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2 ASYLO DE NOSSA SENHORA DA MISERICÓRDIA

2.2 A GENTE DO ASYLO: SONHOS, DORES E PAPÉIS

2.2.1 A criança exposta

É no desvelar da infância vivida dentro do espaço destinado pela Santa Casa a meninos e meninas expostos que pode ser compreendida a atuação do Asylo e sua escola Interna, parcela do universo educacional de Salvador. Como diz Le Goff (1988), o conhecimento do passado, que pode estar depositado em mente envelhecida, em livros empoeirados e esquecidos, pode tornar-se acessível às pessoas se resgatados pela pesquisa.

Ainda que a criança sempre tenha existido, a noção de infância mudou ao longo do tempo. Numa panorâmica sobre o tema, é imprescindível referenciar o trabalho de Philippe Ariès (1981), que em sua obra clássica, História Social da Família e da Criança, aponta dois

marcos: o primeiro, a ausência do sentido de “infância”, tal como um estágio específico do desenvolvimento do ser humano, até o fim da Idade Média, acentuado pelo fato de as crianças viverem integradas no mundo dos adultos. O segundo, o processo de definição da infância como um período distinto da vida adulta, que abre as portas para uma análise do novo lugar assumido pela criança e pela família nas sociedades modernas.

O século XVII reconheceu a necessidade de limitar a participação das crianças no "mundo dos adultos" e, assim, separou o espaço infantil do espaço destinado aos adultos. A forma de olhar a criança era perpassada pela moral, influenciada pela Igreja e pelo Estado. Desse modo, a noção de infância apresentou-se oscilando entre duas concepções básicas: numa, amplamente difundida no século XVII, a infância passaria para dar lugar ao adulto e a escola seria ambiente de formação e conformação; noutra, com visão mais positiva, a infância deveria ocorrer e a escola era o ambiente adequado às novas experiências (ARIÈS, 1981).

Numa herança do direito napoleônico, a criança era vista como um ser que não exercia atividade laboral, sobre o qual não recaíam as responsabilidades dos seus atos e para tudo o que fosse significativo precisava da companhia de um adulto. Durante o século XVIII, o Brasil começou a conviver de forma mais intensa com um tipo de assistência individual, que organizou-se e desenvolveu-se sob o patrocínio e cuidado da esfera individual e religiosa, destacando-se sobremaneira da assistência pública (KUHLMANN JR, 1998).

A criança era um vir-a-ser que precisava encontrar as condições necessárias para seu florescimento bio-psíquico e intelectual. De acordo com Del Priori (2000, p.84): “[...] o certo é que, na mentalidade coletiva, a infância era, então, um tempo sem maior personalidade, um momento de transição e por que não dizer, uma esperança.” Não havia preocupação com a superação da condição social pré-institucional. Para as famílias e a sociedade em geral, a institucionalização significava proteção. O Estado limitava-se a encaminhar as crianças e a contribuir com subvenções. Para ele e para a sociedade, a proteção de meninas e meninos representava o cumprimento de regras morais vigentes e delimitação do lugar da mulher e do homem na sociedade (RODRIGUES, 2003).

As crianças que nasciam e cresciam em núcleos familiares estruturados contavam com uma rede social a seu redor, possibilitando amparo, educação e inserção no meio social, fosse pelo casamento ou pelo trabalho. Mattoso ([1988]), em seu livro Família e Sociedade na Bahia no século XIX, analisou a instituição familiar baiana, o estabelecimento dos laços familiares, a situação das crianças pobres e ricas geradas ou não dentro de um casamento, e ainda a miscigenação. Algumas famílias, mesmo pobres, contavam com a solidariedade de parentes e amigos para a criação de seus filhos, assim como os parentescos criados por

“eleição” ou optativos, como os padrinhos e os considerados parentes e a “[...] filiação étnica, muito importante especialmente para os africanos e seus descendentes, sobretudo numa cidade onde escravos e libertos de uma mesma etnia podem reunir-se com mais facilidade do que no campo [...]” (MATTOSO, [1988], p.133).

Tal rede de parentesco e solidariedade podia reduzir os problemas vivenciados pelas crianças pobres, oriundas de lares desfeitos ou mal estruturados. Se a rede não funcionasse, para tais crianças cabia o abandono parcial ou total e suas conseqüentes mazelas: morte, doenças, falta de escolarização, vadiagem e marginalidade. Assim, a estrutura caritativa voltada para a infância e a juventude pobre constituiu-se sob uma nova perspectiva, na qual o abandono das crianças era visto como uma forma de infanticídio que precisava ser evitado ou minimizado (RUSSEL-WOOD, 1991).

A sociedade olhava a criança sob a ótica religiosa do acolhimento e da recomendação de fazer o bem e, nas primeiras décadas do Brasil Império, a legislação referente à infância era fortemente marcada pelo recolhimento de crianças órfãs expostas, como medida de caráter eminentemente assistencial. Neste campo, a Santa Casa destacou-se pelo trabalho de abrigar crianças, oferecendo-lhes casa, comida, orientação religiosa e educação. Todas ali chegavam pela orfandade, pela miséria e pelo preconceito, conjuntura que impossibilitava a permanência no seio familiar, portando fraquezas físicas, doenças diversas e problemas que iam da desnutrição à condição de quase moribundas. Eram simplesmente colocadas na Roda dos Expostos, instalada no Asylo, acolhidas pela Rodeira, ou seja, a mulher encarregada da vigilância do equipamento (MARCÍLIO, 2001).

