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ATENÇÃO PRIMÁRIA A SAÚDE E O INTERNATO CURRICULAR OBRIGATÓRIO EM ATENÇÃO PRIMÁRIA A SAÚDE

4 EMBASAMENTO TEÓRICO

4.3 ATENÇÃO PRIMÁRIA A SAÚDE E O INTERNATO CURRICULAR OBRIGATÓRIO EM ATENÇÃO PRIMÁRIA A SAÚDE

Segundo Starfield (1994, 2002), a APS apresenta dois aspectos distintos, interdependentes e complementares: por um lado é uma estratégia de organização e reorganização dos sistemas de saúde, nos quais representa o primeiro nível de atenção; por outro lado se constitui num modelo para a mudança das práticas clinico-assistenciais dos profissionais de saúde. Enquanto modelo de reorientação das práticas clínico-assistências, ela se constitui por eixos estruturantes que recebem o nome de atributos essenciais (atenção ao primeiro contato, longitudinalidade, integralidade e coordenação) e atributos derivados (orientação familiar e comunitária e competência cultural) (MENDES, 2012; STARFIELD, 2002).

A APS se apresenta então, como um conjunto de intervenções em saúde, individuais e coletivas que envolvem promoção, prevenção, diagnóstico e tratamento em populações adstritas (MENDES, 2012; SOUZA CAMPOS, 2007; STARFIELD, 1994, 2002). Habitualmente esses problemas são solucionáveis com tecnologias leves (que envolvem a produção da comunicação e das relações) e leve-duras (que envolve os saberes estruturados). Também devem ser capazes de resolver cerca de 85% dos problemas de saúde, coordenar os fluxos e contra fluxos, além de se responsabilizar, longitudinalmente, por essas populações (MENDES, 2012; SOUZA CAMPOS, 2007; STARFIELD, 1994, 2002).

Souza Campos (2007) ressalta que essa capacidade resolutiva da APS depende dos investimentos realizados na rede e da adoção de modelos de prática adequados, para que a

mesma possa cumprir suas 3 funções fundamentais. Sendo elas: o acolhimento, a clínica ampliada e a saúde coletiva. Idealmente, funcionam integrando as ações individuais e coletivas, curativas e preventivas, assistenciais e educativas (SOUZA CAMPOS, 2007; STARFIELD, 2002).

A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) do Ministério da Saúde, caracteriza a APS como um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrangem a promoção, a proteção, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde. Seu objetivo é desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde, autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades. Reconhece ainda que sua função é essencial nas redes de saúde, como a porta preferencial de ingresso no sistema, com função ordenadora, resolutiva e coordenadora do cuidado (BRASIL, 2012).

Na atualidade, a Estratégia de Saúde da Família (modelo escolhido para implementar a APS no Brasil) ultrapassou os limites de um programa, e se constitui em política do estado brasileiro, presente na agenda dos gestores do SUS, em todos os seus níveis da federação (BRASIL, 2012; ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE, 2012). De forma que esse caráter estruturante dos sistemas municipais de saúde, orientados a partir da Estratégia Saúde da Família, tem provocado um importante movimento de reordenamento do modelo de atenção no SUS (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE, 2012). No entanto, observa-se no Brasil, uma estruturação da APS que apresenta algumas características peculiares que a diferenciam dos modelos de outros países orientados pela mesma. Resumidas em três importantes características.

Na visão de Mendonça:

1. A decisão das equipes multidisciplinares serem responsáveis por territórios geográficos e população adstrita – as equipes devem reconhecer adequadamente problemas de todos os tipos, sejam eles de ordem funcional, orgânica ou social. 2. A presença singular dos agentes comunitários de saúde. 3. A inclusão da saúde bucal no sistema público de saúde (2011, p. 24).

Dentro desse contexto, o trabalho em equipe se torna essencial frente ás complexidades dos problemas em atenção primária. Fato que exige conhecimento dos condicionantes e determinantes da saúde, do risco e da vulnerabilidade de famílias ou indivíduos, a fim de desenvolver projetos de intervenção específicos (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE, 2012).

