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Comemorações, lazer, saídas e visitas

2 ASYLO DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA

COR MENINAS MENINOS TOTAIS

3 ESCOLA INTERNA DO ASYLO DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA

3.2 CRIAÇÃO DA ESCOLA INTERNA DO ASYLO: HISTÓRICO, FINALIDADE E CLIENTELA

3.2.3 Comemorações, lazer, saídas e visitas

Ao longo do processo civilizatório, o homem celebrou a vida e a morte. No universo da Escola Interna também ocorreram momentos festivos e eram esperados com ansiedade e alegria pelo contingente de asilados. Eram ocasiões de celebrações, festejos alegres e bem organizados, que deveriam levar um pouco mais de calor humano e espontaneidade a todos daquele micro universo.

As festas religiosas eram comemoradas infalivelmente: mês de Maria, Natal, Páscoa, entre outras. Afinal eram momentos em que o ensino religioso, parte visceral da Educação Tradicional, materializava-se em cânticos, orações em grupo, decoração festiva para louvar e agradecer a Deus, ouvir a pregação do capelão exortando todos às boas ações, à gratidão, aos pensamentos puros, amor ao estudo, à pátria e à obediência. A celebração da primeira comunhão era uma ocasião de regozijo religioso e social: era o solene acontecimento do primeiro contato com Jesus no sacramento da Eucaristia. A preparação para este momento se dava na catequese, que era também o momento de contactar com outras pessoas. As crianças, ao viverem aquele momento tão singular e esperado, deveriam sentir-se de fato cristãs, com toda a carga de compromisso e responsabilidade pregada por suas catequistas.

O aniversário do Asilo era uma data marcante, comemorada com solenidade. Como instituição católica, o festejo começava com celebração religiosa e com a presença de autoridades, como se constata nos Relatórios, a exemplo do transcrito a seguir:

[...] a presença de Exm.Sr. Cons. Teodoro Machado Freire Pereira da Silva, MD presidente da Província, do Exm Sr Marechal Hermes da Fonseca, MD comandante das Armas, Mesários, Definidores e outras pessoas gradas de nossa sociedade. O sacerdote que officiou foi o Rvmº. Cônego Dr. Romualdo Maria de Seixas Barrozo.

Finda a cerimônia religiosa, o Exmº. Sr Presidente da Província procedeu, a meu pedido, a distribuição dos prêmios concedidos às meninas pelo Jury d’exames, sendo este acto abrilhantado pela Banda de Música da Polícia, que se achava presente. A meza trocaram-se vários brindes, sendo o último levantado em honra da Irmã Lasnier, MD Superiora do estabelecimento e suas não menos dignas companheiras. (ASCMB, Relatório..., 1886-1887, p.32).

Apenas motivos de força maior, como realização de obras no imóvel, ocorrida em 1890, impediam a comemoração do aniversário da instituição. Outras comemorações também ocorriam na Escola Interna, como a de 26 de janeiro de 1919, primeiro aniversário de morte de José de Sá, antigo Mordomo e patrono da escola.

As crianças do Asilo receberam um presente em 15 de novembro de 1923, com uma festa a elas especialmente dedicada pelo Colégio Soteropole, da Professora Semirames Barbuda, cuja programação segue descrita:

Discurso = Helena Tavares Hymno Nacional = todos alumnos Mamãe não deixa = Days Couto A casa = Athayde Madureira A boneca = Clotilde Ferreira

Um pensamento = Ithamar Barbuda (ASCMB, Relatório..., 1925-1926, p. XI)

Ainda que o programa não indique se algumas apresentações foram de música ou poesia, as crianças certamente gostaram de um dia fora da rotina, do convívio com outras crianças, dos doces, bombons e brinquedos oferecidos.

Uma comemoração bastante detalhada foi a que ocorreu quando da inauguração da Sala de Estudos e Biblioteca, em 1924, com a participação dos alunos em manifestações artísticas, conforme o Programa da Festa de Inauguração:

I Parte: “Toast”- Hetter piano: Adriana; Discurso: Lindaura

A melindrosa (cançoneta): Esmeralda; A mão do sacerdote (poesia): Maria O Batalhão: por um grupo de meninos

II Parte: “Lê rêve d´une jeunne fille” Charles Acton, piano: Adriana

Tolice? (poesia): Hercelina; Os três mosqueteiros (cançoneta): Balthazar, Agricio e Francisco;

Na esparella (poesia): Higina; O almofadinha (canto): Maria

Hymno Nacional, piano: Adriana (ASCMB, Relatório..., 1925, p. XII)

Algo que deve ter sido cercado de muita expectativa foi o casamento, em 18 e abril de 1925, de uma asilada “Eusebia de Mattos com o Sr. Raimundo Meira Magalhães, abastado fazendeiro em Jequié, deste Estado”, assim como, em 10 de abril de 1926, o de “Lyndaura de Mattos com Joaquim Nunes de Silveira, músico do primeiro corpo de Polícia do Estado” (ASCMB, Relatório..., 1925-1926, p.38). Não foram localizados documentos que indicassem detalhes das cerimônias.

