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4 DISCUSSÃO DOS DADOS

4.1 Discussão das atividades de intervenção e dos questionários das atividades

4.1.2 Aula 3: 08 de março de 2016

4.1.2.1 Atividade I: Dia internacional da mulher

A fim de ter a percepção das/os alunas/os sobre o dia internacional da mulher, pergunto sobre o porquê de haver esse dia e o que ele representa. Lauren cita o caso das mulheres que foram assassinadas em um incêndio, fazendo referência ao incêndio na fábrica de tecidos em Nova York em 1911. Discutimos brevemente sobre esse e outros episódios que fazem referência ao dia da mulher.

As/os alunas/os tiveram dificuldades em expressar o sentido e a relevância desse dia na vida das mulheres. Refletimos, então, sobre o papel da mulher na sociedade atual, sobre as discriminações e violências que ainda atingem inúmeras delas no mundo todo, bem como sobre as conquistas feministas por igualdade de direitos sociais e políticos.

Posteriormente, passamos a discutir sobre o feminismo que se destacou com as lutas das mulheres por melhores condições sociais e pelo direito ao voto. O objetivo era buscar ter acesso às suas percepções sobre o movimento. No excerto selecionado a seguir, é possível encontrar um momento da interação20:

Professeure : Quand on parle de la journée de la femme, on parle de féminisme. Oui ? Qu’est-ce que

c’est le féminisme ?

Élèves : C’est l’égalité... (...)

Professeure : Et quel type d’égalité ? Élèves : Sociale, politique, économique...

Professeure : Exactement. Donc quand on parle de féminisme on parle justement de ça. (...) On lutte

pour une égalité des droits sociaux. Parce qu’il y a des gens qui pensent que le féminisme c’est le contraire du machisme.

Cléo : Oui.

Professeure : Oui ? Parce que... Qu’est-ce que c’est le machisme ? Alexandre Agrigento : L’affirmation de l’homme.

Professeure : L’affirmation de l’homme. L’homme a plus de pouvoir que la femme. Donc l’homme est

ici [mostrando um patamar superior] et la femme est ici [mostrando um patamar inferior]. Ok? Le féminisme, ce n’est pas ça.

Cléo : O contrário é femismo. Interação 1 - Tradução:

Professora: Quando falamos do dia internacional da mulher, falamos de feminismo. O que é o

feminismo?

Alunas/os: É igualdade.

Professora: E que tipo de igualdade? Alunas/os: Social, política, econômica...

Professora: Exatamente. Então, quando falamos de feminismo, falamos justamente disso. (...) Lutamos

por uma igualdade de direitos sociais. Porque tem pessoas que acreditam que o feminismo é o contrário do machismo.

Cléo: Sim.

Professora: Sim? Porque... O que é o machismo? Alexandre Agrigento: A afirmação do homem.

20

Uso aqui o termo interação para subdividir e organizar numericamente os diálogos registrados durante as aulas.

Professora: A afirmação do homem. O homem tem mais poder que a mulher. Então o homem está aqui

[mostrando um patamar superior] e a mulher está aqui [mostrando um patamar inferior]. Ok? O feminismo não é isso.

Cléo: O contrário é femismo.

Na interação 1, as/os alunas/os trazem aspectos sociais, políticos e econômicos de igualdade, demonstrando ter uma percepção diferente da do senso comum, que tende a conceber o feminismo como uma superioridade do sexo feminino. Aqui, é possível observar que as/os alunas/os demonstram ter consciência da busca pela igualdade de direitos sociais. A partir do posicionamento de Alexandre Agrigento, procurei esclarecer a diferença entre o machismo e o feminismo que busca a igualdade entre os gêneros.

Com a discussão, foi possível perceber que elas/es não entendiam o feminismo como a superioridade da mulher, mas como igualdade social, política e econômica entre os gêneros. Nesse momento, Cléo se posiciona, enfatizando que, quando se busca uma superioridade feminina, deixa de ser feminismo e passa a ser femismo21. Tal colocação foi uma contribuição significativa não apenas para as/os alunas/os, mas também para mim, pois nenhum de nós havia ouvido falar do termo. De fato, Cléo demonstra ser uma aluna bastante atenta para questões sociais. Isso foi possível perceber desde o primeiro dia da pesquisa no qual ela se mostrou bastante receptiva ao tema.

