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Pessoal docente: professoras e outras mestras

2 ASYLO DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA

COR MENINAS MENINOS TOTAIS

3 ESCOLA INTERNA DO ASYLO DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA

3.2 CRIAÇÃO DA ESCOLA INTERNA DO ASYLO: HISTÓRICO, FINALIDADE E CLIENTELA

3.2.2 Pessoal docente: professoras e outras mestras

Nóvoa (1995, p.15), ao estudar o nascimento da profissão de professor, afirma que surgiu “no seio de congregações religiosas” que terminaram por configurar “[...] um corpo de saberes e de técnicas e de valores específicos da profissão docente”. Não se pode menosprezar a importância de tal arcabouço de conhecimentos, utilizado inicialmente pela Igreja e depois pelo Estado em espaços destinados a tal fim. A escola, como local estabelecido para a educação das crianças, onde os saberes são difundidos de forma predominantemente escrita, é também o espaço em que elas aprendem as normas sociais ligadas ao corpo: higiene, controle das necessidades fisiológicas, entre outras.

Mostrou-se que no espaço asilar e sua Escola Interna a criança exposta mantinha o primeiro contato com as mulheres encarregadas de sua formação intelectual e moral. Foram as Irmãs de Caridade72, em sua maioria de nacionalidade francesa, que desempenharam tal papel, vistas e aceitas como referenciais femininos para crianças sem mães. Tais crianças poderiam também contribuir com uma parcela de oportunidade de afloramento de um amor materno não realizado na carne.

A relação estabelecida entre as crianças e as Irmãs e Caridade era constante, com destaque para a que se estabelecia na sala de aula. Foucault (2007, p. 155), ao estudar o espaço escolar, afirmou que “[...] a escola torna-se o local de elaboração da pedagogia”. No espaço da Escola Interna, como em outras instituições similares, a “elaboração da pedagogia” estava concentrada nas mãos dos dirigentes e professores, que compunham o grupo dos controladores. No caso das Irmãs de Caridade, as primeiras professoras por tão longos anos, eram as zeladoras das crianças pequenas, mestras dos escolares, orientadoras da formação moral de todos os meninos e meninas que viviam da caridade institucional e precisavam ser preparados para o mundo, para a execução de tarefas nas lavanderias, cozinhas, oficinas de artesanato, carpintaria, entre outros locais.

Ainda que nunca tenha atuado na Escola Interna, vale o registro de que a primeira professora da Santa Casa que não era Irmã de Caridade foi Maria d’Assumpção Lessa, nomeada pelo Provedor Manoel de Souza Campos para a Escola Elementar inaugurada em 21 de fevereiro de 1901, na sede da Repartição Central, na Rua da Misericórdia, no centro histórico de Salvador.

A primeira professora a atuar na Escola Interna do Asylo e segunda contratada pela Santa Casa, foi Maria Magdalena Landulpho73. No dia 5 de março de 1913, por deliberação da Junta, foi criada uma cadeira mista primária para os expostos e assim, conforme relatou o Provedor Teixeira Gomes: “[...] por acto de 13 de março nomeei para reger a cadeira mixta primaria, criada pela Junta, no Asylo, a alumna mestra D. Maria Magdalena Landulpho.” (ASCMB, Relatório..., 1913, p. 43).

Com tal medida, ele esperava corrigir a educação propiciada aos expostos, considerada deficiente em escrita, leitura e aritmética, conhecimentos considerados indispensáveis na formação intelectual e na futura ocupação de espaços no mercado de trabalho. Desta vez não houve repetição de oposição da Superiora, como em 1898. Sinal dos tempos e do pulso firme

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Não foram obtidos informes sobre grau de escolaridade, idades e idiossincrasias das Irmãs de Caridade.

73 Maria Magdalena atuou até o ano de 1924, quando solicitou exoneração ⎯ concedida pela Portaria nº 9, de 18

do Provedor, que não tergiversava no que compreendia como benéfico e necessário para o êxito da instituição.

É fato que o Provedor exercitou o poder que dispunha, já que este somente existe nas relações de poder, pois, como diz Foucault (1998, p.91), “[...] onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder”.As resistências presentes na trama social, de que trata Foucault (1998), revelaram-se na vida do Asylo no momento do desacordo entre o Provedor e a Superiora, figuras representativas da instituição.

A professora Magdalena permaneceu atuando com as aulas para os meninos no turno da manhã e para as meninas pela tarde, esforçando-se para prepará-los para os exames finais em 1914; nenhum menino sequer foi considerado apto, enquanto as meninas foram submetidas a exame de conhecimentos das matérias que seguiam o programa oficial de ensino e lograram aplaudidas aprovações. Em 1919 a Professora Luiza Aboim de Barros74 passou a servir na Escola Interna, onde atuava Maria Magdalena Landulpho.

