• Nenhum resultado encontrado

ASYLO DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA: ABRIGO E EDUCAÇÃO PARA CRIANÇAS ENJEITADAS

2 ASYLO DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA

2.1 ASYLO DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA: ABRIGO E EDUCAÇÃO PARA CRIANÇAS ENJEITADAS

A Santa Casa acolheu muitas crianças abandonadas na Roda dos Expostos que funcionou no prédio do Recolhimento do Santo Nome de Jesus, localizado no centro histórico da cidade de Salvador. Por muitos anos, de 1716 a 1862, o Recolhimento, obra da Santa Casa da Bahia, abrigou a primeira experiência educacional da instituição, ainda que de forma precária e não sistematizada. Ao se aperceber a necessidade de um local adequado e higiênico para abrigar condignamente as crianças asiladas, foi iniciada, em 1862, a segunda experiência protecional e educacional na Santa Casa com a aquisição de um imóvel no Campo da Pólvora. Este momento é marco inicial deste trabalho de pesquisa, pois, desde então, as ações educacionais da instituição desenvolveram-se de maneira mais organizada e passaram a ser exercidas num espaço específico para os asilados.

A área conhecida como Roça do Campo da Pólvora, dispondo de árvores frutíferas e de um prédio construído em 1840, pertencera ao Conselheiro Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos, Barão de Monteserrat, que a vendeu para o Colégio Nossa Senhora dos Anjos (escola com internato para meninas pobres), da Associação São Vicente de Paulo, dirigido

1

pelas Irmãs de Caridade. De acordo com Costa (2001), as dificuldades financeiras vividas pela Associação levaram-na a aceitar a proposta de compra pela Santa Casa. A provedoria de Manoel José de Figueiredo Leite, devidamente autorizada pela Junta, realizou a compra em 11 de fevereiro de 1862, pelo valor de sessenta e seis contos de réis, além da quitação de débitos com os credores, que incluíam figuras importantes do cenário político, tais como o Barão de Cajahiba e o Conselheiro Almeida Couto.

A Ata da Mesa e Junta de 10 de janeiro traz textualmente o registro da compra do imóvel:

Ao novo asilo se dê o nome de Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia e sobre proposta do Irmão Definidor Moncorves e Lima - que o seu fim será - crear educar os Expostos de um e outro sexo, athé se dar a elles o destino, que for determinado em seu regimento, não podendo ser admitidos senão pela roda, e dos que existem até a edade de oito anos e sahi até doze, por deliberação da Mesa (ASCMB, Acta..., 1862, p. 95)

O júbilo da instituição não foi superado pelas providências que precisavam ser tomadas e assim conforme registro:

[...] estão pois satisfeitos os votos ardentes que fazíamos todos, de há muito, para um edifício que, reunido as condições indispensáveis ao desenvolvimento physico dos infelizes expostos nos habilitam também a melhor prover a respeito de sua sorte futura e mais de uma educação em harmonia com sua condição social, mormente no que respeita as meninas, hoje inteiramente isoladas do antigo Recolhimento, onde não somente nada tinham que aprender [...] (ASCMB, Acta..., 1862, p. 97).

Em 4 de março de 1862, a Santa Casa tomou posse do imóvel, o qual, devidamente licenciado pela Prefeitura, foi alinhado com as demais casas da rua, teve um muro erguido com dois portões e uma pequena casa térrea em cada extremidade. De um lado, ficou a casa2 destinada à instalação da Roda para receber as crianças enjeitadas; do outro, ficou a casa que serviria de moradia do Feitor, pessoa destinada a zelar pela roça e garantir a segurança do estabelecimento. Devido ao fato de ali serem abrigadas crianças enjeitadas ou expostas, o imóvel inaugurado com o solene nome de Asylo de Nossa Senhora da Misericórdia, passou a ser conhecido popularmente por Asylo dos Expostos, chegando a ser assim referenciado em documentos oficiais da instituição. (COSTA, 2001; ASCMB, Regulamento..., 1914).

A Roça do Campo da Pólvora, então Asylo dos Expostos, passava a abrigar pessoas movidas pelos mais diversos sentimentos: pela abnegação em atender e cuidar do próximo,

2

Em uma delas foi instalada a Roda e vale o registro que ela lá permanece até a presente data, com quatro janelas e o emblema da Misericórdia encimando a porta (COSTA, 2001).

em conformidade com as orientações cristãs, perpassando pela prática da caridade e do desprendimento de si mesmo; pela constatação da orfandade e do abandono mesclado no desejo de evasão, de ser como toda gente que possuía casa, família e aconchego; pelas vaidades mundanas de pertencimento a uma entidade seleta que também incluía o poder de mandar, de decidir e de ser obedecido.

No que dizia respeito ao espaço que servia de abrigo para as crianças, a Santa Casa era o que Goffman (1974, p.22) define por: “[...] ‘instituição total’ um híbrido social, parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal [...] em nossa sociedade são estufas para mudar as pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer do eu.” O conceito de Goffman (1974) indica a instituição total como o local em que os indivíduos moram e realizam atividades de lazer, corretiva ou terapêutica, de formação e educação, subordinados a uma equipe dirigente que gerencia o cotidiano do espaço, que funciona de forma semelhante a um Estado, enfrentando problemas diversos e que precisam ser administrados.