A vida dos asilados era controlada com atenção pela Superiora, fosse ela Irmã de Caridade (até 1913) ou não. Ela não permitia saídas das crianças sem um rigoroso sistema de vigilância e segurança e era imprescindível saber com quem iam, local, data e hora para o

retorno, ainda que a criança saísse com parentes. Havia o prazo para que não faltassem às aulas e a suas atividades rotineiras, visando à manutenção dos hábitos e da postura que lhes eram ensinados.

As visitas de pessoas estranhas só eram possíveis mediante autorização expressa da Superiora. Ainda que a visita tivesse um caráter de estudo, ela podia ser negada, conforme pode ser lido:

Havendo requerido o Dr. Ezequiel C. de Souza Britto autorisação da provedoria para visitar diariamente a uma hora certa o asylo dos Expostos afim de colher maior numero de observações clinicas, visto ter de se submeter a concurso para a especialidade, em março ou abril, ouviu a Provedoria à Irmã Superior, que, em sua informação de 16 de janeiro, diz que acha este pedido incompatível com a ordem do estabelecimento, que não é um hospital, e completamente opposto ao regimem interno das meninas, que tem sido sempre rigorosamente respeitado; em vista do que a Provedoria, por despacho de 22 do dito mês, indeferiu o pedido. (ASCMB, Relatório..., 1889-1890, p. 82).

O que certamente era esperado com alegria pelas crianças era o período de férias passado à beira-mar, numa evidente compreensão da instituição dos benefícios físicos e emocionais para elas:

A casa grande situada na enseada de São Tomé de Paripe, subúrbio desta cidade, tem sido utilizada para o veraneio dos meninos no período de férias escolares. O desenvolvimento que apresentam depois da estação de férias à beira-mar é tão animador, que a referida propriedade nos parece ter recebido aplicação acertada (ASCMB, Relatório..., 1933-1934, p.29).

Bem vindas eram as visitas de familiares, professores e autoridades durante as exposições, realização de exames, celebrações, enfim, em situações previamente definidas, que não alterassem a rotina de atividades e pudessem atestar a limpeza, a ordem, a disciplina da casa e o aproveitamento dos alunos. Pode-se afirmar, em concordância com o entendimento de Goffman (1974), ao estudar as instituições totais, que tais visitas, mesmo benéficas, tinham o condão de lembrar aos alunos da Escola Interna que eles ali estavam confinados e que “lá fora” existia um outro modo de vida diferente do seu. A Provedoria preocupava-se com as visitas feitas sem data marcada e para corrigir tal situação a Superiora propôs a regulamentação “[...] de modo que se evite a freqüência que havia, e que pode prejudicar a ordem e a disciplina indispensáveis ao estabelecimento” (ASCMB, Livro..., 1877, p.12). A situação ficou ainda mais definida com a determinação da visita ser autorizada pelo Provedor (ASCMB, Livro..., 1891-1895)75.

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Para melhor contextualização do que ocorreu nas décadas seguintes com a Escola Interna e seu alunado, vale relembrar que o Asylo continuou com suas atividades de receber crianças pela Roda e abrigá-las. Apesar dos esforços empreendidos pelas sucessivas Provedorias, a situação sanitária da casa foi duramente questionada em 1924, por Dr. Joaquim Martagão Gesteira, diretor da Inspectoria de Hygiene Infantil, que considerou inadequadas várias ações dentro do espaço para as crianças pequenas e criticou o desaparelhamento e irregularidades. O então Provedor Newton de Lemos tentou corrigir, com reforma dos espaços e serviços (ASCMB, Relatório..., 1924-1925). No bojo de sua crítica às instalações, Dr. Joaquim Martagão Gesteira propôs uma radical alteração: a extinção do sistema da Roda e a abertura de um escritório de admissão das crianças, além da criação de uma pequena creche, já que ele considerava como um serviço altamente necessário às mães pobres, que precisavam trabalhar e não tinham com quem deixar os filhos pequenos.

Na concepção de Dr. Martagão, com a extinção da Roda haveria uma significativa redução do abandono das crianças, que não mais seriam ali depositadas no anonimato e clandestinidade, mas sim levadas à luz do dia por seus parentes, que deveriam informar os dados de registro da criança, as razões do abandono etc. Em 31 de março de 1925, foi inaugurada a creche, que contava com a participação dos médicos da Liga Contra a Mortalidade Infantil76 fundada por Dr. Martagão Gesteira (RODRIGUES, 2003, p.118). A participação dos médicos e dos Governos Estadual e Federal não bastou para que se modificasse o preocupante panorama da mortalidade infantil na instituição, o que levou Dr. Martagão e seus colegas a um grande empenho na extinção da Roda. Isto preocupava a Santa Casa, temerosa de que aumentasse a população de crianças pobres no Asilo.

