XIX, quando a sua intervenção política mais ligada aos clubes republicanos se intensificou, as suas relações com aquele grupo da Geração de 70 já tinham esmorecido.

Nas eleições de Outubro de 1878, a par de Teófilo Braga, Arriaga apresen- tava-se como candidato pelo círculo 96 (Baixa de Lisboa) e, nos princípios do ano seguinte, fazia parte do Centro Republicano Federal, sediado em Lisboa no Largo do Contador Mor. Também integravam esta agremiação Carrilho Videira, Teixeira Bastos, Horácio Ferrari e Teófilo. Mas depressa o grupo se cindiu: Silva Lisboa e Manuel de Arriaga fundaram pouco depois o Clube Henriques Nogueira com o propósito de unificar o movimento republicano. E em 1882, o Projecto de

Organização Definitiva do Partido Republicano, da autoria de Manuel de Arriaga,

constituíu um contributo relevante para sistematizar doutrinariamente, e também do ponto de vista organizativo, o republicanismo4.

Partilhando a sua vida entre as profissões de professor liceal e advogado com a actividade política, Arriaga candidatou-se de novo às eleições de Novembro de 1882, agora pelo círculo do Funchal. A imensa maioria de votos que obteve face ao candidato monárquico (2560 votos na segunda volta, contra 1392 para o Conde de Carvalhal, líder constituinte local), bem como a sua presença no 3 Manuel de Arriaga, «Ao correr da pena (notas)», Antero de Quental in memoriam, Porto, 1896, pp. 95-110. 4 Fernando Catroga, O republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910, vol. I, Coimbra, pp. 39-40

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parlamento, projectaram-no não apenas nos meios republicanos mas também na opinião pública em geral.

O seu empenhamento na unidade do republicanismo em torno dos grandes princípios democráticos e a atitude crítica que assumiu em relação à estratégia eleitoralista e evolucionista de Elias Garcia sedimentaram o seu prestígio como figura de proa do radicalismo. Como confessava a Silva Lisboa em 1881, embora tivesse consideração por Garcia, Arriaga não confiava nele «como revolucionário»5.

A proximidade daquele chefe republicano com o Constitucionalismo Monárquico, em especial com o Partido Regenerador, não lhe dava garantias de independência e isenção. Compreende-se pois a firme oposição de Arriaga, no Congresso repu- blicano de 1887, a quaisquer conluios eleitorais com os partidos monárquicos.

A correspondência política de Manuel de Arriaga revela bem que estamos perante uma das personalidades mais consensuais do republicanismo português no período de oposição ao regime monárquico. Na verdade, Arriaga era consul- tado pelas mais variadas figuras republicanas e o seu carácter era enaltecido por homens de sensibilidades tão diversas como Silva Lisboa, Homem Cristo, Albano Coutinho, João de Meneses ou António José de Almeida. Compreende-se assim que fosse informado das dissensões pessoais que minavam os centros republicanos – por exemplo, entre Alves da Veiga e Emídio de Oliveira (no Porto) ou entre Silva Lisboa e Magalhães Lima (em Lisboa), além das dissidências de militantes como Silva Lisboa e Horácio Ferrari e das desilusões de José Falcão, Rodrigues de Freitas ou José Joaquim Duarte. Quer pela firmeza das suas posições, quer pela sua relativa distanciação em relação às quezílias pessoais, a opinião de Arriaga era respeitada. O que explica também a grande valia do Arquivo Particular guardado pela sua família6.

Importa clarificar uma distinção que se afigura relevante entre o «radicalismo» de Manuel de Arriaga e o radicalismo que, a partir de 1888 e, sobretudo de 1890, apelava à acção directa contra o regime. Cremos que não se pode identi- ficar a posição de Arriaga com a atitude revolucionária sustentada pelo periódico

O Rebate, dinamizado no Porto, desde Março de 1888, pelo federalista Felizardo

Lima. Nem tão pouco com o radicalismo dos jovens ligados à chamada geração

5 Cf. a carta a Silva Lisboa de 21-07-1882, Correspondência política de Manuel de Arriaga (org. de Sérgio Campos

Matos e Joana Gaspar de Freitas), Lisboa, 2004, p. 97.

6 Além da já referida Correspondência política…, veja-se Manuel de Arriaga: documentos políticos (coordenação com

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do Ultimatum que, em 1890, apelavam à acção revolucionária e violenta contra o regime monárquico7.