No dia 7 de junho, o Asylo começou, de fato, a ser ocupado por seus moradores.

[...] foram transferidas 134, que com 26 (menos uma já falecida), que na forma do contrato, recebera por aquela Associação, perfazem o número de 25, que hoje se abrigão no mesmo Asylo [...] todas as agraciadas tem sabido manter-se nos sentimentos de respeito e obediencia às suas superioras patenteando indisível contentamento em relação a mudança porque acabão de passar. (ASCMB, Acta..., 1862, p. 97).

Assim, de acordo com Costa (2001), que transcreve trechos da escritura de compra e venda do imóvel, ocorreu a transferência de vinte jovens internas que vieram do Recolhimento do Santo Nome de Jesus, da própria Santa Casa e também das vinte e cinco órfãs do Colégio Nossa Senhora dos Anjos, conforme acordado, ficando estas últimas subordinadas às regras da Santa Casa, a qual nenhuma obrigação tinha de conceder-lhes dote quando casassem.

A inauguração solene aconteceu no dia 29 de junho. Fazia-se necessário cuidar da administração e, para tanto, foi contratado inicialmente o serviço de dez Irmãs de Caridade. Era também imprescindível que se definisse um “[...] regimento acommodado ao seu destino” e em sessão realizada no dia 21 de junho de 1863, o Regulamento3 foi aprovado pela Junta. Dispondo de 49 artigos, ele balizava toda a conduta a ser adotada em todas as ações e dependências do Asylo. Ao longo do tempo, as necessidades de benfeitorias e de reparos se

3

O recorte cronológico da pesquisa abrange a existência de dois Regulamentos do Asylo: o da sua fundação, datado de 1863, e o do ano de 1914.

fizeram sentir no espaço físico para se tornarem cada vez mais adequadas ao abrigo de sua clientela, algumas delas, inclusive, solicitadas pelo médico do Asylo, Dr. Salustiano Ferreira Souto, ao Mordomo Arnaldo Lopes da Silva Lima, como a construção de varanda para evitar que amas e irmãs se molhassem e fossem acometidas de “frequentes bronquites”. O médico pediu também instalação de tubos para evacuação de esgotos, de águas pluviais e servidas (ASCMB, Relatório..., 1886-1887, p. 32).

Seria exaustivo enumerar todas as providências tomadas, mas algumas delas mereciam o registro por conta da demonstração de cuidados que a instituição tinha para com os asilados, mesmo enfrentando dificuldades financeiras. Em 1889, foi concluída a varanda ligando a casa grande à casa de amamentação das crianças, denominada Asylo São Joaquim, bem como as benfeitorias nos banheiros, nas latrinas e nos esgotos, além da enfermaria, completando-se com caiação e pintura. Diz o Provedor João Bernardino Franco de Lima:

[...] autorisei mais a factura de tres latrinas nos dormitórios das meninas, iguais as que se fizerão no Hospital de Nazareth, com colunas de ferro e cobertura de zinco [...] latrinas estas há muito reclamadas pela conveniência de alterar-se o serviço de conduzirem-se canecas de despejo todos os dias, que davão em resultado cahirem com elles pelas escadas as pobres meninas. (ASCMB, Relatório..., 1889-1990, p.82).

O Mordomo das Obras, Gustavo Adolpho Pereira da Silva, registrou no biênio administrativo de 1905 a 1906: “[...] com o Asylo dos Expostos, gastaram-se 45:327$483, tendo-se colocado novo fogão, banheiros, latrinas, beneficiado a Capella, e a casa que serve de escola para os desamparados.” (ASCMB, Relatório..., 1905-1906, p.5). A instituição, buscando acompanhar as idéias higienistas que então vigoravam, conforme já relatado no primeiro capítulo, investiu nas reformas indicadas como necessárias à saúde física dos asilados. O trabalho do Asylo recebia o aval e a ajuda da Companhia do Queimado, responsável pelo fornecimento gratuito de água, e foram abertas mais quatro penas d’água. As obras foram consideradas tão significativas que, em 6 de novembro, o Asylo foi aberto a visitação. Em 1914, ocorreu a aprovação do novo Regulamento. No ano de 1917, sob a Mordomia de José de Sá, as reformas foram intensificadas para propiciar o saneamento do corpo central do edifício, que passou a ser considerado insalubre, devido às emanações da canalização do esgoto, viciando o ambiente. Além disso, foi construído um novo estábulo para as vacas que forneciam o leite indispensável à alimentação infantil e nos dormitórios dos expostos foram colocadas bandeiras para melhorar a ventilação (ASCMB, Relatório..., 1917-1918, p. 117).

Em 1919, a Escola Interna passou a ser chamada Escola José de Sá, em homenagem ao Mordomo do Asylo, falecido no ano precedente, pelo trabalho realizado (ASCMB,

Relatório..., 1919-1920). A cada ano recomeçava uma nova etapa de trabalho para a instituição e seus dirigentes e, principalmente, para as crianças e jovens que ocupariam quartos, pátios, alamedas, refeitório e as salas de aulas. Cada um dos segmentos de pessoas que ali transitavam desempenhava papéis importantes e ocupava uma posição indispensável ao funcionamento do Asylo. Assim sendo, vale a apresentação da gente que diariamente vivia e trabalhava nos espaços destinados ao acolhimento das crianças expostas.