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Do socialismo utópico ao científico

No documento Republicanismo, Socialismo, Democracia (páginas 104-108)

samPaio bruno E o rEPubLiCanismo modErado

2. Do socialismo utópico ao científico

No moderno socialismo do século XIX podemos distinguir duas etapas: uma, da 1.ª metade do século, em que predomina o socialismo de inspiração francesa, vulgarmente chamado «utópico» (abstracção feita de Owen10); depois

de 1851, este socialismo entra em colapso doutrinal, mantendo-se vivo apenas 9 Id., ibid.

10 Dizemos abstracção, não exclusão. É que, com Owen (1771-1858) – que entre 1828 e 1834, é o «guia espiritual

do movimento operário» – «deixamos a pré-história do socialismo e acedemos à primeira expressão do socialismo inglês moderno». A sua originalidade ressalta quando comparada com a dos seus predecessores ingleses e com a dos seus émulos continentais. Apesar do malogro das suas experiências sociais, os seus princípios continuam pertinentes pela racionalidade e generosidade. Partindo de uma crítica dos males da sociedade industrial e do princípio que o ser humano e as sociedades são determinadas pelo meio exterior e, portanto, são por ele condicionados e moldados, Owen conclui que é no meio onde se nasce e trabalha, enfim, nas instituições, que está a causa do egoísmo, da miséria e da ignorância. Para erradicar estes efeitos e ter um mundo melhor e mais justo, o que havia a fazer era, pois, mudar o meio e as instituições (daqui decorre a importância da educação e do progresso para a felicidade). Mas convicto no poder revolucionário das ideias, defendia que essa transformação social se devia fazer, pacificamente, sem violência; por isso recusou greves, insurrreições, etc. Da sua obra os operários tiraram duas lições: a primeira, que a reforma social é independente da acção política e não implica, necessariamente, a conquista do poder; e que o essencial do socialismo consiste em realizar, por meio da sociedade capitalista, comunidades socialistas «modelos», auto-geridas

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através das suas contradições mutualistas de lastro proudhoniano (cujas diferen- ças procuram sublinhar, mais do que mostrar aquilo que os une) e torna-se refém de compromissos com a burguesia11. Essas contradições e subalternização facili-

tam a ascensão e emergência de outros socialismos europeus, com especial des- taque para o alemão («na sua forma mais determinista e materialista», onde aparecem Marx, Lassalle, Grun, Becker, Engels, Rodbertus e Carlos Marlo), o belga (com Louis de Potter, Cesar de Paepe, Dékeiser, Jacob Kats, Joseph Charlier) e o russo (com Herzen e Bakunine), todos eles defendendo, com mais ou menos matizes, uma máxima ou mínima (quando não nula), intervenção do Estado na reorganização económico-social, a nacionalização do solo e a socialização das principais forças produtivas e a acção reformista ou revolucionária12. O socialismo

francês confrontava-se, agora, com alternativas de reorganização social cujo pró- naturalismo metodológico lhe dava a credibilidade sedutora da «ciência», ou seja, «certezas». Mais exactamente o socialismo alemão, e dentro deste, o pensamento de Marx, que Malon – que o conhecia bem – no-lo sintetiza sob a óptica fran- cesa, nos termos seguintes: a história é dominada pela luta de classes; a organi- zação e as transformações económicas e, subsequentemente, a organização das transformações políticas, são determinadas pela organização técnica da produção e pelas suas modificações; o modo de produção capitalista (que sucedeu às formas produtivas anteriores, ditas dos Mesteres e das Manufacturas) separou os produ- tores e os meios de produção, tornou o trabalho mais longo, mais uniforme e mais servil, diminuiu os salários (provocando fomes longas, frequentes e mortí- feras) devido ao excesso de mão-de-obra decorrente dos aperfeiçoamentos téc- nicos dos meios produção, aumentou os lucros (transformando esse aumento de capital em instrumento de exploração), conduziu a uma concentração de capitais e a uma nova feudalidade industrial, agudizou o antagonismo entre os capitalis- tas e os trabalhadores (favorecendo a disciplina e organização destes) levou os trabalhadores à convicção que só sairiam desta crescente indigência pela luta de classes e pela socialização, gradual ou violenta, das forças produtivas13. Deste

