• Nenhum resultado encontrado

República, Bandeira nacional e Regime político

No documento Republicanismo, Socialismo, Democracia (páginas 90-95)

samPaio bruno E o rEPubLiCanismo modErado

2. República, Bandeira nacional e Regime político

A política religiosa inicial do Governo Provisório republicano ou o lugar da religião católica na identidade nacional portuguesa não surgiram com relevo nos artigos políticos deste período de Sampaio (Bruno) – «pobre e humilde livre-pensador espiritualista», como se auto-definia23 –, apenas se divisam duas

afirmações significativas:

(i) sobre a monarquia – regime «beato, fanático, supersticioso e nas mãos dominantes do jesuitismo prevalescente»24;

(ii) sobre a mentalidade republicana, na vertente jacobina, a propósito de um incidente na Igreja do Loreto, em Lisboa – «o traço distintivo do espírito novo dos avançados em Portugal seria uma irreligião ignorante e petulante» –, admirando-se com o desprezo pela Ciência das Religiões que algum livre-pensamento radical português promovia25.

Porém, Bruno, no artigo político de 9 de Janeiro de 1911, parecia remeter as religiões unicamente para o campo da ciência, reconhecendo, não obstante, a 21 BRUNO, A Ditadura. Subsídios morais para seu juízo crítico, Porto, Livraria Chardron de Lello & Irmão, Editores,

1909, p. 293.

22 BRUNO, «Pátria e República», Diário da Tarde, Porto, ano XIV, n.º 3 (nova série), 4 de Janeiro de 1911, p. 1. 23 BRUNO, «A República Portuguesa – VIII», A Pátria, Porto, ano II, n.º 353, 20 de Novembro de 1910, p. 1. 24 José Pereira de Sampaio (BRUNO), «Principiando», Diário da Tarde, Porto, ano XIV, n.º 1 (nova série), 2 de Janeiro

de 1911, p. 1.

90 rEPubLiCanismo, soCiaLismo, dEmoCraCia samPaio bruno E o rEPubLiCanismo modErado 91

importância histórica do catolicismo e o lugar da dimensão religiosa enquanto elemento propulsor da emancipação do espírito.

O debate em torno das cores da nova bandeira portuguesa foi o lugar essencial para Sampaio (Bruno) reflectir sobre a relação entre tradição e revolução. Dez dias depois da revolução de 5 de Outubro, afirmou que a bandeira vermelha e verde era a bandeira da Revolução (rompia com a tradição nacional), correspondente ao período revolucionário e à memória republicana26; no entanto, a bandeira da

Nação (renovadora da tradição nacional) tinha que continuar a ser de cor azul e branco, substituindo a coroa (monárquica) por uma estrela de ouro (republicana). Razão basilar: «[…] a bandeira azul-e-branca, com o seu escudo e disposição, é a única que o preto de África conhece como representativa da soberania de Portugal. […] é o símbolo de Portugal para o indígena das nossas colónias. É a única que ele conhece. Fazê-la desaparecer implica comprometer a nossa sobe- rania colonial […]»27. A proposta final de Bruno sobre a bandeira nacional foi

divulgada no Almanaque O Cunha, em 1912: bandeira bicolor azul e branco, bipartida no escudo nacional, encimado por uma estrela de ouro e envolvido lateralmente por dois ramos de palmas entrelaçados.

Um dos argumentos contra o cromatismo azul e branco era a evocação da sua origem na bandeira da Carta Constitucional outorgada, que foi hasteada pela primeira vez num barco fundeado em Angra do Heroísmo (Açores), em 19 de Outubro de 1830, pelas forças liberais de D. Pedro. A bandeira tinha um fundo bipartido de azul e branco, no centro do escudo nacional, sem a esfera armilar (antigo emblema de D. Manuel I) que constava da bandeira de D. João VI e que figurava nas armas do Brasil, desde 1816, para simbolizar o Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves.