Após termos refletido rapidamente sobre o feminismo, perguntei se elas/es se consideravam feministas. Poucas/os se manifestaram, sobretudo os meninos. Apenas dois deles levantaram a mão. Imagino que a pouca manifestação da turma se deu devido ao pouco conhecimento sobre o feminismo. Visando refletir com elas/es sobre os objetivos do movimento, mostrei o teste: Você é feminista? (cf. apêndice 12). O teste foi feito por Cynthia Miramis, doutoranda em direito na Universidade Federal de Mato Grosso, a fim de facilitar o acesso a informações sobre o feminismo. Ele apresenta 10 questões sobre os direitos sociais das mulheres no que diz respeito ao salário, ao voto, ao trabalho doméstico, aos estudos, dentre outros. Questionei se elas/es concordavam que as mulheres deviam ter os mesmos direitos que os homens. Todas/os disseram que sim. Solicitei que cada aluna/o lesse uma pergunta e refletimos juntos.

Feito isso, disse que, se elas/es haviam respondido afirmativamente à maioria das questões, elas/es podiam se considerar feministas. Ao perguntar novamente quem havia

21 O femismo “pode ser considerado o sinônimo do machismo (ao mesmo tempo que é seu oposto), pois se trata

de uma ideologia de superioridade da mulher sobre o homem. O femismo, assim como o machismo, prega a construção de uma sociedade hierarquizada a partir do gênero sexual; baseada em um regime matriarcal”. Disponível em: <https://www.significados.com.br/feminismo/>. Acesso em: 11 set. 2016, 23:09:54.

respondido “sim” à maior parte das questões, todas/os se manifestaram e levantaram a mão, inclusive os meninos. Apesar de não ser possível comprovar, elas/es pareciam honestos em suas posições. Após a reflexão feita em sala, elas/es demonstraram compreender o sentido de ser feminista, percebendo que, não apenas as mulheres podem ser feministas, mas os homens também.

Prosseguimos debatendo o assunto e mostrei novamente a frase de Simone de Beauvoir que havia trazido na primeira aula. Como não tínhamos tido tempo de pensar sobre ela no dia, achei interessante trazê-la para esta aula:

Professeure : On ne naît pas femme, on le devient. Qu’est-ce que ça veut dire ?

Cléo : Que o conceito de mulher é criado [inaudível]. Que a gente não nasce mulher, a gente vai

pegando esses hábitos que a gente encontra e vive, em uma visão de sociedade.

Interação 2 – Tradução:

Professora: Não se nasce mulher, torna-se mulher. O que isso quer dizer?

Cléo: Que o conceito de mulher é criado [inaudível]. Que a gente não nasce mulher, a gente vai

pegando esses hábitos que a gente encontra e vive, em uma visão de sociedade.

Na interação 2, Cléo demostra perceber o gênero como construção social. Cada sociedade constrói ao longo do tempo e do espaço, por meio da cultura, a noção de feminino e masculino. Nesse sentido, Joan Scott (1995) declara que o gênero é uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado, ou seja, uma interpretação sobre o papel da mulher a partir do sexo. Nas palavras da autora, “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos”, bem como “uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 21). A autora traz aqui o conceito de gênero não apenas como categoria social importante para entender o lugar e o valor da mulher em uma determinada cultura, mas também uma ferramenta útil para estabelecer e compreender as relações de poder entre homens e mulheres.

Ao dizer que o processo de se tornar mulher provém de hábitos, Cléo expõe a relevância das “normas” sociais nessa construção. A esse respeito, Louro (2008) advoga que a construção do gênero se dá por meio de diversas aprendizagens e práticas culturais. Em seu texto, a autora questiona sobre as instâncias sociais que “têm o poder de decidir e inscrever em nossos corpos as marcas e as normas que devem ser seguidas” (LOURO, 2008, p. 18).

Dentre elas, a autora cita a família, a igreja e a escola como instituições que ganham importante papel na construção do gênero.

Isso nos mostra queaprendemos a viver o gênero pela cultura, pelos discursos que se encontram na mídia e que são propagados por instituições sociais reconhecidas e legitimadas para ditar o que é “certo” e “errado”, “bom” e “ruim”.Esse entendimento também se afilia à perspectiva que aqui discuto sobre as práticas identitárias, segundo a qual as identidades são construídas nos discursos (FAIRCLOUGH, 2008).

Sendo assim, a norma não provém de uma única fonte, ela está em todo lugar, e se expressa “por meio de recomendações repetidas e observadas cotidianamente, que servem de referência a todos, ela ‘naturaliza’” (LOURO, 2008, p. 22). Ainda na visão da autora, ela é onipresente, presumida, tornando-se invisível e construindo a identidade valorizada. Assim, tudo o que dela se diferencia não tem reconhecimento.

Mais adiante, pergunto a diferença entre sexo e gênero e mais uma vez Cléo se posiciona:

Professeure : Donc, quelle est la différence entre le sexe et le genre ?

