• Nenhum resultado encontrado

CORPO DE PESSOAL E ADMINISTRAÇÃO DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA

1 SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA E SEU CONTEXTO HISTÓRICO

1.2 CORPO DE PESSOAL E ADMINISTRAÇÃO DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA

Como já dito, a Santa Casa era totalmente regida por seu Compromisso (Estatuto) que regulava o cumprimento dos 14 Compromissos corporais e espirituais, funcionamento administrativo, estabelecia regras normativas para seus membros, para admissão, permanência, ascensão aos postos, enfim, direitos e deveres dos integrantes.

Como já citado, desde a sua fundação até a presente data a SCMB obedeceu ao Compromisso, editado nos seguintes períodos: 1516 e 1618 (que regiam a Misericórdia de Lisboa); 1896; 1958; 1966 (registrado em 1967); 1983 (mesmo teor do anterior); 1996 e 2002. Este estudo abrange a vigência do Compromisso inicial, de 1516, com dezenove capítulos; o de 1618; e o de 1896. O estatuto inicial, que vigorou de 1516 a 1618, ainda que em período anterior a este estudo, será apresentado sucintamente, para melhor compreensão da estrutura de poder da Santa Casa, que era formada pela Irmandade que compunha os órgãos denominados de Mesa e Corpo de Guardiães (RUSSEL-WOOD, 1981).

A Santa Casa corporificava-se em sua Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia14, ou seja, nos Irmãos, homens que a faziam atuar e, por meio dessa atuação, referendavam-se como pessoas de importância no cenário social. Pertencer à Irmandade da Misericórdia, em Salvador, era sinal inequívoco de aceitação e reconhecimento social, em que estavam imbricados orgulho, vaidade, prestígio e poder pessoal ou familiar. De acordo com Russel- Wood (1981), na intrincada rede social da cidade, a Misericórdia destacava-se; portanto, pertencer ao quadro de sua Irmandade conferia ao indivíduo a satisfação de íntimos desejos de ocupação de posição de respeito e reconhecimento públicos.

14

Segundo Reis (2000), as Irmandades existiam como associações corporativas que desenvolviam internamente um conjunto de ações que as levavam a atingir posição, identidade e comunhão, algumas chegando a ter grande destaque social.

A Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia, de acordo com Russell-Wood (1981), tinha, inicialmente, o número de 100 Irmãos, ou seja, homens que a compunham e davam cumprimento a suas ações e responsabilidades. Os irmãos pertenciam a duas classes: “irmãos maiores” (gentis-homens e profissionais da classe social considerada superior) e “irmãos menores” (plebeus, oficiais mecânicos). A Irmandade, desejosa de preservar seus traços de supremacia, pureza e religiosidade, valores altamente representativos da estrutura social baiana, atinha-se a preconceitos de cor, credo e classe social. Assim, qualquer aspirante à condição de Irmão era submetido a um inquérito social rigoroso e minucioso, cujo resultado era aguardado com expectativa e ansiedade, já que poderia significar inclusão num grupo seleto e conceituado. Pertencer a uma irmandade religiosa, fazer testamento doando bens para caridade e desejar sepultamento honroso e cristão eram idéias presentes no imaginário e na vida social de todo católico praticante, ou mesmo dos desejosos de aparentar posição social. A Irmandade da Misericórdia oferecia o cenário ideal para tais desejos! (RUSSELL-WOOD, 1981).

A Irmandade possuía também um pequeno corpo de empregados formados por um capelão, dois padres assistentes para celebração de missas, ministrar sacramentos e executar os ritos fúnebres, serviços assegurados aos irmãos e familiares. Segundo Russell-Wood (1981), ela possuía prataria e paramentos para cultos religiosos, sino, duas arcas para dinheiro e roupas, uma essa para os enterramentos dos irmãos e liteiras para transportar cadáveres de pobres e enforcados.

A MESA era o órgão diretivo, formado por 13 Irmãos, sendo seis “irmãos maiores”, seis “irmãos menores” e um Provedor (Diretor) escolhido entre os irmãos maiores, eleito indiretamente, ou seja, por uma comissão eleitoral de dez irmãos, que eram indicados pela totalidade da irmandade para tal tarefa. As responsabilidades da Mesa duravam um ano (RUSSELL-WOOD, 1981).