As Irmãs de Caridade recebiam as crianças e tentavam minorar-lhes sua entrega anônima. Ao chegarem, havia a realização do batismo das que não traziam indicação de já terem sido batizadas e, no ato sacramental, recebiam o nome do santo do dia e o sobrenome Mattos, em homenagem a João de Mattos, benfeitor que doara vultosos recursos para a entidade, conforme prescrevia o Art. 6º do Regulamento de 1863. Tal procedimento perdurou, pois, como relata Rodrigues (2003, p. 103): “[...] muitas crianças expostas no período republicano receberam nomes de santos e sobrenome Mattos, apesar de não haver, no regulamento de 1914, qualquer determinação quanto a este assunto.”

As crianças cresciam no Asylo sem raiz, sem histórias de família, sem nada ou quase nada saberem de si e do seu passado, recusadas por genitor(a) ou parentes, como expostas e enjeitadas. O Asylo as entregava às amas, mulheres-criadeiras que cuidavam delas até a idade de três anos, mediante o pagamento de pequena ajuda paga pela Santa Casa. Conforme já citado na seção referente à Roda dos Expostos, no capítulo precedente, as crianças que sobreviviam,

retornavam ao Asylo para serem educadas, sempre olhadas e referenciadas nos relatórios, atas e outros documentos da instituição como seres merecedores do amparo e da caridade.

A criança exposta poderia ser retirada por seus parentes, desde que observado o Regulamento, que era bastante claro quanto à sujeição à legislação vigente, no que tocava à entrega do exposto a pessoas que reclamassem seu parentesco, inclusive observando a aquiescência do Juiz de Órfãos (ASCBM, Regulamento..., 1863; 1914).

As crianças asiladas eram agrupadas de acordo com a idade: meninos e meninas de 0 a 3 anos ficavam na casa de amamentação; de 3 a 7 anos ficavam no chamado asilo inferior; meninas de 8 a 21 anos eram alojadas no asilo superior e meninos ocupavam um outro alojamento. Cada espaço era regido por regras previstas no Regulamento. De acordo com os Relatórios da instituição, a idade limite para a permanência de meninos era 12 anos (ASCMB, Relatório..., 1884-1885); acima desta idade só permaneciam meninos “[...] anormais e incapazes de qualquer proveito intellectual.” (ASCBM, Relatório..., 1914, p. IV); em 1921, o Relatório refere-se à saída dos meninos ao atingirem a idade de 14 a 15 anos, sem maiores explicações (ASCBM, Relatório..., 1921-1922).

No tocante às meninas, o Regulamento de 1863 (ASCBM, Regulamento..., 1874, p.12) traz textualmente, no Artigo 31: “As meninas, depois da idade de seis anos, serão educadas no Asilo, de onde sairão para casar, ou para companhia de alguma família capaz, debaixo de contrato, ou ainda para viverem sobre si, se o quiserem, depois de completar a maioridade.” Estes meninos e meninas que cresciam no espaço asilar tinham seu cotidiano perpassado por regras que demarcavam todas as suas ações: despertar, refeições, estudo, lazer, atividades domésticas, atos religiosos, saídas, visitas, entre outros. Tais ações, sempre supervisionadas por pessoas da administração, eram comentadas oportunamente quando enfocada a ação educativa da Escola Interna do Asylo. Portanto, de acordo com Goffman (1974, p. 48): “[...] as instituições totais são fatais para o eu civil do internado, embora a ligação do internado com esse eu civil possa variar consideravelmente.”

O Compromisso da Santa Casa e os Regulamentos do Asylo permitiram o entendimento de que a Santa Casa, como instituição de princípios cristãos, procurou educar a criança com ênfase numa educação religiosa, em conformidade com a formação católica, em bases tradicionais, observando valores morais e disciplinares, ansiando por preparar os jovens para uma vida produtiva e digna, capacitando-os para a execução de trabalhos que lhes garantissem a subsistência com a inserção no mercado de trabalho, no âmbito público ou privado.

O final do século XIX trouxe a modernidade da República e a transformação da estrutura política do país para constituí-lo como nação. Verificaram-se neste momento a

separação entre Igreja e o Estado, a secularização de alguns hábitos, as propostas de mudanças na educação, entre outras alterações. A questão da infância e da juventude pobre foi considerada como um “problema nacional”, colocando médicos e juristas à frente das batalhas em prol da infância, assim como as elites políticas, intelectuais e filantrópicas, constituindo-se num dos focos de análise da intelectualidade que discutia as contradições político-sociais do país e misturava as inovações do liberalismo europeu às tradições remanescentes do período colonial (RODRIGUES, 2003).

A Santa Casa de Misericórdia da Bahia não ficou imune às transformações decorrentes da República e a própria estrutura do Asylo passou a ser regida pelo novo Regulamento, datado de 1914, considerado mais adequado às necessidades institucionais.