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Republicanismo e pacifismo

No documento Republicanismo, Socialismo, Democracia (páginas 36-42)

4. Os ingredientes do republicanismo kantiano

4.3. Republicanismo e pacifismo

No ensaio de 95, lê-se esta declaração: «Pela sua natureza, a república deve tender para a paz perpétua»59. Será, então, que as repúblicas, pelo facto de o

serem, estão imunizadas quanto ao risco de se agredirem e fazerem guerra umas às outras?

A tendência pacificista – melhor dito, a tendência para a resolução pacífica dos conflitos – constitui um dos traços do republicanismo kantiano, mas é também um dos seus pontos mais criticado, porque, antes de mais, parece ser amplamente desmentido pela experiência histórica. De facto, segundo o filósofo, 57 Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 352.

58 Rechtslehre, Ak VI, 313.

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a constituição republicana, para além da limpidez da sua origem nas fontes puras da ideia do direito, recomenda-se pela vantajosa perspectiva de garantir melhor do que qualquer outra a paz perpétua60. Em primeiro lugar, porque a constitui-

ção republicana é a melhor garantia da pacificação no interior de cada Estado e, depois, porque é também a melhor garantia da pacificação das relações exteriores entre os vários Estados, pois os Estados que sejam republicanamente constituídos e governados, de acordo com o princípio que os inspira, aprenderam a resolver os conflitos internos e externos segundo regras do direito, e não pela agressão e pelo poder. É por isso também que um povo com constituição republicana estará tanto mais seguro interiormente e exteriormente quanto mais os Estados que o rodeiam igualmente se republicanizem.

Também esta não era uma ideia completamente nova. Ela encontra-se já em Montesquieu, o qual fazia notar que as monarquias têm um carácter guer- reiro e expansionista, enquanto as repúblicas revelam uma propensão pacífica e moderada61. Desde a primeira hora, os críticos não têm tido grande dificuldade

em apontar exemplos históricos que desmentem a tese kantiana. Os críticos conservadores da Revolução Francesa, na linha de Edmund Burke, em face do jacobinismo agressivo e totalitário e do nacionalismo militante e expansionista que a veio a caracterizar, farão notar que não foi a paz, mas sim a guerra que ela espalhou por toda a Europa, numa escala nunca antes vista. Esta crítica até daria razão a Kant, mas a propósito da sua tese segundo a qual a republicanização dos Estados deve acontecer, não por revolução, e sim por reformas graduais e contínuas, pois uma revolução, uma vez desencadeada, torna-se um aconteci- mento da história natural dos homens, incontrolável nos seus efeitos, trazendo ao de cima todas as forças caóticas e de desintegração que estão acumuladas, contidas e profundamente recalcadas na sociedade, as quais não haviam sido ainda trabalhadas pelo lento processo da educação, tanto do povo como dos próprios protagonistas do movimento revolucionário, os quais, por isso, são eles mesmos engolidos e triturados pelo processo que desencadearam. Hegel, por seu turno, numa nota ao parágrafo 329 da Filosofia do Direito, contra a tese de Kant de que só os príncipes autocráticos estão dispostos para declarar a guerra a outros porque ela nada lhes custa, fazia notar, citando exemplos históricos, que, frequentemente, há nações inteiras que se entusiasmam e são movidas pela 60 Ibid., 351.

61 De l’Esprit des Lois, IX, chap. II: «L’esprit de la monarchie est la guerre et l’agrandissement: l’esprit de la république

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paixão guerreira muito mais do que os seus príncipes, os quais acabam por ser arrastados para a guerra pela paixão popular62.

Quem tem razão? Pode sempre dizer-se que, ao sustentar o carácter pacifista das repúblicas, Kant tem em vista não uma situação de facto já definitivamente adquirida, mas uma tendência das repúblicas – que o sejam «segundo a ideia» autenticamente (e nenhuma das suas formas históricas conhecidas o foi ou é ainda verdadeiramente) – para a resolução pacífica dos conflitos, a qual precisa de ser cultivada pela educação e pelas próprias instituições republicanas. De resto, Kant está convicto de que se um povo republicano for efectivamente consultado para declarar a guerra a um outro povo (em vez de esta ser decidida pela arbitrariedade do monarca), os que assim são chamados a livremente decidir, dificilmente o farão indo contra os seus próprios interesses, pois farão as suas contas e cálcu- los e concluirão que a guerra não trará vantagem aos seus negócios e não lhes garantirá a prosperidade63. Em contrapartida, num país onde os súbditos não

são verdadeiramente reconhecidos e tratados como cidadãos e onde não existe uma constituição republicana, a guerra é coisa que não exige muita reflexão, porque o soberano não se vê verdadeiramente como um membro mas como o dono do Estado e a guerra que decidir declarar não o impedirá de continuar a ter a sua boa mesa, a sua caça, os seus castelos de prazer, os seus divertimentos e as suas festas da corte, etc., podendo, por conseguinte, decidir-se por ela até pelas mais fúteis razões.