A Santa Casa priorizava a mulher para a função docente e tal fato estava em perfeita consonância com a concepção de que ela era talhada para educar e cuidar. De acordo com Carvalho (1998, p. 213):

Uma vez que o modelo bipolar das relações de gênero pressupõe uma associação entre feminilidade e mulheres, de um lado, e masculinidade e homens, de outro, há uma pressuposição de que as mulheres estariam mais à vontade para lidar com as pressões emocionais da docência e para estabelecer vínculos afetivos com os alunos.

Seria incompatível com o pensamento do final do século XIX e início do XX imaginar um homem com condições financeiras e socioculturais consideradas satisfatórias se interessar em lecionar para crianças. Isto cabia aos homens com pouco prestígio social e poucas possibilidades de ocupar posições destacadas. Uma possível causa da desvalorização do magistério pode estar ligada ao fato de que, cada vez mais a atividade estava se popularizando e atendia a pessoas de baixa renda e de condição social considerada inferior.

Olhando por tal prisma, existia a demarcação de competências entre o que era atividade adequada para homens e para mulheres nas esferas pública e privada, pois, como escreve Passos (1999, p.119): “[...] a distribuição desses papéis por sexo, explicada conforme uma lógica da naturalização de situações sociais, serve para demarcar os limites da masculinidade e da feminilidade.” Eram mulheres cuidando das crianças expostas, num

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A Professora Luiza Aboim de Barros foi nomeada em 1914 para ministrar aulas na Escola Externa (ASCMB, Relatório..., 1914, p.3).

espaço “fechado”, subordinadas às figuras masculinas do Mordomo e do Provedor, detentores de poder superior ao delas, mesmo da Superiora e das professoras diplomadas. Conforme registrado, a vida no Asylo incluía a educação formal tradicional e também, conformando-se aos ideais republicanos, propunha-se a preparar os asilados para a vida prática. Ainda que enfrentasse dificuldades ⎯ desde a falta de pessoal profissionalizado até a carência de recursos financeiros ⎯, a instituição dispunha sempre de mestras dos ofícios e das prendas para meninos e meninas.

Contando inicialmente apenas com as Irmãs de Caridade no desempenho desta tarefa, com o passar do tempo outras personagens ajudaram a compor o cenário da vida escolar/asilar, tais como Maria José de Matos, mestra de prendas domésticas, Maria José de Moraes, dirigente da sala de costuras e encarregada da disciplina, vigilância e asseio geral (auxiliar e futura substituta de Amélia Rodrigues) e que contou com o auxílio de D. Marta Ramos; Judite de Morais, auxiliar de D. Amélia; D. Maria da Gloria Mattos, que dirigiu a secção de meninos crescidos de 6 a 14 anos, “[...] alguns dos quais anormais e incapazes de qualquer proveito intellectual” (ASCMB, Relatório..., 1914, p. IV) e a senhorinha Noélia Lanat que, gratuitamente, ministrava aulas de pintura e desenho.

A posição e o papel de cada uma das mestras de prendas, costuras, artes, assim como das demais encarregadas estavam em pleno acordo com a organização social de um estabelecimento que pretendia fornecer uma educação “acomodada à situação” social dos expostos: cada uma dessas pessoas, a seu modo e de acordo com suas concepções de mundo, contribuiu com o processo educativo das crianças, ainda que muitas delas talvez não tivessem formação intelectual destacada. Certamente, pertenciam a camadas sociais que precisavam trabalhar para viver, buscando ganhar dignamente seu sustento. Tem-se também o exemplo da professora que ministrava gratuitamente as aulas de pintura e desenho, talvez em razão de seu espírito altruísta somado à condição financeira confortável.

De acordo com Passos (1999, p.147): “[...] a sociedade baiana até os anos 60 não aprovava o trabalho feminino, vendo nele uma forma de desvalorização da mulher e de desrespeito às suas ‘tendências naturais’.” Contudo, como a citada autora reflete, a profissão de professora era aceita e reconhecida; afinal, como mulher “combinava” com maternagem, cuidado com crianças, idosos e doentes, as Irmãs, professoras e outras mestras que povoaram o universo do Asylo cumpriam tarefas educativas e cristãs para o bem-estar de crianças expostas e por isso mereciam a aprovação social.

A sociedade que as aplaudia, reconhecia seu trabalho educativo, mas também, por acreditar que elas eram inferiores aos homens, as confinava aos espaços não ameaçadores

como o lar, a escola, o convento, o hospital. Em todos eles sua posição era de subordinação, invisibilidade, emudecidas e operantes, servindo a uma ordem social demarcadora e definidora de status e papéis.