ponto de vista, para Marx e os marxistas – na óptica de Malon – palavras como «justiça», «fraternidade», etc., eram «entidades metafísicas»; o que importava era

e proprietárias dos seus circuitos de produção e troca; a segunda, que o trabalhadores têm na sua mão uma arma absoluta: a cessação concertada do trabalho.

11 Esta é também a opinião de Bourgin, para quem, a revolução de 1848, foi fim de um período de reflexão socialista

extremamente fecundo e não o seu começo (op. cit. p. 158).

12 Benoît Malon, SI/I. HTTG, pp. 162-163. 13 Id., ibid., pp. 170-171.

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saber se a transformação social desejada era exigida pelo desenvolvimento histó- rico. A resposta era afirmativa porque nos encontrávamos num movimento de guerra de classes, de emergência e protagonismo do proletariado, encarregado de por fim à exploração do homem pelo homem, aos sofrimentos daí decorren- tes e à luta de classes. Mas, para que este desiderato fosse realidade, o operariado tinha de se desfazer dos sentimentalismos que tomam a parte pelo todo e, depois disso, não procurar os seus argumentos senão na ciência, na história e na análise económica14. Estas razões, entre outras, não deixaram, certamente, de ser deter-

minantes para a rotura do socialismo francês com a burguesia liberal, em 1864, através do célebre Manifesto dos Sessenta, a partir do qual adoptou uma clara política de classe, com o surpreendente aplauso de Proudhon que, a esse propó- sito, escreveu o seu melhor livro (De la capacité politique des classes ouvrières, 1865)15. Pela reivindicação da luta de classes, o proletariado mutualista francês

reentrou, de novo, no movimento socialista europeu, viragem que teve a sua recompensa no convite para participar na fundação e constituição da Associação

Internacional de Trabalhadores, em Londres, em 28 de Setembro de 1864 (depois

de algumas malogradas tentativas anteriores). O seu «manifesto» (cujos «consi- derandos» foram redigidos por Marx) teve o inteiro e efusivo acordo de Malon e nele, os seus subscritores, depois de identificarem a propriedade dos meios de produção como a primeira e principal causa da servidão política, moral e mate- rial dos operários – e, consequentemente, estabelecerem, como prioridade da sua luta de libertação, não o poder político (ainda que a conquista deste fosse o primeiro dos seus deveres) mas a emancipação económica (à qual aquele se devia subordinar como meio) – defenderam que a solução dos problemas dos traba- lhadores estava na sua luta pela justiça, pela moral, pela verdade (sem distinção de cor, crença ou nacionalidade) e pela extensão, a todos, dos Direitos do Homem e do Cidadão16. Apesar de generalista – e até «metafísica» – esta doutrina da

Internacional não foi, pacificamente, aceite pelos seus filiados. No seu primeiro

e segundo Congresso (respectivamente, em Genève, em 1866, e, em Lausanne, em 1867) foi o mutualismo francês que se impôs aos congressistas e só no terceiro (Bruxelas, 1868) e quarto Congresso (Bâle, 1869) o colectivismo triunfou, mas, mesmo este triunfo foi conseguido através de um socialista belga que nada devia ao socialismo alemão, Cesar de Paepe (que passara pelo mutualismo proudho- 14 Id., ibid.

