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A atuação do Serviço de Saneamento Rural nos registros da lepra no Rio Grande do Norte.

CAPÍTULO 1 A CONSTRUÇÃO DO LEPROSÁRIO SÃO FRANCISCO DE ASSIS

1.2 A atuação do Serviço de Saneamento Rural nos registros da lepra no Rio Grande do Norte.

Como já afirmamos anteriormente, o Rio Grande do Norte não apresentava registros de casos de lepra antes do ano de 1923, diferentemente do que acontecia com outros estados do Brasil (principalmente São Paulo, Rio de Janeiro e Pará), que já apresentavam números elevados de casos de lepra e realizavam ações pontuais de combate a essa epidemia.58

Essa disparidade entre Rio de Janeiro, São Paulo e Pará e o Rio Grande do Norte, no que concerne aos casos de lepra, proporcionou debates diferenciados nos estados. Assim, enquanto, a Comissão de Profilaxia da Lepra se reunia no Rio de Janeiro para debater o combate à epidemia a lepra; no Rio Grande do Norte, a preocupação médica e governamental era reduzir as elevadas taxas de mortalidade infantil registradas anualmente e combater as epidemias que atacavam o homem do campo, como o impaludismo e as doenças tropicais.59

A partir da década de 1920, o discurso oficial apresentou como principal preocupação o combate das chamadas doenças venéreas, em especial a sífilis, presente no Estado. A sífilis era uma doença que causava grande preocupação entre as autoridades políticas, pois deixava sequela física no indivíduo e, consequentemente, reduziu a força de trabalho disponível para o enriquecimento do país. O Presidente do Estado, Antônio José de Mello e Souza externou essa preocupação na mensagem lida na Assembleia Legislativa no ano de 1922:

convencido de que entre nós, no Brasil inteiro, nenhuma entidade mórbida exige um combate mais enérgico e methodico que as do grupo das chamadas moléstias venéreas, sobretudo a syphilis, cujos efeitos não só inutilizam o individuo, como ainda dessoram e enfraquecem as gerações delle oriundas60.

58 É importante destacar que, conforme é retratado nos próprios documentos oficiais, o Estado não contava com

serviço estatístico funcionando de forma completa.

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Segundo demonstram os dados, a mortalidade infantil correspondia a cinquenta e cinco por cento do total de nascimentos registrados. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da primeira sessão da nona legislatura em 01 de novembro de 1916, pelo governador Desembargador Joaquim Ferreira Chaves. Natal: 1916.

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RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da terceira sessão da décima legislatura em 01 de novembro de 1920 pelo governador Antonio J. de Mello e Souza. Natal: Typ Commercial,1920, p. 17.

A preocupação com essas epidemias continuou demarcando o discurso oficial no Rio Grande do Norte, como demonstraram as mensagens dos presidentes do Estado dos anos seguintes. A lepra não era historiada no discurso oficial e não era registrada nos dados demográficos do Estado como causa de morte dos indivíduos. Em 1922, as principais doenças registradas nos obituários eram o paludismo, a tuberculose, a gripe e as febres.

[...] no período decorrido de outubro de 1921 a setembro ultimo, ocorreram 30 mortes por paludismo contra 4 no anno anterior, 31 d grippe contra 12, e 62 de tuberculose contra 32, isso naturalmente não levando em conta os numerosos casos de obito sem assistência medica, nos quais portanto quase nunca se pode verificar a causa. No período apreciado não houve um só caso de morte por variola, apenas um por febre amarela e um por peste bubônica, contra 26 no anno anterior. Somente as febres typhicas deram ainda a causa de 17 mortes, contra 18 no período antecedente61.

Os casos de lepra, no Rio Grande do Norte passaram a ser conhecidos e notificados compulsoriamente a partir da atuação do Serviço de Saneamento Rural, implantado no Estado no ano de 1922, com a ajuda financeira da União. A instalação desse serviço nos Estados fez parte da reforma da saúde pública e da busca pelo saneamento dos sertões implantado no final do século XIX e início do século XX. É importante retratar que esse período foi marcado por várias ações médicas que visavam retirar o sertanejo e o sertão do lugar de abandono a que eram submetidos pelas ações políticas e de erradicar a proliferação de algumas epidemias. Dessa forma, iniciou-se um movimento formado pela elite intelectual e políticos voltados para a atenção à saúde do homem do campo. Entre as principais ações do movimento sanitarista, esteve a criação dos postos de profilaxia rural, que significaram a presença do Estado na implantação das políticas de atenção à saúde de forma nacional. 62

No Rio Grande do Norte, a instalação dos postos de profilaxia rural ocorreu em diferentes áreas da cidade. O primeiro posto de profilaxia rural foi instalado no bairro do Alecrim e logo depois um subposto no bairro das Rocas, áreas da cidade mais carentes de saneamento. Logo após, foram inaugurados os postos de Ceará-Mirim e da Penha, seguindo as linhas férreas

61 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da

undécima legislatura em 01 de novembro de 1922 pelo governador Antonio J. de Mello e Souza. Natal: Typ Commercial,1922, p. 27 e 28.

