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No Brasil e também no contexto baiano, entre os anos 1990 a 2010, vem se entrelaçando, de modo particular e complexo, dois tipos de vio- lência estudados e enfrentados como fenômenos distintos até então: a violência contra a mulher praticada por parceiro íntimo e a criminalidade urbana. Essa trama de violências – uma típica da esfera da vida privada e a outra proveniente do mundo da rua – passou a se fundir nas histórias concretas de mulheres que vivenciam situações de violência doméstica.

Simultaneamente na imprensa, na música, no cinema e na literatura começou a ser veiculada a atração e o encantamento que certas lideranças do tráfico de drogas da periferia exercem sobre adolescentes de classes mé- dias.2 No Rio de Janeiro, os bailes funks se popularizaram como espaços que favorecem estes encontros e também estão abertos ao consumo de cocaína, dentre outras possibilidades. Em Salvador, a polícia já reprimiu várias celebrações que ficaram conhecidas na imprensa como “festas do pó”. Nestas ocasiões grandes quantidades de cocaína são distribuídas en- tre os convidados de ambos os sexos, jovens majoritariamente, apaixona- dos por música e dança, bem como interessados em estabelecer relações afetivo-sexuais.

As coreografias e as letras de axé e pagode produzidas na Bahia têm seguido uma linha de desvalorização do feminino, caricaturando median- te expressões chulas e vulgares as relações macho-fêmeas. Tais produções

2 A esse propósito, as músicas brasileiras desde meados do século XX vêm popularizando a imagem sofredora da “mulher de malandro”, aquela que suporta as irresponsabilidades do marido que dá lugar à crônica falta de recursos para alimentação da família e suas múltiplas traições amorosas. Posteriormente, na literatura e no cinema (a exemplo da película Salve Geral) retratam-se relações amorosas de mulheres das camadas médias e formação universitária com bandidos famosos, como “Marcinho VP” (BARCELLOS, 2003) ou “Marcola”.

musicais, inclusive já foram objeto de ato legislativo, aprovado em 2012 pelos deputados estaduais, e que se tornou conhecida como “Lei Antibai- xaria”.

O caso mais emblemático e que teve um desfecho trágico foi o pro- tagonizado por Kelly Sales Silva, assassinada aos 23 anos, no sexto mês de gestação, em circunstâncias ainda não esclarecidas no sistema de justiça,3 mas que levaram os policiais a formular, primeiro, suspeitas de crime pas- sional ou de crime de vingança motivada pela disputa de pontos de tráfico de drogas. Kelly obteve fama ao se tornar namorada de traficantes com atuações na Grande Salvador. Aos 17 anos se apaixonou pelo traficante Sidnei Ferreira, morto pela polícia em um assalto a transporte coletivo; em seguida, se envolveu com outro delinquente também morto ainda jovem em uma briga. Desta forma, sua breve biografia comportou várias separa- ções trágicas a começar pelo primeiro namorado de quem engravidou. Este se suicidou aos 17 anos, quando ela não mais quis manter o relacionamen- to com ele. Kelly tinha na ocasião 16 anos e, segundo seus familiares, tam- bém teve ideias suicidas. Ao namorar um rapaz membro de uma banda musical tornou-se conhecida como “Kelly Doçura”.

Foi apresentada ao grande público, aos 21 anos, ao ser presa em uma “festa do pó”, com foto estampada em jornais. A imprensa a batizou como “Dama do Pó” por sua associação amorosa com traficante e também cre- ditando a ela um papel atuante na venda da cocaína. A partir de então, tornou-se celebridade, posou com arma em punho e divulgou as fotogra- fias no mundo virtual. Por decisão própria, sua vida amorosa passou a ser gravada à pele sob a forma de tatuagens, algo bem peculiar ao universo jovem nos primórdios do século XXI. Aos 23 anos, seu corpo comportava 20 diferentes representações, compreendendo desde nomes de namorados, a gravuras pop como o coelho, signo da grife Playboy, Chucky, um dragão e a expressão que, na acepção dela própria, definia sua existência: “Vida Loka”.

Sua morte emocionou moradores das áreas periféricas, pois a garota tornou-se um ícone de sucesso por usar roupas de marca, o que lhe valeu o pseudônimo “Kelly Cyclone”. Seu perfil no Orkut era repleto de fotos

3 Em 20/12/2011 foi noticiado que o inquérito policial da morte de Kelly estava concluído e os acusados eram dois traficantes, irmãos, e a motivação do crime estava relacionada ao fato de que Kelly tinha iniciado uma relação amorosa com um rapaz também traficante de drogas, filho de um policial civil e membro de uma quadrilha rival a do traficante Tony, de que era ou foi namorado da

sensuais, registros de participações em show de pagode e declarações que a faziam um exemplo das novas personalidades jovens, cuja trajetória com- porta transgressões. Para a família, a garota tímida passou por uma ver- dadeira metamorfose ao namorar rapazes envolvidos com música e com o mundo do crime.

A superexposição da vida de Kelly também se verificou em relação à sua morte precoce e trágica, pois fotos do seu corpo no Instituto Médico Legal foram exploradas na internet. Seu túmulo virou local de visitação dos seus fãs, uma vez que ela se tornou admirada por pertencer ao gueto e ter se projetado como uma celebridade midiática.

Generalizando uma peculiaridade do assassinato de Kelly, é possível afirmar que as garotas que se envolvem com delinquentes sabem que na ausência destes, elas próprias serão alvo de traficantes rivais. Por conse- guinte, a vulnerabilidade para elas é máxima, porque se o parceiro for vio- lento nas relações íntimas, elas temerão denunciá-lo por este motivo, uma vez que ele já pode estar sob investigação por conta das atividades ilegais. Ademais, iriam expor o companheiro à polícia e isso, seja por quaisquer razões, pode ser interpretado, por outros membros da facção, como uma delação do grupo criminoso. Por outro lado, o fato de elas terem se apro- ximado da criminalidade acabará resvalando sobre si, pois se o parceiro for preso, por vezes, elas estarão implicadas – terão que assumir encargos arriscados para manter o empreendimento dele. Caso ele seja morto por parte de rivais ou da polícia, o que é algo de certo modo esperado, elas também poderão ser vitimadas. Deste modo, o “destino” parece reservar- -lhes uma vida breve e, por isso mesmo, os jovens envolvidos em carreiras criminais, sabendo-se vulneráveis, buscam o êxtase em tudo, ou seja, a vida é vivida em intensidade máxima.

Nexos entre a “velha” violência doméstica e a criminalidade de rua em suas diferentes modalidades já foram encontrados em trabalhos aca- dêmicos. Gomes (2009) entrevistando mulheres em situação de violência, residentes em Salvador, destacou depoimentos em que elas temem sepa- rar-se do marido agressor pelo fato de ele ser delinquente. O temor destas mulheres advém de saber que seu respectivo marido tem acesso fácil a armas de fogo e, como vive à margem das leis, em situações de conflito de foro íntimo, não hesitará em disparar uma arma contra ela.