Na verdade, não podemos desligar a tese kantiana acerca da tendência paci- fista das repúblicas do modo como Kant pensa o funcionamento dum genuíno espaço público onde se dá a livre circulação de opiniões, onde os cidadãos não são impedidos de se instruir e de expor as suas ideias, onde se cultiva a diversidade de perspectivas e não existe uma ditadura de opinião, que impeça o debate. Numa tal sociedade de cidadãos livres e esclarecidos, seria difícil que estes viessem a desenvolver sentimentos de hostilidade de forma generalizada e continuada e a aprovar com facilidade o envolvimento em empreendimentos de guerra de agressão que poriam em risco a sua prosperidade e bem-estar. E, exemplo histórico por exemplo histórico, sempre se poderá dizer que a experiência 62 Um ponto da situação a respeito deste tópico encontra-se em Otfried Höffe, Kant’s Cosmopolitan Theory of Law and

Peace, chap. 10: «Are Republics Peaceable?», pp. 177-188.

63 Era neste sentido que também Locke lia na História a tendência pacífica dos governos que têm a sua origem no

consentimento do povo (as far as we have any light from History, we have reason to conclude, that all peaceful beginnings of Government have been laid in the Consent of the People). John Locke, Two Treatises of Goverment, ed. cit. (The Second Treatise, § 112), p. 344.

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histórica europeia e, apesar de tudo, também a experiência histórica mundial das últimas seis décadas poderia testemunhar a favor da tese de Kant64. Mas, acima

de tudo, há que não esquecer que, segundo Kant, na ideia originária da genuína constituição republicana faz-se ouvir o incondicional imperativo da razão moral prática, que diz: «Não deve haver nenhuma guerra!» (Es soll kein Krieg sein!)65.

64 Veja-se: Cecilia Lynch, «Kant, the Republican Peace, and Moral Guidance in International Law», in: Ethics and

International Affairs, 18, 1994, pp. 39-58; Thomas Burns, Kant et l’Europe. Étude critique de l’interprétation et de l’influence de la pensée internationaliste kantienne, Universität des Saarlandes, 1973; Ernst-Joachim Mestmäcker, «Kants

Rechtsprinzip als Grundlage der europaïschen Einigung», in: Götz Landwehr (Hrsg.), Freiheit, Gleichheit, Selbstän-

digkeit. Zur Aktualität der Rechtsphilosophie Kants für die Gerechtigkeit in der modernen Gesellschaft, Vandenhoeck &

Ruprecht, Göttingen, 1999, pp. 61-72; Manuel J. do Carmo Ferreira, «Kant e a Constituição Europeia», Revista

Portuguesa de Filosofia, 61, 2005, 441-451; Otfried Höffe, «Ausblick: Die Vereinten Nationen im Lichte Kants»,

Idem (Hrsg.), Immanuel Kant. Zum ewigen Frieden, Akademie Verlag, Berlin, 1995, pp. 245-272.

65 Metaphysik der Sitten, Rechtslehre, Ak VI, 354; Zum ewigen Frieden, Ak VIII, 356; Streit der Fakultäten, Ak VII,

90. Sobre o tema da guerra em Kant (e a aparente contradição entre a defesa incondicional do princípio ético- político-jurídico da paz e a compreensão – ou justificação – do fenómeno da guerra como inscrito na teleologia da natureza em relação à espécie humana), veja-se: Teresa Santiago, Función y crítica de la guerra en la filosofia de I.

Kant, Anthropos, Barcelona, 2004; Félix Duque, «Natura daedala rerum. De la inquietante defensa kantiana de la

máquina de guerra», in Roberto R. Aramayo, Javier Muguerza, Concha Roldán (eds.), La Paz y el Ideal Cosmopolita

de la Ilustrración. A Proposito del Bicentenario de Hacia la Paz Perpetua de Kant, Tecnos, Madrid, 1996, pp. 191-216;

José Luis Villacañas, «La guerra en el pensamiento kantiano antes de la Revolución Francesa: La prognosis de los procesos modernos», Ibid., pp. 217-238.

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JÚLio dE CastiLhos E o rEPubLiCanismo

1Ricardo vélez Rodríguez*

Estudar o Castilhismo é identificar a ideologia que terminou por dar identidade ao Brasil republicano. Porque foi ao ensejo dessa doutrina que se consolidaram as instituições do Estado Nacional, no longo período getuliano. O Brasil, após a aplicação da proposta modernizadora de inspiração castilhista por Getúlio Vargas, já não seria mais o mesmo. Superamos definitivamente, após esse ciclo, o velho arquétipo de República oligárquica que nos irmanava às outras nações herdeiras do patrimonialismo tradicional ibérico. Consolidou-se o nosso país como uma nação moderna, que aspira ao progresso e ao desenvolvimento. Superamos o velho caudilhismo, que ainda assoma em experiências políticas que pipocam aqui e acolá no universo hispano-americano. Mas, ao mesmo tempo, consolidou-se entre nós um modelo autoritário de governo, que apregoa alto e bom som uma proposta modernizadora de feição vertical, centralizadora e tecnocrática. Como frisaram Antônio Paim e Simon Schwartzman, não superamos definitivamente o patrimonialismo, tendo desenvolvido uma versão modernizadora do mesmo, plantada no chão das práticas centralizadoras herdadas do ciclo pombalino, administradas na pesada liturgia cartorial pelos estamentos. Duas décadas após iniciarmos a abertura depois do ciclo militar, ainda a administração pública e a política se ressentem, no Brasil, da feição centralizadora e dirigista impingida pelas reformas ensejadas no ciclo getuliano. Esse é o grande repto neste novo século: conseguiremos, nas próximas décadas, fazer amadurecer entre nós um modelo plenamente modernizador e democrático? Responder a essa pergunta significa indagar se conseguiremos superar o modelo castilhista que se institucionalizou na nossa vida republicana.