Se, por um lado, o futuro Presidente da República se distancia dos velhos democratas personificados na figura de Elias Garcia e dos seus métodos «opor- tunistas», de conluio com os partidos e facções monárquicas, por outro lado não colabora nem se identifica, de modo algum, com o radicalismo revolucionário. Acima de tudo, Manuel de Arriaga lutava pelos princípios políticos em que acreditava, bem como pela unidade do republicanismo, independentemente de facções e de questões pessoais. Era um homem de consensos, respeitador da diversidade mas intransigente na defesa do seu ideal. Distanciava-se dos processos da tradicional acção política republicana, bem como de um certo verbalismo radical. Um ano antes do 5 de Outubro, em carta ao seu amigo António José de Almeida, afirmava: «A revolução a fazer nos espíritos é maior e mais necessária do que essa que o meu amigo tem planeada contra as actuais e decadentes ins- tituições políticas»8.

Arriaga assumiu uma posição evolucionista, pelo menos, desde os anos 709.

Divergia dos métodos revolucionários, atitude evidente no parecer que produziu, pouco antes do 31 de Janeiro de 1891, enquanto membro do directório do PRP, acerca da eventualidade de uma tentativa de derrube violento da monarquia:

«…já pelas deficiências e algumas fundamentais na direcção superior do movimento, já por certos elementos de pouca confiança que o fomentavam, opinei por que se adiasse para ocasião mais oportuna»10.

A primazia que atribuía a uma revolução espiritual sobre a revolução política é um ponto de vista que deve compreender-se no quadro do seu eclectismo, na confluência do humanitarismo romântico, do espiritualismo krausista, do cien- tismo e até da filosofia positivista na versão democrática e republicana de Littré. 7 Manuel de Arriaga estaria decerto em sintonia com os princípios gerais expostos no «Programa» radical exposto

em O Radical de 8-10-1888, p. 2 – república federal descentralizadora, anticlericalismo, separação do Estado e da Igreja, liberdades alargadas. Cf. Amadeu Carvalho Homem, A propaganda republicana 1870-1910, Coimbra, 1990, pp. 37-38 e 98-99. Divergia contudo seguramente da via violenta para instaurar a república. Se o líder lisboeta era uma figura prestigiada e popular na opinião republicana radical, não deixa de ser significativa a sua distanciação em relação ao convite que lhe foi dirigido no sentido de integrar a comissão organizadora do Partido Republicano Radical em Lisboa (Carta de 19-12-1893, Correspondência política de Manuel de Arriaga, p. 295).

8 Carta a António José de Almeida de 16-10-1909 (sublinhado nosso), Correspondência política…, p. 350. 9 Cf. Renovações históricas. Primeira parte. Necessidade da intervenção das ciências naturais na História Universal dos povos

para assentá-la em bases positivas e dar-lhe um carácter verdadeiramente científico, Lisboa, 1878 (trata-se da dissertação

com que o Autor concorreu à cadeira de História Universal e Pátria do Curso Superior de Letras), p. 28.

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Lembre-se, por outro lado, que Arriaga era sensível à espiritualidade indiana do

Râmayana e do Rig Veda, como evidencia em alguns dos seus poemas11. Embora

acentuando porventura excessivamente o suposto jacobinismo de Arriaga, Rama- lho Ortigão captou bem este eclectismo no Álbum das Glórias:

«Este revolucionário temeroso, que representa no prisma da política portuguesa o jaco-

binismo mais vermelho, mais sanguíneo, mais rebenta-boi, é um brahmane de cabelos louros

e de olhos azuis, modernizado nas lições de Michelet, de Edgard Quinet e de Mickiewicz, mas conservando sempre no fundo da sua alma contemplativa e terna a aversão da guerra e

o horror do sangue, que caracterizam as puras e serenas religiões brahmanicas»12.

Crente no progresso sem fim da Humanidade, no mito prometeico do Homem Novo, Manuel de Arriaga não era pois um adepto dos meios revolucio- nários violentos para acelerar a transformação social. Muito menos, da revolução prematura13 – lembre-se a sua convicção a posteriori de que o 5 de Outubro (em

que não teve qualquer participação) ocorrera antes do tempo. Mas, atendendo à resistência dos privilegiados, admitia a necessidade das revoluções políticas.