De maneira que, torna-se imprescindível, reformular saberes e práticas oriundos da formação realizada, fundamentalmente, nos hospitais e ambulatórios de especialidades médicas. A incorporação de conceitos das ciências sociais e outros campos de conhecimento humano são essenciais para o desenvolvimento dessas habilidades. Programas de educação permanente, cursos, discussão de casos e de famílias, são caminhos possíveis na busca dessa afirmação (BATISTA; VILELA; BATISTA, 2015; LAMPERT, 2002; MENDONÇA, 2012).

Batista, Vilela e Batista (2015) observam que a inserção do ensino na APS, além de auxiliar na resolução de problemas de saúde da população, visa a atender uma demanda social do país. Serve também para ampliar os cenários de prática, tanto sob o ponto de vista da clínica quanto da saúde coletiva. De forma que, perceba-se com clareza, que os problemas

que o SUS deve resolver, também são problemas para a escola médica. Os mesmos

autores concluem:

Portanto, a ABS [APS] é um importante ponto de convergência entre as DCN e o SUS, descentralizando o ensino da Medicina dos hospitais para toda a rede de saúde de saúde, e sobretudo, deve fazer parte do núcleo de ensino da prática clínica do futuro médico, segundo preconizam as Diretrizes (BATISTA; VILELA; BATISTA, 2015, p. 248, inserção com grifo nosso).

Durante os últimos anos, observou-se avanços nas relações desenvolvidas entre as escolas médicas e os serviços de saúde, objetivando uma maior inserção de atividades de formação nas redes de saúde, sob a ótica das DCNs (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE, 2012). No entanto, as dificuldades existentes ainda são grandes e de várias dimensões, como: pequena massa crítica de médicos com formação em APS existentes, dificuldade de contratação pelas Prefeituras Municipais, ausência de uma carreira atrativa aos profissionais, descontinuidade administrativa na gestão da saúde pelos municípios, ausência de programas mínimos de educação continuada dos profissionais da rede, disfunções do sistema de saúde brasileiro e por fim, a heterogeneidade das condições nas redes de saúde nas unidades da federação (BATISTA; VILELA; BATISTA,2015).

Esses fatores, entre outros, dificultam uma interlocução harmônica e produtiva entre a academia e os serviços de saúde (BATISTA; VILELA; BATISTA, 2015). De forma que, pode-se afirmar que as escolas não formam o médico desejado pelo sistema, mas em contrapartida, é inegável que o sistema de saúde não fornece as condições- na rede de saúde- para que a escola forme os profissionais desejados (BATISTA; VILELA; BATISTA, 2015). Apesar das orientações explicitadas pelas DCNs, devemos considerar as peculiaridades existentes nas distintas situações de saúde dos municípios, além da variedade de práticas

pedagógicas ou institucionais, nas quase três centenas de escolas médicas em atividade no país (BATISTA; VILELA; BATISTA, 2015).

Essa conjuntura adversa estimulou a ABEM e a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) a elaborar Diretrizes para o Ensino na APS. Na visão de Batista, Vilela e Batista:

Essas normas afirmam que o ensino na ABS [APS] contribui para o desenvolvimento de uma prática clínica integrada e contextualizada, que é centrada nas pessoas e na comunidade, possibilitando a interdisciplinaridade. Para tanto é necessário que ao final do sexto ano, o estudante de medicina tenha competência nas três dimensões de forma integrada (2015, p. 252, inserção com grifo nosso).

As três dimensões consideradas no modelo da ABEM se reportam às competências que os acadêmicos devem desenvolver ao final da graduação. A fim de realizar abordagens individuais, familiares e comunitárias (BATISTA; VILELA; BATISTA, 2015). A dimensão individual na atenção à saúde é o foco de atuação profissional mais frequente na categoria médica e, fundamentalmente, reproduz-se no ensino da medicina. A dimensão familiar apresenta no médico de saúde da família e comunidade sua formatação mais conhecida, e se encontra em processo de legitimação social, no Brasil. A dimensão da abordagem comunitária é a menos utilizada, tanto na prática médica como no ensino da medicina (BATISTA; VILELA; BATISTA, 2015).