62 LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade

da Central e da Great Western63. É importante destacar que os postos de profilaxia foram instalados com o objetivo de combater, sobretudo as verminoses e a malária, doenças vistas pelo movimento sanitarista como prioridade nacional. A partir dos dados estatísticos de atendimento desses postos, foram registrados e conhecidos os primeiros casos de lepra do Estado.

O numero de pessoas matriculadas nos postos desde junho de 1922, quando se installou o primeiro, era em 30 de setembro ultimo [1923] de 38.721 com ancylostomose, 44.649 com outras helmithoses, 4.027 com impaludismo, 2.828 com syphilis, 593 com outras moléstias venéreas, 275 com tuberculose, 34 com lepra e 4.089 com varias moléstias, inclusive 8 casos de leishmaniose64.

Os postos de profilaxia rural, a partir do seu primeiro ano de atuação, registraram o atendimento de trinta casos de doentes com lepra no Estado. Número bem inferior quando comparado ao atendimento às demais doenças que existiam no Rio Grande do Norte, como a sífilis e a tuberculose. Contudo, esses primeiros números de doentes com lepra já configurava uma necessidade de atenção por parte do Estado, conforme sugeria a diretriz nacional.

A partir dos dados estatísticos realizados pelo Serviço de Saneamento Rural, em 1923, foram registrados os primeiros casos de morte apresentando como causa a lepra, ao todo, sete indivíduos morreram com causa de morte registrada como Lepra. No ano de 1923, já se contabilizava no Estado trinta e quatro contaminados pelo bacilo de Hansen.

A partir do ano de 1924, com o mandato de José Augusto Bezerra de Medeiros, várias transformações e inovações continuaram a ser realizadas na administração pública do Estado, entre elas o incremento das questões sanitárias e higiênicas. Entre as principais ações desse período, posso destacar a criação do Serviço de Profilaxia da Lepra e do Departamento de Saúde Pública do Estado. Nesse mesmo ano, foi instalado no Estado o Serviço de Profilaxia da Lepra, responsável pelo acompanhamento dos doentes notificados pelo bacilo de Hansen e os seus comunicantes. Entre as suas ações, posso destacar: verificação dos casos notificados constatados através dos exames clínicos, assistência médica a todos os leprosos notificados, aplicação de remédios e educação higiênica dos doentes. A atuação de combate à lepra, a partir da instalação

63 A REPÚBLICA. Natal, 07 de julho de 1921. 64

RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da terceira sessão da undécima legislatura em 01 de novembro de 1923 pelo governador Antonio J. de Mello e Souza. Natal: Typ Commercial,1923, p. 33.

dessa nova estrutura administrativa, passou a ocorrer em duas diretrizes, o acompanhamento dos doentes e a prática do uso de remédios específicos.

O Serviço de Profilaxia da Lepra atendeu um grande número de pessoas, como demonstram os seus registros. “Acham-se matriculados no serviço de 52 doentes, tendo sido feitas 96 pesquizas do Bacillo especifico. Foram applicadas 845 injeçções medicamentosas e feitas 597 visitas a domicilio”65

. Diante da atuação do Serviço de Profilaxia da Lepra e dos postos de profilaxia rural, os indivíduos contaminados com o bacilo da lepra passaram a ser conhecidos e historiados no Estado. Os casos de lepra registrados aumentaram cinquenta por cento entre o ano de 1924 e 1925. Segundo o discurso oficial, o Rio Grande do Norte contabilizava cem casos confirmados de lepra entre a sua população.

De poucos annos a esta parte, está se verifcando o augmento do numero de leprosos nesta capital e em outros pontos do nosso Estado. O diretor do Departamento de Saúde calcula, em face dos dados que conseguiu colher, que o numero dos attingidos pelo terrível mal já sobe a 100 no território norte- riograndese66.

O número de pessoas atendidas nos postos de profilaxia rural, a partir do ano de 1925 aumentou substancialmente, sendo atendidas entre primeiro de janeiro a trinta de setembro desse ano, duzentos e setenta e nove pessoas com suspeitas de lepra. Desses casos analisados, sessenta e um doentes foram diagnosticados como portadoras do bacilo de Hansen no organismo. Do total de doentes notificados, foi registrada a saída de cinco doentes para outros estados e a morte de quatro doentes infectados. Dessa forma, o estado contava com cinquenta e dois leprosos notificados somente no ano de 1925. Entre os anos de 1923 a 1925, o Rio Grande do Norte notificou cento e nove doentes, dos quais treze faleceram e permaneceram em tratamento noventa e um doentes. Esse tratamento apresentado consistia na vigilância do doente e de seus comunicantes, bem como na utilização de alguns remédios.

