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Embora os tipos de relações vicinais possam variar bastante e, em muitas vezes, os vizinhos convivam como estranhos, é possível observar a importância da vizinhança, principalmente nas áreas residenciais mais pobres, como bairros periféricos ou locais rurais. Nestas localidades, a pró- pria configuração das moradias facilita o encontro e o contato entre as pessoas, o que difere em relação às áreas de habitação de grupos sociais abastados, onde os grandes muros e a constante busca por segurança e privacidade acabam por favorecer a individualização dos moradores, que comumente se isolam em seus apartamentos e casas, restringindo-se à cir- culação somente naquele espaço protegido pelas cercas elétricas e câmeras de segurança.

Em contraste, as relações de vizinhança entre os moradores de áreas menos favorecidas adquirem dinâmicas diversas, sendo passível a confor- mação de relações de amizade e solidariedade. O emprestar uma xícara de açúcar, “olhar” as crianças enquanto os pais estão ausentes, emprestar dinheiro para o transporte ou participar de mutirões para “bater a laje” (construir casas) são casos característicos e ilustrativos de ajuda mútua em comunidades pobres. (ALMEIDA, 2004)

O vizinho pode, portanto, ser alguém muito próximo, com quem se compartilha atividades e situações do cotidiano, ou seja, se cultiva re- lações de reciprocidade. Nestas situações, a confiança estabelecida entre os vizinhos permite a liberdade de circulação nos respectivos ambientes

domésticos, assim como viabiliza o compartilhamento de situações da vida e cria uma esfera de intimidade/sociabilidade mais ampla do que aquela construída em torno dos próprios parentes.

É na sociabilidade construída cotidianamente que os diversos atores sociais vivem e convivem com seus iguais, participando de várias atividades em conjunto; principalmente quando estas estão voltadas para o lazer; se reunindo para resolver os problemas mais corriqueiros: como a falta de energia elétrica de algum morador ou socorrer algum vi- zinho que se encontra doente (neste caso, o vizinho se torna uma figura mais do que importante no convívio social). O bairro, desse modo, não é apenas uma demarcação territorial que divide a cidade – servindo para delimitar os espaços urbanos e o controle administrativo dos serviços pú- blicos e municipais – mas, antes de tudo, o bairro é a própria constituição de uma cidade, onde os moradores que nele habitam se identificam, se sociabilizam, criam laços afetivos e sentimentos de pertencimento. (AL- MEIDA, 2011, p. 339)

Entre outros fatores, as transformações na família, a condição so- cioeconômica e a falta de acesso a políticas públicas dirigidas à proteção da infância – a exemplo de espaços educacionais em tempo integral – mo- tivam, sobretudo indivíduos pertencentes a segmentos mais pobres da população, a lançar mão das redes de solidariedade no cuidado aos filhos pequenos. Nestes contextos, os vizinhos se constituem agentes que, ao lado dos pais, dividem a responsabilidade e o cuidado dirigido às crianças. No tocante a este aspecto, as matérias analisadas trazem elementos ilus- trativos destas situações em que diversos genitores contam com a ajuda dos(as) vizinhos(as) para cuidar seus filhos.

G. O.1 explica que a mãe da criança resolveu deixá-la na casa de uma vizi-

nha no final da manhã da quarta, como faz costumeiramente, enquanto iria centro da cidade para pagar umas contas. ‘As duas são bastante ami- gas e a vizinha praticamente cria a menina’. (SOUSA, 2010)

O olhar curioso e atento dos vizinhos, muitas vezes, pode ser útil à identificação de movimentos incomuns ou da presença de pessoas “suspei- tas”, bem como de algo que possa colocar em perigo algum morador. Nas matérias sobre violência sexual examinadas no estudo, foi possível obser-

1 Embora, de um modo geral, os jornais em tela no estudo tenham tornado públicos os nomes dos acusados e de outros personagens envolvidos ainda que indiretamente nos episódios de violência sexual contra crianças e adolescentes, a exemplo de familiares de vítimas e terceiros, as autoras

var a menção recorrente a inúmeras situações em que os vizinhos aparece- rem como protagonistas importantes, seja ao impedir a ocorrência de al- gum incidente violento, seja ao denunciar possíveis agressores, ou mesmo participar da perseguição a “suspeitos” que circulam na vizinhança.