Ao considerar os distintos perfis populacionais que serão objetos de atenção, nos processos formativos e de atenção à saúde, a realização de um adequado diagnóstico de saúde populacional é um passo importante. Tal fato visa contextualizar adequadamente o estudante na realidade vivenciada pelas populações, as quais serão objeto de aprendizagem e de intervenção (DUNCAN; SCHMIDT; GIUGLIANI, 2013).

As necessidades de saúde e de atenção variam de acordo com o perfil demográfico, social e epidemiológico de cada grupo populacional (DUNCAN; SCHMIDT; GIUGLIANI, 2013; STREIT; MACIEL; ZANOLLI, 2009). De forma que, a caracterização da demanda atendida, e o consequente conhecimento da realidade de saúde dessas populações específicas, são passos importantes na busca da equidade em saúde e do ensino em medicina (COSTA; FACCHINI, 1997; DUNCAN; SCHMIDT; GIUGLIANI, 2013; PIMENTEL et al., 2011; RADAELLI et al., 1990).

Considera-se, por outro lado, que o envolvimento de alunos de graduação em atividades dessa natureza reveste-se de importância estratégica, visando uma formação

profissional imersa na realidade de saúde populacional e com relevância social (BATISTA; VILELA; BATISTA, 2015; STREIT; MACIEL; ZANOLLI, 2009).

Em contextos como este, se possibilitará ao aluno, uma integração entre o conhecimento adquirido e o treinamento para uma pratica médica exigida no ICO. Tornando-a uma ferramenta importante na construção do seu conhecimento e na introjeção dos valores vivenciais da APS (MENDES, 2012; SOUZA CAMPOS, 2007). Espera-se, portanto, que na singularidade das situações, o interno se torna capaz de refletir sobre a realidade que vivencia, aumentando assim, sua capacidade resolutiva e a possibilidade de uma futura inserção profissional nesse contexto (MACDOWELL; GLASSER; HUNSSAKER, 2013; MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2004; RUIZ; FARENZENA; HAEFFNER, 2010; UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2009).

Por outro lado, facilita-se a percepção sobre os determinantes sociais nas condições de vida e saúde dos indivíduos, permitindo transitar da doença para o indivíduo e da cura para a prevenção, como foco de prática de uma forma mais harmônica e integrada (TESSER, 2012). É no ambiente da APS que são esperados os melhores resultados no controle das doenças e na prevenção das mesmas, como resultado dessa abordagem mais integral, holística e contextualizada das situações (CAMPOS, 2006; CAMPOS; FOSTER, 2008; CARÁCIO, 2013; MARIN et al., 2013; OLIVEIRA et al., 2014; RICARDO et al., 2014).

5 METODOLOGIA

O delineamento utilizado nesta investigação foi a dos estudos transversais consecutivos. Os estudos transversais, encontram-se entre os delineamentos utilizados na prática de pesquisa passíveis de diagnósticos globais (ALMEIDA FILHO; ROUQYAIROL, 2002; MEDRONHO et al., 2008; PEREIRA, 2009). Esse tipo de estudo é capaz de produzir instantâneos de uma determinada situação coletiva a ser estudada, tomando como base a situação particular dos indivíduos, gerando resultados globais aplicáveis ao grupo de referência (ALMEIDA FILHO; ROUQYAIROL, 2002). Tem como principal vantagem o fato de possuir atributos que permitem, a partir de populações integrais ou amostras da mesma, descrever suas características com fidelidade (PEREIRA, 2009).

Além disso, o estudo pode ser realizado em períodos mais curtos de tempo, e a um custo mais acessível. Ele também é capaz de explorar as possíveis associações existentes entre os fatores estudados, desde que a análise se submeta a um modelo pré-estabelecido e claro (CAMPOS, 2006; CAMPOS; FOSTER, 2008; PEREIRA, 2009). Dessa forma, torna-se possível realizar inferências a partir do cotejo dos resultados encontrados, relacionados a população referenciada, claramente limitada antes da investigação (PEREIRA, 2009). Os estudos transversais apresentam como principal limitação, a dificuldade de esclarecer a ordem cronológica dos acontecimentos a serem estudados, podendo dificultar a análise dos resultados (PEREIRA, 2009). A repetição de estudos transversais no tempo- os denominados estudos transversais consecutivos- para observar o mesmo fenômeno, são frequentemente utilizados (ANSELMI et al., 2008; MARTELLI, 1997; PEREIRA, 2009). Essa coleta de informações, em dois momentos do tempo, mostrou-se capaz de minimizar por um lado, os possíveis vieses de prevalência existentes, por outro lado , permite uma melhor capacidade analítica e valorativa dos dados, aproximando-os, dessa forma, dos estudos prospectivos (MARTELLI, 1997).

