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Figueiredo (2009) identifica três funções do cuidado: acolhimento; reconhecimento do objeto dos cuidados no que ele tem de próprio e sin- gular; e o questionamento, função na qual o cuidador (aqui representado pelo profissional de saúde) exerce papel de agente de confronto e do limite. Essas três funções comporiam a parcela “ativa” do cuidado e precisam agir

em equilíbrio dinâmico para que os cuidados efetivamente proporcionem a instalação de uma capacidade de fazer sentido ao indivíduo (no caso, os membros da família). O autor ressalta que, por outro lado, é importante que o cuidador saiba também se ausentar quando necessário, moderando seus afazeres, deixando que o objeto de cuidado cresça neste espaço deso- bstruído e possa introjetar as funções cuidadoras, passando ele próprio a exercer os cuidados.

É com essa ideia que as ações da LC devem ser planejadas em cada situação, buscando desenvolver com as famílias a capacidade de cuidar de seus membros sem o uso da violência. Para atingir este objetivo, os profissionais de saúde não podem se restringir à abordagem das consequ- ências às vítimas, mas exercer a prática da proteção integral da criança, para a qual é imprescindível que, aos aspectos biológicos, sejam acrescen- tados os psicológicos e socioculturais de vida do paciente. (BANNWART; BRINO, 2012) Cabe considerar que os autores da agressão, as vítimas e as demais pessoas que compõem a família mantém vínculos que vão para além das relações que desencadeiam a violência. Os afetos existentes en- tre eles precisam ser identificados, valorizados e incluídos no processo de atendimento.

A identificação de uma criança em situação de violência nem sem- pre é uma tarefa simples. A exposição à violência pode se manifestar por meio de lesões, alterações comportamentais ou emocionais, que são, em sua maioria, inespecíficas. Parte das vítimas sequer apresenta tais manifes- tações e, ainda que elas apareçam, os familiares e profissionais nem sempre reconhecem ou associam à causa. Muitas vezes, ainda que os familiares as detectem, não as trazem espontaneamente para as consultas.

Por isso, recomenda-se que o profissional: questione consistente- mente crianças, adolescentes e pais a respeito das relações familiares e de situações de violência no dia a dia; pergunte sobre fatos desencadeantes e detalhes dos eventos; esclareça as suspeitas (levantar falsas suspeitas ou falhar no diagnóstico é igualmente prejudicial); e esteja preparado para reconhecer sinais, sintomas e comportamentos comuns em crianças ex- postas à violência.

É necessária certa cautela sobre quando e como expor para a famí- lia que há uma suspeita de violência, na medida em os sinais e sintomas inespecíficos podem ser comuns a diversas formas de violência ou mesmo decorrer de outros problemas da vida da criança. São exemplos a ansieda-

de, a depressão, a baixa autoestima e os desajustes sociais. Uma análise do contexto em que essas questões surgiram torna-se imprescindível. A suspeita pode ser posta para a família como uma das causas para o proble- ma, devendo o profissional avaliar como se dá a reação a esta possibilidade aventada. Fundamentar a suspeita é um passo essencial para a boa condu- ção da situação na LC.

Lesões ou queimaduras com marca do objeto utilizado, certos tipos de fraturas e algumas doenças transmitidas exclusivamente por meio de contato sexual são manifestações mais específicas da ocorrência de vio- lência. Consideramos também que a fala da criança deve ser sempre valo- rizada quando esta relata estar sendo vítima de atos violentos. Na nossa experiência, a mentira por parte da criança não é comum. Caso ela esteja sendo orientada a contar fatos que não ocorreram, é também vítima (nesta circunstância, de abuso psicológico) e merece toda a atenção profissional. A avaliação da possível ocorrência de violência é geralmente feita por meio de entrevistas (com a criança, os familiares e outras pessoas que possam contribuir para a construção mais aproximada do que ocorreu) e, no caso dos serviços de saúde, complementada com exames físicos e labo- ratoriais pertinentes a cada caso, especialmente úteis para o diagnóstico diferencial com patologias que podem se manifestar com sinais e sintomas semelhantes aos da violência.

Alguns protocolos sugerem abordagens dos casos de acordo com ní- veis de gravidade. Como exemplo, citamos o da Rede de Proteção à Crian- ça e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência, de Curitiba, que propõe uma pontuação para classificação dos casos em níveis de gra- vidade leve, moderado e grave a partir da avaliação de fatores de risco relacionados à vítima, ao tipo de agressão, à família e ao provável autor de agressão. Apesar de propor esta forma de abordagem, Muraro (2008) res- salta que este sistema de pontuação deve ser entendido como um suporte, e não “como uma fórmula matemática exata”. Sugerem que o bom senso e a experiência do profissional prevaleçam sobre cálculos ou fórmulas, uma vez que se está lidando com questões extremamente delicadas. (MURA- RO, 2008)