“Uma vizinha teria ouvido os gritos da criança e decidiu ir ver o que estava acontecendo, quando, então, encontrou o menino já sangrando”. (RIBEIRO; LOBO, 2010)

Uma vizinha que passava pelo local do crime viu uma movimentação estranha e imediatamente localizou e avisou os pais da menor, que, cor- rendo para casa encontraram o suspeito lá. (FLAGRANTE..., 2010)

No caso abaixo, além de terem sido atores fundamentais na desco- berta da agressão sexual e na denúncia à polícia, os vizinhos ainda impedi- ram a fuga do acusado:

O pedreiro C. A. S. L., 42 anos, foi preso em flagrante na noite de ontem em sua casa no bairro Nova Esperança, em Juazeiro (500 km de Salvador) acusado de pedofilia. Ele estava com três crianças: duas irmãs de 8 e 11 anos, e um menino de 9 anos, quando vizinhos desconfiaram da longa permanência das crianças e resolveram ver o acontecia. ‘Nós ouvimos o homem mandando as crianças fazerem sexo, ensinando a colocar cami- sinha e mexendo nas crianças que estavam no quarto dele’, conta D. S. G., vizinha do acusado. Segundo ela, o pedreiro morava há três meses na casa e as crianças sempre vinham visitá-lo. Ao ouvir a conversa do pe- dreiro com as crianças na casa, os moradores decidiram chamar a polícia, ele teria tentado fugir, mas foi detido pela vizinhança. A Polícia Militar chegou com comissários da infância e levaram o homem e as crianças para a delegacia. Os pais foram chamados e as três crianças passaram por exames. (LAURA, 2009, p. A10)

Os agressores, em não raras as ocasiões, promovem lanches e brin- cadeiras infantis como forma de atrair as vítimas para dentro de suas re- sidências. As agressões não ocorrem exclusivamente na casa do abusador, mas podem acontecer também na própria casa da criança, pois, como já foi dito, a intimidade e a relação de confiança que se estabelece, em diver- sas situações, com o agressor, permite que este tenha livre acesso à casa das vítimas sem que isso pareça estranho e desperte suspeitas.

Se em muitos casos a figura do vizinho adquire um papel colabo- rador e complementar à família de origem da criança ou adolescente, em diversas outras circunstâncias toda essa proximidade e intimidade, como o

acesso fácil a casa, o “olhar a criança” na ausência dos pais é utilizada com intenções torpes. Isto é, aquele mesmo vizinho aparentemente prestativo e aliado, pode agir como um agressor e se aproveitar da relação de confian- ça com a família para cometer atrocidades, “portanto, a figura do vizinho pode aparecer como fonte de segurança, mas também de receios, o que não deixa de ser ambíguo”. (ALMEIDA, A., 2011, p. 350)

O fato de a criança “estar lá na casa do vizinho” ou “o vizinho estar olhando” não representa para muitos, sinal de perigo, ao contrário, pode representar alívio e sensação de segurança, pois a criança não está na rua e encontra-se sob os olhares de um adulto conhecido. A criança está pró- xima de casa e sob os cuidados do vizinho, aquele em quem se deposita confiança. São nessas ocasiões, aparentemente desprovidas de perigo, que algumas crianças foram submetidas a sevícias sexuais.

Além disso, vale lembrar que, pela proximidade, o “agressor que mora ao lado” conhece bem a rotina da família e dos moradores, o que facilita ter informações acerca, por exemplo, dos momentos nos quais a vítima está sozinha e da hora melhor para agir, sem maiores problemas.

Uma das matérias encontrados na pesquisa relata um caso no qual o acusado, que era vizinho e amigo da família das vítimas, conquistou a con- fiança e amizade das crianças e, por este motivo, a polícia teve dificuldades de acessar, por meio das crianças, informações acerca do fato em função dos vínculos afetivos que envolviam agressor/vítimas: “contudo, apesar destas informações, os dois meninos, por enquanto, não estão ajudando muito a polícia nas investigações, porque alegam gostar do aposentado”. (GARCIA, 2010, p. B9)

Os excertos que se seguem são ilustrativos de ocorrências de abuso sexual, tratados pelos jornais em foco neste trabalho, cujos personagens são crianças do sexo feminino e os acusados de protagonizar a violência sexual são vizinhos adultos que lançam mão de ameaças para assegurar o silêncio das vitimas e a continuidade dos abusos:

Segundo o pai da garota, o comerciante, que mora vizinho à casa da mãe dela, oferecia presentes para convencê-la a praticar sexo oral com ele. ‘Ele a levava para dentro de sua casa e abusava dela. Depois a ameaçava para que não contasse para ninguém o que acontecia’. Segundo o comerciário, os abusos ocorreram por seis meses. (COMERCIANTE..., 2010)

[...] O rapaz foi flagrado se lavando no banheiro de casa após ter abusado de uma menina de dois anos, por volta das 13h da quarta-feira. Um exa-

me de conjunção carnal feito na vítima, no Instituto Técnico-Científico de Polícia (ITEP) de Mossoró, comprovou a violência. O jovem é vizinho da mãe da vítima. (SOUSA, 2010)

Nas matérias estudadas, a grande maioria das vítimas de abuso é do sexo feminino e tem como agressores indivíduos adultos do sexo mascu- lino. No entanto, para as vítimas do sexo masculino, encontram-se agres- sores, por vezes, agindo em cumplicidade com outros homens e, nestes casos, o recurso à violência física é empregado em grau de intensidade proporcionalmente maior do que a infligida em meninas.