15 Id., ibid., p. 163. 16 Id., ibid., pp. 183-184.

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niamo e pelo positivismo de Comte e fora levado para o colectivismo pelas ideias de Colins)17. Malon tinha uma grande admiração por Paepe, que defendia a

abolição da propriedade fundiária, a socialização do solo, dos grandes meios de produção e dos serviços de interesse público e a sua entrega, pelo Estado (excepto os de interesse mais geral e nacional) a associações de trabalhadores (que os explorariam mediante um caderno de encargos e sob administração de conselhos comunais)18. Quando os operários se preparavam para realizar o Congresso de

Mayance (em Setembro de 1870), onde se iria abordar o «colectivismo industrial» (que tinha em Pequeur e Vidal os seus principais doutrinadores e sequazes), rebentou a guerra franco-prussiana e, no seu rescaldo, a Comuna de Paris, na qual Malon participou, activamente. Apesar da sua curta duração e da sua der- rota sangrenta, foi graças a ela, segundo Malon, que a França manteve a Repú- blica19. E, provavelmente, se não fosse esse martírio colectivo, onde se caldearam

e fervilharam as ideologias mais desencontradas, escatológicas e messiânicas, a expansão da Internacional não se teria dado tão rapidamente como aconteceu, ainda que venha a tornar-se campo de batalha de dois chefes rivais – Marx e Bakunine – cujo pomo de discórdia se centrava, sobretudo, no papel do Estado (cuja liquidação colhia simpatias entre os trabalhadores menos instruídos). Mas foi a orientação de Marx que prevaleceu e venceu, ou seja, o materialismo his- tórico e económico e, com ele, a luta contra o capitalismo e a burguesia, cuja derrota só seria alcançada pela tomada do poder político pelo proletariado (van- guarda do operariado e dos oprimidos), pela abolição da propriedade privada e do capitalismo, pela apropriação colectiva dos meios de produção e, por fim, pela abolição das classes sociais. Estas orientações da Internacional foram segui- das pelos socialistas e suas associações partidárias com mais ou menos ortodoxia. Entre eles, Malon destacou os socialistas «integralistas» (nos quais se incluía) que, na generalidade, aceitavam «os dados gerais do socialismo realista» ou seja, a doutrina de Marx e, com ela, «o incontestável domínio da luta de classes ao longo da história», a inegável influência da técnica sobre a organização do tra- balho (e como podia ser virada contra os interesses dos trabalhadores), o impe- rativo da socialização dos meios de produção (que, todavia, devia começar por uma política anti-monopolista das instituições de crédito, dos transportes, dos bancos, das minas, dos caminhos-de-ferro, dos serviços de interesse comunal, do 17 Id., ibid., pp. 185-186.

18 Id., ibid., p. 186. 19 Id., ibid.

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grande comércio e da grande industria, etc.)20. Mas diferentemente de Marx e

dos marxistas, os socialistas «integralistas» eram da opinião que a vida social, na sua totalidade, não se encerrava na concha do processo económico nem consi- deravam exacto – como já tinha, aliás, sublinhado Buckle e o farão, também, Hector Denis, Fouillée e Berthelot – que a sociedade política fosse um mero reflexo da economia – ainda que reconhecessem o seu predomínio (decrescente) no inicio da civilizações; havia outros factores que se tinham e têm revelado mais determinantes – como as ideias e os sentimentos21. Por isso, se a reacção do

socialismo alemão de inspiração científica, se justificava quer pelos excessos do idealismo quer pela crescente exploração dos trabalhadores pelo capitalismo, era, todavia – na óptica de Malon –, redutora, pois amputava o socialismo dos «impulsos sentimentais» que tanto o tinham engrandecido e mobilizado os seus aderentes, ainda que fosse verdade que o socialismo, agora, armado com as «grandes leis da história e uma atenta observação crítica dos fenómenos econó- micos», adquirira um poder novo e temível (devido à sua aparente cientificidade e, portanto, inevitabilidade das suas previsões); mas para que estas previsões se tornassem irresistíveis – sublinhou Malon – não era suficiente que fossem verda- deiras, era preciso que à sua força se associassem os sentimentos e valores, sem os quais não há mudança possível22.

No documento Republicanismo, Socialismo, Democracia (páginas 104-108)