Cléo : O sexo é designado ao nascer, biologicamente. O gênero é com o qual você se identifica, pode

ser binário ou não binário, ou seja, mulher, homem ou os dois ou nenhum [inaudível].

Tradução:

Professora: Então, qual é a diferença entre sexo e gênero?

Cléo: O sexo é designado ao nascer, biologicamente. O gênero é com o qual você se identifica, pode ser

binário ou não binário, ou seja, mulher, homem ou os dois ou nenhum [inaudível].

Como pode ser visto na interação 3, Cléo entende o sexo como biológico, sendo, portanto, designado ao nascer. Já o gênero diz respeito à maneira como a pessoa se vê na sociedade, ou seja, o gênero com o qual ela se identifica. Interessante observar ainda que Cléo demonstra não perceber o gênero apenas como binário (masculino/feminino), mas nas suas múltiplas possibilidades. A esse respeito, Louro (2008) declara que, apesar de as normas sociais serem reiteradas ao longo do tempo pelas instâncias sociais, as formas de viver o gênero e a sexualidade se multiplicaram nos dias de hoje, não sendo mais possível pensar em sistemas binários: masculino/feminino, heterossexual/homossexual.

A autora destaca que as transformações são inerentes à história e à cultura de um povo, possibilitando novas formas de comportamento e maneiras de se relacionar capazes de subverter as fronteiras do sexo e do gênero e fazendo emergir novas identidades. Contudo, a

autora afirma ainda que é importante considerar que essas novas identidades não são igualmente valorizadas, existem relações de poder entre elas, pois não estão livres dos valores culturais e sociais. Dessa forma, é possível perceber que, em um contexto de diversidade, as identidades que ali se encontram são reconhecidas de maneira diferente pela sociedade.

O objetivo dessa atividade era problematizar sobre o sentido do dia internacional da mulher. Esse dia busca o reconhecimento de todas/os a respeito das lutas e conquistas femininas, ou seja, uma reflexão sobre o que já foi conquistado e o que ainda precisa ser feito. O reconhecimento pode ganhar sentido de solidariedade diante da busca por igualdade social, econômica e política entre homens e mulheres. Nas interações 2 e 3, percebe-se que a participante Cléo demonstra entender o sexo como biológico e o gênero como construção social, ligado à maneira como a pessoa se identifica, indo além de composições binárias. Apenas Cléo se posicionou diante das minhas perguntas, trazendo suas percepções, o que possibilitou refletir sobre elas.

As discussões se deram, prioritariamente, em francês. Contudo Cléo se expressou especialmente em português. Mesmo assim eu mantive o francês, isto é, as línguas estavam em interação. As/os alunas/os se expressaram sobre uma temática importante em suas vidas no que diz respeito à construção de si mesmas/os. Com a minha fala, bem como a das/os colegas, elas/es tiveram acesso a discursos em francês sobre temas que, de maneira geral, não se encontram devidamente inseridos na sala de aula. Além disso, no momento de se expressarem, elas/es tiveram a oportunidade de expandir seus recursos linguístico-discursivos na língua, pois foi possível trabalhar o vocabulário relativo ao tema. Isso possibilita não apenas aperfeiçoar o conhecimento e a prática da língua francesa de maneira geral, mas, sobretudo, colocar em foco o porquê das práticas sociais, construindo, assim, novos conhecimentos de maneira reflexiva e dialógica. A tentativa foi trazer o ensino de línguas para uma perspectiva de letramento, não apenas ensinar a língua sem mostrar o quanto ela está atrelada às vivencias sociais das quais participamos.

No final da aula, falei um pouco mais sobre a pesquisa, os objetivos de propor reflexões críticas sobre temas sociais, não apenas devido ao fato de testes nacionais como o ENEM trazerem temáticas como essas, mas, principalmente, para a própria formação delas/es como seres humanos e cidadãs/os.

No final das reflexões, propus com as/os alunas/os desenvolver outras atividades abordando questões de gênero e, posteriormente, interseccionando-as com as de raça/etnia. Assim, acordamos que eu traria documentos que abordavam situações da contemporaneidade para serem discutidos em sala e que elas/es poderiam igualmente trazer casos para serem

debatidos nas aulas. Como destaca Barbier (2007), essa negociação é primordial para o processo da pesquisa-ação na qual as ações são pensadas coletivamente. Como ainda não havia entregado o Termo de consentimento às/aos alunas/os uma vez que algumas/uns delas/es disseram que iriam ter que trocar de turma, o fiz nessa aula pedindo para entregarem- no ao responsável por elas/es a fim de que pudessem se informar a respeito e, caso concordassem, autorizar a sua participação.