O evolucionismo de Manuel Arriaga levava-o a encarar as grandes transforma- ções históricas no quadro de uma ideia gradualista que acentuava a continuidade e não as rupturas: «Assistiremos ao mesmo espectáculo que hoje admiramos na natureza, onde tudo entrou no domínio das suas leis eternas, onde a grande marcha da vida universal se desprende numa evolução gradual, lenta e contínua, do menos para o mais perfeito! E assim marcharão d’ora em diante os destinos dos

indivíduos e a civilização dos povos, porque estes e aqueles obedecem a leis imutá-

veis, e porque a direcção em que nos impelem essas leis é, indubitavelmente, no sentido do progresso indefinido»14. O evolucionismo histórico-social de Manuel

de Arriaga estava em perfeita sintonia com a sua acção política.

Como compreender então que tenha adquirido a imagem de um radical em política, até por parte de alguns dos seus correligionários?

De origem latina (radix, radicalis), o termo radical foi utilizado na antigui- dade em medicina e, mais tarde, em filosofia e em direito. Aplicado ao domínio da política, ocorre já no tempo das revoluções liberais, primeiro em Inglaterra e, 11 Caso do poema «Ao sol», que teria sido escrito sob a impressão do Rig Veda. Cf. Cantos sagrados, Lisboa, 1899, pp.

108-111 e p. 163.

12 João Ribaixo [Ramalho Ortigão], «Manoel de Arriaga», Álbum das Glórias, n.º 28, Maio de 1882 (sublinhado nosso). 13 Manuel de Arriaga, Na Primeira Presidência da República Portuguesa. Um rápido relatório, Lisboa, 1916, p. 8. 14 Id., ibid., p. 46.

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depois, em França (1831). Na língua francesa, a partir do sentido de «completo, absoluto», no século XVII o termo adquiria a noção de «que remonta à fonte, aos princípios fundamentais, que vai até ao fim das suas consequências»15. Mais

tarde, nos finais do século XIX e no século XX, em França, aplicar-se-á a um partido de esquerda, liberal e laico que tendeu, todavia, a evoluir no sentido da moderação e do reformismo: os Radicais de esquerda. Em Portugal, nos princípios do século XX, a Enciclopédia portuguesa ilustrada de Maximiano de Lemos registava o seguinte significado: «partidário de uma reforma democrática completa», adepto do «radicalismo»16.

Empregue num sentido figurado, radical remete para «raiz», «essência», «princípio de uma coisa»17. Em política, naturalmente, para a idiossincrasia pro-

gramática, doutrinária – a «democracia pura» a que se refere Arriaga em diversas cartas. Radical não pode pois identificar-se com a defesa de meios revolucionários violentos ou de acção directa, como sucederia com os jovens republicanos que em 1890, na sequência do Ultimatum britânico, preconizaram o derrube do regime monárquico por via de uma revolução. E que se entendia por radicalismo? De origem inglesa, o nome seria adoptado em França (1832) e depois noutros países. A já citada Enciclopédia de Maximiano de Lemos fornece o significado de «Sistema político que pretende a transformação imediata e completa da orga- nização social, sem transições nem contemporizações»18.

O facto de Arriaga ter sido um estrénuo defensor de princípios políticos republicanos, sempre os antepondo a quaisquer objectivos particulares ou pessoais (que, como vimos, não alimentava), granjeou-lhe decerto, com o andar do tempo, uma certa aura de incorruptibilidade, prestígio moral e radicalismo. Lembre-se que, em 1887, sendo presidente honorário do Clube Henriques Nogueira, ante as «agressões e calúnias» de que foi vítima na imprensa periódica por parte de um sócio desta agremiação (não desmentidas por qualquer dirigente do clube), não hesitou em demitir-se e declinar as «honras» que lhe tinham sido atribuídas (carta de 30-12-1887). A sua firme oposição a alianças eleitorais do Partido Republicano, designadamente com a Esquerda Dinástica de Barjona de Freitas,

15 «Radical», Le Robert. Dictionnaire historique de la langue française (dir. de Alain Rey), vol. II, Paris, 1992, p. 1702. 16 «Radical», Enciclopédia portuguesa ilustrada (dir. de Maximiano de Lemos), vol. IX, Porto, s. d., p. 205.