O PROVEDOR era dirigente e ocupante do mais alto cargo da instituição. Tinha por obrigação reunir a Mesa para a tomada das decisões que envolvessem questões políticas, transações financeiras ou despacho de petições de diversas modalidades, além de visitar mensalmente os trabalhos da instituição na prisão e no hospital, além de fiscalizar a correta distribuição de esmolas. Tinha imensas responsabilidades que dele exigiam sensatez, altruísmo e determinação e deveria ser sempre “[...] um homem fidalgo de autoridade, prudência, virtude, reputação, idade [...]” (RUSSELL-WOOD, 1981, p. 89). Sua idade não podia ser inferior a quarenta anos. Tais qualidades eram indispensáveis para que, ao lado da vaidade de ocupar tão cobiçado posto, tivesse a disponibilidade de tempo, amor pela instituição, capacidade de estabelecer cordiais relações com todos os subordinados e também

com as pessoas de fora, igualmente importantes para o bom andamento dos trabalhos da Provedoria. De acordo com o citado autor, vale o destaque para a importância social conferida ao Provedor da Misericórdia, motivo de orgulho para o ocupante do cargo, satisfação que se estendia a familiares e amigos que se sentiam próximos de alguém aureolado de prestígio, condutor de uma grande e sólida entidade social abençoada pela Igreja e aplaudida pela sociedade em geral.

O CORPO DE GUARDIÃES era parte do corpo diretivo, constituído pelo Irmão Escrivão, nove conselheiros e dois mordomos. A cada um deles cabia uma atribuição: o Escrivão era encarregado de registrar em atas o trabalho da instituição; com os nove conselheiros, ele formava cinco pares eqüitativos de irmãos maiores e menores que atuavam em tarefas específicas: visitar doentes em casa e no hospital; visitar prisioneiros; dar esmolas aos necessitados; coletar esmolas, aluguéis e legados. Escrivão e conselheiros eram eleitos para mandato de duração anual definida. Quanto aos Mordomos, denominação dada aos encarregados administrativos, renovados mensalmente, um cuidava da capela, funerais, missas e o outro, chamado “de fora”, cuidava da assistência jurídica dos presos. As Mordomias deviam ser exercidas com equilíbrio, responsabilidade, dedicação e gratuitamente. Muitos Guardiães eram figuras importantes no cenário social da cidade, desempenhando funções sociais de destaque (RUSSEL-WOOD, 1981). Mas a sociedade mudava!

O Compromisso de 1618 foi aprovado em decorrência de a Santa Casa ter percebido a necessidade de adequação e aprimoramento de seu papel social na cidade de Salvador que, ao longo das décadas, enfrentou transformações e um contingente populacional que não parava de crescer e sofrer mudanças físicas, estruturais e ideológicas. Conforme dados fornecidos por Russel-Wood (1981), o novo Compromisso ganhou vinte e dois capítulos novos, buscando definir com a maior precisão possível as tarefas e seu formato. Segundo o autor:

[...] o novo Compromisso de 1618 se caracterizava pela pormenorização e ausência de ambigüidade, especialmente quanto às condições de admissão, procedimento eleitoral e responsabilidade dos irmãos [...] Se o Compromisso de 1516 fora um modelo de sua espécie, seu sucessor não o fora menos, como se comprova por sua permanência até o século XIX. (RUSSEL-WOOD, 1981, p. 75).

A nova estrutura administrativa abrigava a Mesa, já apresentada, principal órgão administrativo sem quase alteração do Compromisso anterior. As novidades ficaram por conta do aumento do número de irmãos para 600 e da criação da JUNTA, órgão consultivo e moderador, composto por vinte irmãos possuidores de alguma experiência administrativa e

escolhidos eqüitativamente dentro das duas classes de Irmãos Maiores e Menores. A eleição era anual para os trabalhos diretivos, iniciando-se o chamado Ano Compromissal em 2 de julho, dia da Visitação de Nossa Senhora a sua prima Santa Isabel, data da principal festa da Irmandade. Neste dia ocorria a sessão de posse dos eleitos, que deveriam se esforçar por cumprir as quatorze ações corporais e espirituais do Compromisso (RUSSEL-WOOD, 1981). A tarefa, entretanto, não era fácil pelo custo que implicava tanto na capacidade individual de vencer ou agrilhoar os traços de vaidade, orgulho e individualismo e doar-se ao irmão em dor moral ou física, como na capacidade financeira da instituição em arcar com despesas vultosas e sempre crescentes.

