As narrativas dos jornais trazem à tona a percepção de que o primei- ro momento é de perplexidade e estranhamento em relação ao comporta- mento e às atitudes dos agressores, considerados a princípio como pessoas sobre as quais nunca houve dúvidas ou suspeitas acerca da sua conduta. Já o segundo momento, é marcado pela angústia diante do sofrimento e das mudanças que o sexo forçado pode ocasionar nas crianças ou adoles- centes, ao mesmo tempo em que surge o clamor por vingança e punição do acusado.
Sabe-se que a violência sexual contra crianças e adolescentes, muitas vezes, suscita as mais diversas reações dos membros da sociedade, inclu- sive reações violentas, como é o caso dos linchamentos e das agressões sofridas dentro da própria prisão, posto que os crimes de natureza sexual contra crianças são pouco tolerados entre os detentos.
A cobertura jornalística enfoca, principalmente, tentativas e con- sumações de linchamento contra agressores sexuais de crianças e adoles- centes e, no conteúdo da matéria, a autoria desta modalidade de violência coletiva é, em geral, atribuída a “populares”:
Um homem foi quase foi linchado por moradores da Favela do Brooklin, no bairro Luciano Cavalcante, na madrugada de ontem, e terminou sen- do preso ao fugir para um matagal depois de tentar estuprar uma menina de apenas oito anos. [...] Ele entrou no quarto onde a criança dormia sozinha, agrediu-lhe com um soco na boca e usou as mãos para que a
garota não gritasse. Em seguida, despiu a menina e se despiu. [...] Popu- lares começaram a bater no acusado, na tentativa de linchá-lo, mas ele se esquivou e conseguiu fugir para um matagal na Avenida Rogaciano Leite. (RIBEIRO; LOBO, 2010)
Enfatizando que os crimes sexuais atingem a honra não apenas dos envolvidos diretamente com este tipo de vitimização, mas da comunidade mais ampla, o caso a seguir ilustra o ódio que o ofensor sexual provoca, mesmo entre outros transgressores:
Está preso na Delegacia de Guaratinga (699 km, de Salvador) o comer- ciante T. D. S. 66 anos, acusado de pedofilia contra duas meninas de 11 anos, moradoras da cidade. Ele foi preso em flagrante no final de semana por policiais da Cia de Ações Especiais em Mata Atlântica numa casa onde estava com as crianças. Segundo a polícia, momento da prisão, o comerciante estava prestes a consumar o ato. (BITTENCOURT, 2009)
Após descrever o fato criminoso acima, o jornalista afirmou que o preso não foi ouvido diretamente pelo jornal e que o mesmo estava preso em cela separada, pois os demais detentos ameaçavam linchá-lo. Várias outras matérias trazem conteúdos análogos concernentes à exposição do agressor à ira dos cidadãos, evidenciando que socialmente o crime sexual contra vítimas infanto-juvenis, de algum modo, ainda está relacionado com a noção de ofensa à honra a ser restituída por meios violentos.
Considerações finais
Nas sociedades modernas, repletas de dispositivos e discursos sobre o sexo, a sexualidade assume proeminência com relação aos processos de identidade tendo relação direta com a construção do self. A cultura do “conhecer a si mesmo” impõe que os sujeitos elaborem as suas verdades sobre o sexo e a sexualidade, dimensões estas que, longe do se pensava, não estão determinadas pelo biológico e não constituem um dado natural, mas estão ancoradas precisamente na esfera sociocultural e, com isso, as con- dutas sexualizadas são traduzidas em termos prescritivos e normativos. (FOUCAULT, 2009) Destacando-se a importância da sexualidade para a subjetividade dos indivíduos, configuram-se os efeitos danosos que práti- cas sexuais forçadas mediante ameaças e uso da força podem provocar nos corpos infantis.
Em nosso estudo, destacam-se as disposições assumidas pela popu- lação de em realizar vingança privada como forma de infligir punição aos corpos dos transgressores sexuais. Em acontecimentos narrados na im- prensa, os agressores foram perseguidos e acuados por populares desejo- sos para fazê-los pagar com sofrimento físico ou mesmo com a morte, o mal que fizeram a vítimas inocentes. Tais atitudes têm como corolário a concepção bem discutida por Caldeira (2000) sobre o conceito de corpo incircunscrito, noção esta que revela uma ausência de convicções sobre os direitos civis na sociedade brasileira, com sua democracia incompleta ou dual.
Reconhecidamente, réus ou acusados de crimes sexuais são acossados pela revolta popular, ou por outros delinquentes homens, em delegacias ou em estabelecimentos prisionais, o que revela certo menosprezo pela inter- mediação institucional e disposições de ações no âmbito privado.
Disso resulta um quadro em que a violência aparece como solução para os conflitos interpessoais. De um lado, os transgressores sexuais sen- tem-se autorizados a apropriar-se de corpos infantis ou jovens para fins de prazer sexual, e por outro, quando o delito é descoberto, muitos passam a ser caçados e estigmatizados por seus feitos, alimentando uma espiral de violências e reatualizando normas em relação à honra.
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