Atualmente, são considerados estudos com algumas características longitudinais, potencializando assim, o poder analítico dos resultados. No entanto, diferem dos estudos prospectivos clássicos, por não estudarem o mesmo grupo de indivíduos, e avaliarem amostras independentes de uma mesma população, em diferentes períodos de tempo (MARTELLI, 1997). De forma, que se utilizou nessa investigação o delineamento dos estudos transversais consecutivos, caracterizando assim uma investigação quantitativa prospectiva.

De forma acessória e complementar, fez-se uso na discussão dos resultados, de algumas categorias do referencial Fleckiano (FLECK, 2010) sobre a teoria dos estilos de pensamento. O médico microbiologista, e epistemólogo polonês, Ludwik Fleck, considera a existência de três fatores que participam no processo do conhecimento: o indivíduo, o coletivo e a realidade objetiva (o que está por ser conhecido). Tais elementos são considerados investigáveis e se relacionam entre si, de diversas maneiras (FLECK,2010).

Fez-se menção, nesse trabalho, especialmente às categorias estilo de pensamento, e coletivo de pensamento. O estilo de pensamento pode ser caracterizado como um conjunto, um corpo de conhecimentos, possuidor de uma linguagem específica, apresentando diferentes enfoques que se interconectam, composto de conceitos e práticas teoricamente definidos e de crenças compartilhadas (CONDÉ, 2012; FLECK, 2010). Apresenta uma visão de mundo que resiste a contrapontos, mas se encontra em continua transformação sob a perspectiva histórica. Tal transformação ocorre por ser constituída de diversas linhas que se cruzam, conectam e se modificam, e, em última análise, modelam a “visão” com a qual os problemas são percebidos na realidade. De forma que a persistência de um sistema de ideias, numa determinada época, é uma estrutura condicionada por um estilo de pensamento. O mesmo se mantém através de uma certa “coerção” na forma de um perceber orientado da realidade, levada a cabo por parte desse estilo de pensamento (FLECK, 2010).

O autor denomina coletivos de pensamento, as atividades nas quais os diferentes elementos constroem seus estilos de pensamento ou conhecimento, em sua relação com a natureza e o meio social, num certo período histórico. Segundo Condé (2010), para Fleck, as ideias trafegam de diferentes formas entre estilos de pensamento criados pelos diferentes coletivos de pensamento no transcorrer do tempo, proporcionando mutações entre estilos de pensamento, que se dão de regra, de forma lenta e gradual, e não por rupturas, como em outros modelos.

A presente investigação foi realizada em duas etapas, com alunos de 12º semestre do Curso de Medicina da UFSM no período de abril a julho de 2013 (a autorização institucional para realização da pesquisa consta no Apêndice A). A mesma se realizou, antes e depois desses internos desenvolverem atividades em APS em cidades da região central e oeste do estado do Rio Grande do Sul (Agudo, Alegrete, Faxinal do Soturno, Formigueiro, Jarí, Restinga Seca, Santa Maria, São Gabriel, São Pedro do Sul e Uruguaiana) (Figura 1). As atividades tiveram a duração de quatro meses e compuseram parte do ICO do Curso de Graduação em Medicina. A operacionalização das mesmas, deu-se a partir de convênios firmados entre as Prefeituras Municipais e a UFSM.

Nos dois momentos da coleta de dados, antes da distribuição dos questionários, explicitou-se, que a não participação na pesquisa não implicaria consequências pessoais, bem como a participação espontânea não lhes traria benefícios diretos. A abordagem dos sujeitos de pesquisa realizou-se antes e após as atividades de APS, com a assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (Apêndice B) e também de um Termo de Confidencialidade (Apêndice C).