17 Domingos Vieira, Grande dicionário português ou tesouro da língua portuguesa, vol. V, Porto, 1874, p. 66. 18 «Radicalismo», Enciclopédia portuguesa ilustrada, Lisboa, s. d., vol. IX, p. 205.

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em 188719, contribuiu para a construção desse perfil ético. Poucos anos depois

(1893), a sua distanciação em relação à tentativa de se dinamizar em Lisboa o Partido Republicano Radical mostra, mais uma vez, o alheamento de Arriaga em relação à política de pequenos grupos ou facções. Tudo isto alimentou seguramente o seu capital de independência e prestígio. A ausência de ambições políticas pessoais, o desapego em relação aos diversos cargos políticos e o relativo afastamento da política partidária a partir de 1898, quando já se aproximava dos 60 anos, fizeram o resto na sedimentação do seu prestígio.

Tendo em conta o significado do termo na época, poderemos, na verdade, considerar o deputado republicano pelo Funchal um radical? Que ganhara essa fama nas suas intervenções públicas, incluindo as parlamentares, não há dúvida. Barros Lobo (Beldemónio) relata a expectativa com que se aguardava a primeira aparição da «fera» (assim lhe chama) nas câmaras. Mas logo corrigia a mão: «A fera – é um modo de dizer. O sr. Manuel de Arriaga (…) loiro como um prin- cepezinho de Bragança, gentilmente elegante e razoavelmente falador – nunca pode ser bem o que se chama uma fera…»20. E todo o retrato físico, psicológico

e político que traça do novo deputado republicano oscila entre a elegância do seu porte, a pequena infidelidade de prestar o juramento religioso e a dimensão retórica dos seus discursos.

No entanto, a leitura atenta dos discursos do deputado do Povo nas legisla- turas de 1883-84 e 1890-92 revela algumas surpresas. Num parlamento domi- nado pelos partidos monárquicos do rotativismo (só havia então 3 deputados republicanos: Elias Garcia, Rodrigues de Freitas e o representante do círculo do Funchal), Arriaga mostra-se um crítico contundente do Constitucionalismo Monárquico que considera não mais corresponder às exigências do progresso (Janeiro de 1883). Responsabiliza o regime pelo declínio do domínio colonial, pela situação de abatimento das forças armadas, a ausência de educação militar e, em geral, pela situação de miséria e atonia em que vivia o povo português (Junho de 1883). Não esquece a problemática regional das populações que o haviam elegido: a necessidade de revitalizar o porto do Funchal e de beneficiar a agricultura da ilha da Madeira (Março de 1883). Denuncia o baixo investimento 19 Já em 1882, Arriaga sustentara esta posição: cf. a carta aos republicanos madeirenses de 11-11-1882, Correspondência

política…, p. 106. No congresso republicano extraordinário de Dezembro de 1887 insistiria nela, com o apoio de

Felizardo Lima, tendo sido aprovada a sua moção que consagrava a «incompatibilidade e absoluta intransigência» do PRP com qualquer facção monárquica. Veja-se Amadeu Carvalho Homem, op. cit., pp. 36-39.

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na educação e na justiça (este último inferior à dotação da família real). Muito influenciado pela experiência da III República francesa e pela obra política de Jules Ferry, propugna a necessidade de se adoptar um plano integrado de reforma «radical»21, do sistema de ensino que, de um modo coerente, abarcasse todos os

graus de ensino, do primário ao superior. Neste domínio, acima de tudo, valoriza a função dos professores e as exigências da vida prática (Março e Junho de 1883). Critica o sistema eleitoral então vigente (Março de 1884), o desvirtuamento da representação (que atribuía ao sistema de recenseamento e ao próprio escrutínio adoptado) e defende o princípio da proporcionalidade, mediante a adopção do sistema de lista uninominal incompleta (coincidindo aqui com a proposta do seu amigo Pimenta de Castro): pretendia assim aproximar a representação eleitoral do estado da opinião.

Por outro lado, revela-se firme opositor da política de melhoramentos mate- riais levada a cabo por Fontes Pereira de Melo (Junho de 1883), coincidindo em parte a sua apreciação crítica do fontismo com a de Oliveira Martins, que admirava. Face à estratégia de endividamento externo (que considerava, muito negativamente, sujeitar a nação ao estrangeiro e comprometer a independência nacional), propunha uma orientação bem diversa, uma «cura radical» que fosse no sentido de «Não dever nada a ninguém; ou, devendo-o, dar ao credor inteira garantia do débito, e empregar a máxima diligência em solvê-lo»22. Saldar contas

seria a seu ver uma garantia de independência.