O Castilhismo foi um sucesso na experiência republicana brasileira. Isso, a meu ver, porque deitou raízes na tradição pombalina, que deu ensejo a parte expressiva das reformas modernizadoras ocorridas ao longo do Império. Não esqueçamos que

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foram de inspiração cientificista-pombalina as primeiras medidas desenvolvidas para dotar o país, no início do século XIX, das instituições de ensino superior. De inspiração pombalina foi também a idéia estratégica de ocupar a hinterlândia do Planalto Central com uma nova Capital, que se comunicasse por raios que sairiam diretamente dela até as demais regiões. De formação pombalina foi, outrossim, a nossa elite que fez a independência de Portugal em 1822. Cientificistas foram as reformas ensejadas por Paranhos em 1874. É claro que ao lado da herança pom- balina havia, na estrutura do Estado, as instituições liberais da representação e do Poder Moderador, inseridas na nossa vida política por influência dos doutrinários franceses, que inspiraram aos denominados por Oliveira Vianna de «homens de mil», aqueles que rodearam incondicionalmente Dom Pedro II, numa espécie de círculo impenetrável de fidelidade ao monarca e ao modelo constitucional por ele posto em prática. A tradição cientificista do despotismo ilustrado ver-se-ia mitigada, no século XIX, pelas instituições liberais do Império.

Advinda a República após o «surto de idéias novas» que acompanhou à propaganda republicana, as novas instituições foram sendo desenhadas no contexto de uma crítica radical ao liberalismo do período imperial, e no seio de múltiplas filosofias de inspiração cientificista, que se contrapunham ao ecle- tismo espiritualista dominante durante o Segundo Reinado. O positivismo, o naturalismo, o darwinismo social, o monismo de Haeckel, o saint-simonismo, a agitação socialista inspirada nos publicistas franceses, constituíram alguns dos parâmetros conceituais à luz dos quais foram sendo pensadas as novas institui- ções. Mas, descontinuada a experiência de governo representativo da monarquia, as instituições republicanas passaram a se inspirar notadamente no positivismo, que constituiu a forma de cientificismo mais forte entre nós.

A respeito dessa mudança de rumos na política do país, Antônio Paim escreveu: «A República corresponde à brusca interrupção do processo de estruturação, no país, das instituições do sistema representativo, sob a égide da doutrina eclética, segundo a qual o homem e sua obra cultural são perfectíveis ao infinito e têm assegurada a sua continuidade no tempo. Agora acredita-se que o homem é determinado e determinável. Ao invés da organização do livre choque entre os interesses, passa a admitir-se que o interesse nacional pode ser fixado a partir da simples meditação científica. E se no ecletismo a moralidade era conciliatória e ambígua, atribuindo-se mesmo certo papel à Igreja Católica nessa matéria, a elite republicana crê na moral científica. Ao longo da República Velha vigora a simples prática autoritária, isto é, o poder central elimina, com a denominada

40 rEPubLiCanismo, soCiaLismo, dEmoCraCia JÚLio dE CastiLhos E o rEPubLiCanismo 41 política dos governadores, o instituto da representação, mas mantém-se o simulacro

das eleições» [Paim, 1984: 101].

Diríamos que com o advento da República, o complexo de clã (presente nas oligarquias rurais cooptadas pelo Império, mas mitigado pelo parlamentarismo e o exercício zeloso do Poder Moderador), passou a dominar sem pólo de poder que o contrabalançasse. A velha tendência patrimonialista, presente na nossa história, ressurgiria ávida de privatização do espaço público, ao longo da República Velha. É, nesse contexto de privatização despudorada do poder na política dos governa- dores, que o Castilhismo ocupou espaço importante, não como contrapeso que mitigasse o autoritarismo, mas como opção centralizadora que se contrapunha à tendência privatizante que, após o «encilhamento», nos albores republicanos, prolongar-se-ia numa clara apropriação da máquina do poder, nos Estados, pelas oligarquias. O Estado, na República Velha, foi enxergado por estas como butim a ser apropriado no enriquecimento próprio e das suas clientelas. É o velho «espírito orçamentívoro» da «política alimentar», criticado por Oliveira Vianna.

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