No tocante à administração, a Santa Casa sempre administrou seus próprios bens, o que nem sempre foi feito com parcimônia e retidão, levando-a a vivenciar dificuldades financeiras, disputas jurídicas, intensas brigas judiciais, cooptação de votos nas eleições tidas e havidas como fraudulentas, indisciplina, brigas pessoais entre irmãos e figuras públicas. Estas ocorrências dificultavam a indicação de homens de caráter e fortuna pessoal para o preenchimento do cargo diretivo de Provedor. A Santa Casa de Misericórdia mantinha relações nem sempre muito cordiais com as autoridades desde os tempos coloniais, pois se sentia merecedora de atenção dos poderes públicos, já que lhes prestava serviços; ou seja, cumpria um papel que cabia ao Estado, como no caso do tratamento dos soldados da Coroa em seu hospital, e da manutenção das crianças enjeitadas, atribuição originalmente do Conselho Municipal (MARCÍLIO, 2001). Os Relatórios são repletos de queixas e críticas acerca dos atrasos, por anos a fio, do pagamento devido à Santa Casa pela municipalidade e pelo governo, o que gerou desavenças, entrega de cargos e publicização do problema.

Numa sociedade cheia de matizes de preconceitos, idiossincrasias e estereótipos, como a sociedade baiana, cumprir os 14 Compromissos corporais e espirituais era tarefa difícil, mas considerada absolutamente indispensável. Para fazer face às inúmeras despesas geradas pelo cumprimento dos Compromissos, a Irmandade contava com legados e doações em dinheiro, imóveis, escravos, tecidos e açúcar, expressos nos testamentos de Irmãos e fiéis que almejavam a paz para suas almas no paraíso (RUSSELL-WOOD, 1981). Ela era instituída como beneficiária, executora, encarregada de orar e celebrar missas póstumas, administrar os bens recebidos e realizar empréstimos a juros. O autor considerou importante o impacto das transformações sociopolíticas e econômicas vividas pela população de Salvador e do recôncavo baiano, que se refletiram na mentalidade e disponibilidade financeira dos cidadãos, principalmente dos senhores de engenho que integravam o quadro da Irmandade.

Na Bahia do século XVIII era emblemático nas famílias aristocráticas ter algum varão integrando a Mesa e a Junta da Irmandade da Misericórdia e uma filha tomando estado religioso no já citado Convento do Desterro (NASCIMENTO, 1994). Este quadro começou a ser alterado com o declínio da indústria do açúcar, pois, conforme já visto, ainda que mantendo o prestígio do nome e da classe social, muitas famílias viram-se em dificuldades financeiras, declínios e falências que obstaculizavam a candidatura aos ambicionados postos de Provedor e Tesoureiro, abrindo espaço no cenário social para os homens de negócios. Tais indivíduos, enriquecidos, desfrutando da aceitação da sociedade e da ausência da pecha de cristãos-novos (judeus convertidos ao catolicismo), não tiveram impedimentos para a ascensão aos citados cargos (RUSSEL-WOOD, 1981). O quadro de poder, em Salvador, começava a forçar mudanças!

O Compromisso de 1896 foi formulado pela Santa Casa da Bahia, levando em consideração o passar do tempo e as inevitáveis mudanças socioeconômicas e políticas: foi aprovado pela Mesa, na sessão de 31 de maio de 1896, durante a Provedoria de Manoel de Sousa Campos, quando foi alterado o sistema eleitoral, que passou a ser feito pelo sistema direto de votos (como forma de evitar as conhecidas e indesejáveis fraudes) e alterou o Ano Compromissal (2 de julho a 30 de junho), fazendo-o acompanhar o ano civil. Esta alteração levou a administração de então a atuar durante mais seis meses (ASCMB, Relatório..., 1894-1896).

O Compromisso de 1896 manteve o impedimento da mulher nos quadros da Irmandade, buscou estabelecer novas regras para suprir a contento as novas tarefas encampadas, cada uma delas sob o comando de um Mordomo. De acordo com o citado Compromisso, cada Mordomo deveria prestar contas de suas ações para a composição do Relatório da Provedoria, a ser apresentado à Mesa e Junta Deliberativa da instituição, ao final de cada período compromissal, fosse de um ano ou bienal.

Ao longo do período deste estudo, a estrutura administrativa esteve disposta com a Junta Deliberativa, tendo sob sua alçada o Definitório (órgão composto pelos Definidores Efetivos e Natos, ou seja, Irmãos que atuavam como conselheiros) e Mesa, órgão que englobava a Provedoria e os Mesários (ASCMB, Compromisso..., 1618; 1947).

Com esta estrutura hierárquica e administrativa, a Santa Casa desenvolveu várias e importantes obras, apresentadas na próxima seção.