De fato, na prática, são tantos os fatores que colaboram para que os casos sejam mais ou menos graves, que se torna difícil encaixá-los em classificações fechadas. Dentre os fatores que influenciam o impacto da violência na criança e na sua família, ressaltamos: o nível de desenvolvi-

mento psicológico e a idade da vítima; a capacidade de enfrentamento e de superação de adversidades (resiliência, tanto da criança quanto da fa- mília); a duração dos maus-tratos (de um modo geral, os crônicos deixam mais sequelas emocionais); o significado psicológico do autor da agressão para a criança (quanto mais próximo, pior para que a criança compreenda a violência cometida e as ações de responsabilização voltadas para ele); a natureza específica do abuso; a reação da família (para crianças muito pe- quenas, que não compreendem a dimensão do que lhes ocorreu, algumas reações de pessoas próximas à descoberta do abuso – agressividade, dese- quilíbrio emocional, separações bruscas – causam efeitos mais danosos do que os próprios atos suspeitos ou mesmo confirmados de violência); rede de apoio (quando presente é um elemento importantíssimo como fator mediador para diminuir os danos, especialmente quando nela há figuras de apego para a criança); mecanismos de compensação (tal como o afeto de outras pessoas).

Na nossa instituição não utilizamos a classificação de gravidade, mas acreditamos que ela ajude profissionais menos experientes ou que não disponham de equipe para uma avaliação mais aprofundada da situação de violência. O importante é que se consiga avaliar os riscos para o paciente (e, algumas vezes, para o familiar que está protegendo a criança) e decidir sobre o(s) foco(s) de atenção necessário(s) para abordagem adequada ao caso e a proteção de todos.

A notificação de casos suspeitos e confirmados ao Conselho Tutelar é obrigatória por lei para profissionais das áreas da educação e da saúde, sendo que esses últimos devem também encaminhar a ficha de notificação à Secretaria de Saúde, uma vez que a violência contra crianças e adolescen- tes é um evento de notificação compulsória.

A notificação precisa ser entendida pelos profissionais como uma ação protetiva para a criança e não uma ação punitiva para os autores da agressão. Só assim conseguirão fazer este procedimento de forma mais tranquila e segura, transmitindo esta mesma visão às famílias.

O preenchimento da Ficha de Notificação Individual/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou outras Violências em três vias é reco- mendável, sendo a original enviada ao serviço de Vigilância em Saúde/Epi- demiológica, da Secretaria de Saúde do Município; a segunda encaminha- da ao Conselho Tutelar e/ou autoridades competentes (Vara da Infância e

da Juventude ou Ministério Público); e a terceira via arquivada na Unidade de Saúde que prestou o atendimento.

O fato de não dispor da ficha de notificação não deve ser impedi- mento para a comunicação do caso, podendo o profissional enviar os dados (nome da criança, endereço e telefone, nome do responsável e a situação que suscitou a notificação) em um receituário ou mesmo diretamente por telefone ao Conselho Tutelar mais próximo à residência da criança. Outros canais federais para comunicação de violência são o Disque 100 (Disque Denúncia Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crian- ças e Adolescentes), o e-mail disquedenuncia@sedh.gov.br e o Disque 180 (Centro de Atendimento à Mulher).

Quando há violência física ou sexual grave, negligência nos cuidados de lactentes ou onde existe a possibilidade de as vítimas serem mantidas como reféns dos autores da agressão, as medidas de proteção podem ser so- licitadas de forma emergencial aos órgãos de proteção legal. Nesses casos, os serviços de saúde podem dispor da internação hospitalar até que outras medidas possam ser implementadas. Sendo indicado o afastamento entre a criança e o autor da agressão, a Justiça pode optar pelo acolhimento ins- titucional da vítima (abrigamento) caso não haja outras opções na família ou no meio social.

Além do esclarecimento da situação, da notificação e das medidas clínicas mais imediatas que porventura sejam necessárias (profilaxia de DST/HIV/hepatites, suturas, imobilização de fraturas, tratamento da sín- drome do estresse agudo etc.), é também neste momento inicial que se planeja o acompanhamento, propondo-se a LC mais adequada ao caso, de preferência em conjunto com a família. As necessidades biológicas, so- ciais e psicológicas, da criança e dos familiares, precisam ser contempladas, lembrando-se que nem todos os casos apresentam demandas dessas três ordens e que o peso de cada uma delas também é variável de caso a caso, além de mudar no decorrer do tempo em uma mesma situação.

Por fim, os profissionais precisam estar atentos para compreender as suas próprias reações durante os atendimentos. Negação, angústia, indig- nação, medo, revolta e dúvidas podem acontecer. Aprender a contorná-las, tentando superar ou lidar com elas de modo que não interfiram de forma negativa no trabalho desenvolvido, não é tarefa fácil. Trata-se de mais uma habilidade a ser desenvolvida. Caso se sinta desconfortável para lidar com