26 As cores vermelho e verde ou verde e vermelho (a ordem, da esquerda para a direita, não é sempre a mesma) tinham

sido utilizadas em várias bandeiras, sendo as cores do Federalismo Ibérico, do Centro Democrático Federal 15 de Novembro do Porto e, após a revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891, de vários Centros e Clubes Republicanos e da Carbonária Portuguesa. A Bandeira Nacional, aprovada pelo Governo Provisório em 29 de Novembro de 1910 e sancionada pela Assembleia Nacional Constituinte na sessão de 19 de Junho de 1911, é uma bandeira bicolor verde e vermelho (2/5 ocupados pelo verde), incorporando a simbólica tradicional (escudo, quinas, castelos e esfera armilar); o escudo branco das cinco quinas azuis (com cinco escudetes brancos, cada uma) é rodeado por uma larga faixa carmesim, com sete castelos dourados, cor também da esfera armilar.

27 BRUNO, «A República Portuguesa [V]», A Pátria, Porto, ano II, n.º 322, 15 de Outubro de 1910, p. 1. A mesma

razão da memória inculcada no indígena africano sobre o azul e branco e o escudo da bandeira nacional é compar- tilhada pelo republicano António Bettencourt-Rodrigues, radicado no Brasil, a que acrescentou a circunstância do verde e vermelho serem cores complementares, difíceis de distinção a alguma distância – cf. «A questão da bandeira. Opinião de um médico», Diário da Tarde, Porto, ano XIV, n.º 29 (nova série), 4 de Fevereiro de 1911, p. 1.

90 rEPubLiCanismo, soCiaLismo, dEmoCraCia samPaio bruno E o rEPubLiCanismo modErado 91

Sampaio (Bruno) rebateu o argumento, lembrando que as cores nacionais, empregues na bandeira que se atribui a D. Afonso Henriques (talvez nunca tenha existido), foram o branco com uma cruz azul, que será substituída, no reinado de D. Sancho II, o que também não é certo, por uma bandeira branca com cinco escudetes azuis dispostos em cruz. Bruno recordou também que as Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes em 21 de Agosto de 1821 tinham decretado que «haveria um laço nacional composto das cores azul e branca»28, vindo a ser

confirmado no decreto n.º 22, da Regência liberal de Angra do Heroísmo, em 18 de Outubro de 183029.

Quanto ao pensamento político republicano, Bruno estava, então, nos antí- podas da perspectiva ditatorial revolucionária de Basílio Teles – outro dos seus grandes amigos – que propagandeava uma republicanização radical do Estado e da Nação, opondo-se, por exemplo, à proibição de colaboração administrativa e de representação exterior do Estado por parte de monárquicos patriotas ou à punição com a pena de morte sumária para quem roubasse ou matasse, que Basílio Teles defendia, compartilhando, no entanto, outras medidas políticas, entre as quais o imprescindível sufrágio universal (repudiado pelo decreto de 14 de Março de 1911). Para Bruno, a ditadura republicana do Governo Provisório devia ser muito curta, legislando o essencial (a ser reavaliado profundamente na Assembleia Nacional Constituinte), com a preocupação central de preparar as eleições constituintes e a normalização democrática, dado que, só com a Cons- tituição, é que a República estava legitimamente consagrada.

Nesta fase da sua vida cívica, desde o primeiro artigo político de 8 de Outu- bro de 1910 até ao último artigo político de 16 de Fevereiro de 1911, Bruno clamou permanentemente por um período revolucionário curto e pela urgência de eleições constituintes e recordou a seu favor a afirmação de Proudhon30 dirigida

aos membros do Governo Provisório da II República Francesa de 184831 – «E,

sobretudo sede sóbrios no legislar»32 – e a circunstância desse Governo Provisório

28 BRUNO, «A República Portuguesa – VII», A Pátria, Porto, ano II, n.º 350, 17 de Novembro de 1910, p. 1. 29 BRUNO, «A República Portuguesa – VIII», A Pátria, Porto, ano II, n.º 353, 20 de Novembro de 1910, p. 1. 30 Bruno evocou várias vezes, a seu favor, o pensamento político de Proudhon, pois sabia bem da sua influência na

construção do pensamento político republicano português.