Insiste em recordar a vocação histórica da nação, colonial e marítima, a impor obrigações aos políticos do tempo. Fazer ressurgir a Pátria significaria retomar essa tradição, já que (irrealistamente) considerava Portugal a segunda potência colonial desse tempo (1883), e, a seu ver, a Monarquia Constitucional tinha rompido com aquela vocação histórica. Compreende-se que Arriaga insistisse na necessidade de valorizar as actividades marítima e comercial (não tanto para a agricultura e para a indústria) chamando a atenção para os mercados coloniais, que se desenvolveriam significativamente no decénio de 1890. Por um lado, esta estratégia política enraizava-se em argumentos históricos clássicos (as «tradições dos nossos maiores», depois tão invocadas na crise de 1890-92): como já tem sido observado por Fernando Catroga, o republicanismo legitimava-se numa releitura historicista do passado nacional. Mas sobretudo o que importa assinalar é que 21 Diário da Câmara dos Senhores Deputados, sessão de 5-6-1883, Lisboa, 1884, p. 673.

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o deputado eleito pelo Funchal procurava dissociar o regime do monárquico dessa tradição histórica de grandeza, considerando-o, por conseguinte, estranho à nação e à sua missão histórica. Em alternativa, evocava figuras como Afonso de Albuquerque, D. João de Castro, Pombal, Henriques Nogueira, Passos Manuel ou José Estevão. Por outro lado, aproveitava para propor a valorização dos portos, rios e barras nacionais – ideia de indiscutível interesse nacional. Sublinhava ainda a necessidade de investir na educação e na justiça, na protecção ao trabalho e numa penalidade humana. Noutras intervenções, prepassa a ideia cara ao repu- blicanismo federal de alargar as competências dos municípios.

Na legislatura de 1890-92, em tempo de crise política, moral e financeira, o discurso político de Manuel de Arriaga tende a radicalizar-se na oposição ao regime em torno de quatro pontos principais:

1. crítica frontal à diplomacia portuguesa na relação bilateral com a Inglaterra, insistindo na necessidade de se adoptar uma política externa alternativa em relação à tradicional aliança luso-britânica, privilegiando a relação com a República brasileira; na sequência do Ultimatum de Janeiro de 1890, não era a seu ver digno negociar directamente com a Inglaterra: havia sim que mobilizar as potências signatárias da Conferência de Berlim para uma conferência internacional de arbitragem do diferendo (Maio de 1890 e Junho de 1891);

2. ataque à política musculada dos governos (Outubro de 1890) que ia no sentido do cerceamento das liberdades de imprensa, de reunião, e de funcionamento de agremiações populares;

3. insistência na necessidade de se seguir «uma nova orientação política» ‒ uma mudança «de rumo», «com gente nova e processos novos» (Maio de 1890). Arriaga chega a falar da necessidade de uma «transformação completa e radical», de «remodelação» e de «substituição» da estrutura do Estado: exprime a convicção de que a monarquia vai cair e refere-se, claro está, à implantação da República (Janeiro e Fevereiro de 1892); 4. para além destes temas, a crítica à pauta proteccionista adoptada por

Oliveira Martins (então ministro da Fazenda) é um pretexto para insistir numa crítica primacial ao regime: a ausência de um ideal político nacio- nal, a sua responsabilidade no desvio do rumo histórico da nação e a consequente descaracterização da «índole nacional» (Janeiro de 1892).

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Se não restam dúvidas que Arriaga era um crítico frontal do regime, pode- remos, contudo, considerá-lo um jacobino – no sentido de partidário exaltado e violento da democracia23 – como sugeria ironicamente Ramalho, em 1882? É

certo que o Diário Ilustrado, periódico de Lisboa apoiante de Fontes Pereira de Melo lhe chamava «um senhor jacobino loiro de palavras doces»24. Anticlerical,

firme crítico da função social e política que a Igreja católica assumira desde o Concílio de Trento, decerto que sim. Mas terá Arriaga atribuído ao combate contra a hierarquia da Igreja o primeiro plano, nas suas intervenções políticas? Não cremos. Ainda que embaraçado, quando tomou posse como deputado, em 1882, não deixou então de cumprir o juramento religioso exigido aos represen-

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