Com o incremento da política pública de conhecer e notificar os leprosos presentes no território do Rio Grande do Norte, no ano de 1926, também foi registrado um elevado número de

65 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da primeira sessão da

décima segunda legislatura em 01 de novembro de 1924 pelo governador José Augusto Bezerra de Medeiros. Natal: Typ d’A república, 1924, p. 30.

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RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da décima segunda legislatura em 01 de novembro de 1925 pelo governador José Augusto Bezerra de Medeiros. Natal: Typ d’A república, 1925, p. 36.

pessoas com suspeitas de lepra que procuraram os postos de profilaxia rural. Nesse ano matricularam-se nos postos trezentos e quarenta e sete pessoas com suspeita de lepra, desse total, setenta e seis doentes foram diagnosticados de forma positiva. Nesse ano não houve registros nos obituários do Estado de indivíduos infectados com a bactéria da lepra, assim podemos afirmar que o Estado do Rio Grande do Norte contava com cento e sessenta e oito casos positivos da doença ao final desse ano.

Em termos nacionais, a partir do recenseamento realizado nos estados brasileiros, com exceção de Minas Gerais, no ano de 1926, existiam onze mil infectados em todo o país. No entanto, para Belisário Penna esse número era bem maior, em torno de trinta e três mil leprosos67. Diante desses dados, posso afirmar que, apesar de o Rio Grande do Norte possuir mais de cem doentes de lepra, esse número, em termos nacionais, não inseria o Estado entre os principais focos da doença. Sobretudo, se compararmos esses números com a porcentagem de doentes nos Estado do Pará e do Ceará.

A partir do ano de 1927, o número de matrículas de pessoas suspeitas de casos de lepra, bem como o número de novos casos confirmados da doença reduziu brutalmente. Em 1927, foram matriculadas cento e noventa e duas pessoas, sendo registrados onze novos casos positivos da doença. No ano de 1928, foram matriculados oitenta e um suspeitos de lepra e no ano de 1929 foram matriculados nos postos de profilaxia rural noventa e um suspeitos. Essa redução dos números de leprosos atendidos nos postos de profilaxia rural pode ser sinalizada devido à ação do Leprosário São Francisco de Assis, que nesse período já contava com o isolamento de alguns doentes e com a prática da notificação dos leprosos e dos seus comunicantes. Essa redução nos registros de novos casos tinha relação com o início do isolamento dos leprosos. Posso inferir que o ato de isolar os doentes em um estabelecimento específico pode ter gerado medo e receio entre a população norte-rio-grandense de buscar os postos de profilaxia e mesmo demonstrar marcas da doença no corpo. Esse elemento pode ter contribuído para reduzir os registros de doentes atendidos.

Segundo dados oficiais, o Rio Grande do Norte contava, no ano de 1929, com oitenta e nove doentes de lepra notificados, contudo, a partir dos dados recolhidos nas mensagens dos presidentes do Estado, até o ano de 1927, o Estado registrou cento e setenta e sete casos de lepra

67 CUNHA, Vivian da Silva. Isolados “como nós” ou isolados “entre nós”?. História, Ciências, Saúde –

no seu território. Posso concluir que, no período de inauguração oficial do Leprosário São Francisco de Assis, o Estado contava com um número considerável de doentes, bem superior ao proclamado pelo discurso oficial.

O quadro abaixo resume os dados relativos aos atendimentos realizados nos postos de profilaxia rural referentes aos casos positivos de lepra presentes no Estado entre os anos de 1923 (momento do primeiro registro de casos de lepra presente no discurso oficial) e 1929 (momento da inauguração oficial do Leprosário São Francisco de Assis).

Quadro 1: Número de doentes notificados de lepra durante os anos de 1923 e 1929

Ano Matriculados nos postos de saneamento Diagnosticados como portadores da lepra Falecidos tendo como causa da morte lepra Total de doentes no estado por ano

1923 34 34 07 27 1924 * 14 02 12 1925 279 61 04 52 1926 347 76 0 76 1927 192 11 01 10 1928 81 * * * 1929 91 * * *

*Dados não disponíveis.

Fonte: Quadro produzido a partir dos dados apresentados nas Mensagens dos presidentes do Estado.

A partir desses dados, observei que os anos de 1925 e 1926 foram os períodos de maior número de matriculados nos postos de profilaxia rural com suspeita de lepra e, consequentemente, os períodos de maior notificação de casos positivos da doença. Diante da constatação do aumento do número de doentes no Estado, entre esses anos, instaurou-se o discurso, entre membros da classe médica e da classe política, da necessidade de uma ação mais efetiva no combate à disseminação da lepra no Estado. Seguindo a diretriz nacional, o isolamento dos doentes de lepra em espaços específicos começou a ser idealizada no Rio Grande do Norte.

1.3 A lepra e a construção do Leprosário São Francisco de Assis nos jornais e nas ações das