31 Maria Manuela Tavares Ribeiro, Portugal e a Revolução de 1848, Coimbra, Livraria Minerva, 1990; Fernando Catroga,

«A Memória de 48», O Republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1991, pp. 167-192.

92 rEPubLiCanismo, soCiaLismo, dEmoCraCia samPaio bruno E o rEPubLiCanismo modErado 93

ter durado cerca de dois meses33. Em vários destes seus artigos políticos encon-

tramos as palavras de ordem que sintetizavam esta urgência: «Sufrágio Universal! Sufrágio Universal!» – «Eleições! Eleições!» – «A Constituinte! A Constituinte!». Imbuído de um espírito democrático e tolerante, combateu o prolongamento da fase ditatorial, que, se vigorasse dois anos, seria «o Franquismo de barrete frígio»34, e defendeu a elaboração de uma lei eleitoral que fosse liberal, democrática

e republicana, para ser um «resumo das forças vivas da Nação em República», daí a necessidade de se apresentarem três listas ao acto eleitoral, compostas por cidadãos inteligentes e cultos, de probidade política e respeitabilidade pessoal:

(i) lista de republicanos históricos, com socialistas e anarquistas; (ii) lista de indiferentes face à questão do regime;

(iii) lista de monárquicos que aceitassem trabalhar politicamente em Repú- blica35.

Se a lei eleitoral excluísse o direito de voto aos que não soubessem ler e escrever (assim veio a acontecer), reduzia-se muito a legitimidade democrática da República, que se arriscava a ser menos de 20 por cento36. Esperar pela alfabeti-

zação e educação republicana generalizada ou pela irradicação do «espantalho do caciquismo», deduzia Bruno que, então, só daqui a 25 anos é que havia condições para se realizarem eleições constituintes, o que era inconcebível e irresponsável, pois perigava a paz interior e a segurança exterior, enfraquecendo a autoridade moral republicana, o verdadeiro argumento da sua força na contestação ao regime monárquico37.

Nesta campanha pelas eleições constituintes imediatas38, o grupo republicano

moderado do Porto (José Pereira de Sampaio, António Claro, Aníbal Cunha ou Joaquim de Azevedo Albuquerque) estava convergente com o grupo republicano 33 BRUNO, «Eleições – Constituintes», Diário da Tarde, Porto, ano XIV, n.º 12 (nova série), 14 de Janeiro de 1911,

p. 1.

34 BRUNO, «A República Portuguesa – II», A Pátria, Porto, ano II, n.º 356, 24 de Novembro de 1910, p. 1. 35 BRUNO, «As Constituintes. Como elas deverão ser compostas», Diário da Tarde, Porto, ano XIV, n.º 24 (nova

série), 28 de Janeiro de 1911, p. 1.

36 BRUNO, «A república dos 20 por cento ou 20 por cento de República», Diário da Tarde, Porto, ano XIV, n.º 35

(nova série), 11 de Fevereiro de 1911, p. 1.

37 BRUNO, «Eleições! Eleições!», Diário da Tarde, Porto, ano XIV, n.º 39 (nova série), 16 de Fevereiro de 1911, p. 1. 38 A última frase do último artigo político de Bruno, publicado no jornal que suspenderia edição definitivamente nesse

dia, mostra a convergência dos moderados do Diário da Tarde, do Porto, com os radicais de O País e de O Intran-

sigente, de Lisboa: «Republicano moderado, grito, aqui do Porto, como o republicano radical de Lisboa: Eleições!

Eleições!» – cf. BRUNO, «Eleições! Eleições!», Diário da Tarde, Porto, ano XIV, n.º 39 (nova série), 16 de Fevereiro de 1911, p. 1.