O ano de 1934 foi marcado pelas discussões na Junta sobre o problema, conforme a Ata de 25 de julho, que chegou a aprovar a instalação do Escritório Aberto de Admissão, devidamente orientado por um Regulamento e inaugurado em 5 de agosto, mas ainda funcionando paralelo à Roda. O Regulamento definia idade (6 meses), peso e tamanho da

76 As constatações do alto índice de mortalidade infantil em Salvador ⎯ 227 por 1000 ⎯ levou Dr. Martagão

Gesteira, com o apoio de médicos como Prof. Alfredo Magalhães, Álvaro Bahia, Álvaro Rocha, Durval Gama Hélio Ribeiro e o comerciante português Carlos Levindo Pereira, a criar a Liga Baiana Contra a Mortalidade Infantil, oficialmente fundada no salão nobre do Liceu de Artes e Ofícios no dia 17 de junho de 1923, no andar térreo do Liceu de Artes e Ofícios, então Freguesia da Sé. O evento contou com a presença de 30 pessoas. Em 15 dias, a contar da data de publicação do estatuto em Diário Oficial, cerca de 200 adesões somavam-se à instalação da instituição filantrópica, que começou efetivamente as atividades no dia 12 de outubro do mesmo ano, dando origem à comemoração do Dia das Crianças na Bahia e no Brasil (CARVALHO, 2006, p.4). Segundo Rodrigues (2003, p. 105): “No ano de 1925, a Liga Contra a Mortalidade Infantil começou a agir dentro do Asilo, impondo ao mesmo não apenas reformas físicas como também uma participação mais efetiva dos profissionais de saúde na vida cotidiana dos asilados.”

criança e estipulava estrita observação à situação econômica do Asilo e sua capacidade de acomodação das crianças, a saber: por mês só poderiam ser admitidas até doze.

Rodrigues (2003, p. 120) define a situação vivenciada com as mudanças:

A modernização do Asilo, efetuada através de modificações no sistema de admissão, possibilitou o oferecimento de uma assistência mais eficiente, porém, paralelamente, restringiu o alcance social. A filantropia e não a caridade guiava os passos da administração da instituição. A partir desta data, a assistência filantrópica da Misericórdia procurou selecionar os seus assistidos.

Com a desativação da Roda, em 1934, conforme a Ata do mesmo ano, encerrou-se um capítulo que remontava ao passado. Novos espaços foram inaugurados para o recebimento das crianças que não mais perdiam o vínculo e o contato com suas famílias. As crianças expostas remanescentes continuaram na casa até a colocação em empregos, ainda que menores de idade, numa clara exploração do trabalho infantil, ou até o alcance da maioridade ou casamento.

Mesmo reconhecendo sua imensa importância, a questão da Liga Baiana Contra Mortalidade Infantil, extrapola o objeto desta pesquisa. Assim, com o fechamento da Roda do Asylo da Misericórdia, fecha-se o ciclo desta pesquisa, que não tem a pretensão de dar conta do que aconteceu com todos os meninos e meninas que ali estavam em 1934, no que se chama de “terceiro momento da Escola Interna”, em que condições viveram, se freqüentaram a escola, teceram ou tiveram tecidos os novos rumos de suas vidas.

De acordo com Costa (2001), a Escola Interna José de Sá continuou funcionando no formato tradicional ao longo dos anos, nas salas do pavimento térreo do edifício principal. Na penúltima década do século XX foi conveniada com o Estado e oficialmente criada pela Portaria 8.787, publicada dia 28 e 29 de setembro de 1985 no Diário Oficial do Estado da Bahia. Funcionou em onze salas no prédio da Pupileira, no Campo da Pólvora: no turno matutino funcionavam as turmas de Alfabetização I e II, e da primeira a terceira séries; à tarde, funcionavam as turmas de quarta a oitava séries. Pelos termos do Convênio, as vagas foram preenchidas eqüitativamente com alunos internos do Asylo e externos, com as aulas ministradas por onze professoras do Estado e uma da Santa Casa. A escola foi extinta29 pela Portaria 3.206/92 (BAHIA, 1992).

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Infelizmente, o Setor de Escolas Extintas, que funcionava na Secretaria de Educação do Estado, no Centro Administrativo, sofreu profundos estragos com o incêndio ocorrido em 2003, razão pela qual os funcionários Aurélio e Genebaldo, do referido Setor, reinstalado no prédio do Instituto do Cacau, no bairro do Comércio, pouca coisa tiveram a oferecer para esta pesquisa.

Pelo exposto, fica evidente que a compreensão do histórico da Escola Interna exige que se leve em consideração a base filosófica da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, pautada na caridade cristã, extrapolando seu Estatuto, que não previa escolas formais. A Escola Interna teve significativo papel na vida de meninos e meninas enjeitados que eram abrigados no Asylo dos Expostos, onde eram educados dentro dos conceitos católicos e sob o rigoroso controle da Santa Casa de Misericórdia. No contexto educacional baiano, a Escola Interna contribuiu, com sua ação, para reduzir o analfabetismo e ali, em seus espaços, buscou disciplinar, moldar caráter, propiciar lazer e princípios morais às crianças, visando prepará-las para o trabalho e para a formação de famílias adequadas à condição social a que pertenciam. O capítulo seguinte vai descortinar a prática pedagógica da escola Interna e as suas conseqüências na formação de meninos e meninas que viveram no Asylo da Misericórdia

SALA DE AULA DA ESCOLA INTERNA

Acervo do Arquivo da Santa Casa de Misericórdia