92 rEPubLiCanismo, soCiaLismo, dEmoCraCia samPaio bruno E o rEPubLiCanismo modErado 93

radical de Lisboa (António Machado Santos, Alexandre de Vasconcelos e Sá, José Eugénio Dias Ferreira ou Henrique Weiss de Oliveira). Promoveram em Maio de 1911 o projecto político efémero da Aliança Nacional, que lançou um Manifesto

ao eleitorado português, divulgado treze dias antes das eleições constituintes de 28

de Maio de 1911, sendo assinado em primeiro lugar por José Pereira de Sampaio e em último lugar por António Machado Santos. Este foi o derradeiro texto político de grande projecção pública subscrito por Sampaio (Bruno), onde estão vários conteúdos que tinha inscrito em diversos artigos políticos que publicara nos jornais A Pátria em 1910 e Diário da Tarde em 1911.

Bruno recordou, várias vezes, nesses artigos políticos, o programa do Partido Republicano Português, aprovado em 11 de Janeiro de 1891 e ainda em vigor em 1910-1911, onde se consagravam, por exemplo, as liberdades políticas, as garantias individuais, o sufrágio universal e a revisão decenal da Constituição e da codificação geral, condições necessárias para uma evolução normal da I República Portuguesa, que considerava poder estar ameaçada com a continuidade ditatorial do Governo Provisório: «Nada de Provisórios perpétuos nem sequer demorados! A Constituinte! A Constituinte!»39.

Enraizado neste pensamento político, lutava pela união patriótica de repu- blicanos e de monárquicos, dentro da República, permitindo-se a organização de várias correntes de opinião política – republicana moderada, republicana radical, socialista, anarquista e monárquica –, pertencendo Bruno à opinião republicana moderada40, derivada, segundo ele, de Danton e não de Robespierre, do Libe-

ralismo e não do Jacobinismo41, muito preocupado com a manifestação de crise

moral em sectores das classes médias provocada por algumas leis revolucionárias, destacando a lei do divórcio que poderia desestruturar a família tradicional, que defendia como base da comunidade humana.

Para Bruno, a construção política da República devia prescindir do antigo Partido Republicano Português, cuja missão tinha sido proclamar a República, defendendo a sua extinção num Congresso Extraordinário convocado para esse efeito. Após ser declarada a dissolução, iniciar-se-ia, de imediato, a reconstrução partidária, durante esse Congresso, com o estabelecimento de duas mesas para a inscrição dos delegados nas listas dos dois novos partidos a criar: um, republicano conservador e moderado; outro, republicano radical e socialista.

39 BRUNO, «A República Portuguesa – II», A Pátria, Porto, ano II, n.º 356, 24 de Novembro de 1910, p. 1. 40 BRUNO, «A República Portuguesa – VI», A Pátria, Porto, ano II, n.º 347, 13 de Novembro de 1910, p. 1. 41 BRUNO, «A artilharia da “piada”», Diário da Tarde, Porto, ano XIV, n.º 10 (nova série), 12 de Janeiro de 1911, p. 1.

94 rEPubLiCanismo, soCiaLismo, dEmoCraCia samPaio bruno E o rEPubLiCanismo modErado 95

Constituídas as comissões organizadoras dos dois partidos, promover-se-ia a adesão nacional e a elaboração das bases programáticas, preparando-se os res- pectivos congressos fundadores42. Nada disto ocorreu, os delegados republicanos

presentes no Congresso do Partido Republicano Português de Outubro de 1911 seguiram esmagadoramente a opinião jacobina de Afonso Costa, o que conduziu à constituição de duas importantes forças partidárias na área moderada (Partido Republicano Evolucionista, de António José de Almeida e União Republicana, de Manuel de Brito Camacho), e de um incipiente projecto político, na área radical (Centro Reformista, de António Machado Santos).

No documento Republicanismo, Socialismo, Democracia (páginas 90-95)