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CAPÍTULO 1 A CONSTRUÇÃO DO LEPROSÁRIO SÃO FRANCISCO DE ASSIS

1.7 Vila, leprosário ou colônia?

O isolamento dos doentes do mal de Hansen no Rio Grande do Norte recebeu várias nomenclaturas durante o seu período de funcionamento, entre eles podemos destacar: Leprosário São Francisco de Assis, Colônia São Francisco de Assis e Vila São Francisco de Assis. As denominações recebidas pela instituição retrataram a concepção de isolamento que foi seguida e as práticas médicas realizadas nesse espaço hospitalar. O nome leprosário ou lazareto foi

utilizado para designar um espaço hospitalar de isolamento de leprosos ou de pessoas que apresentassem qualquer tipo de problemas na pele. Já a denominação colônia pode ser entendida como um espaço de reclusão de doentes com infraestrutura semelhante às cidades, formada por espaços para atividades físicas, cemitério, capela, atividades profissionais, escola e outras instalações. O termo vila, segundo o Dicionário Aurélio, significa “povoação, de categoria inferior à cidade e superior à de aldeia” 122. Essas três definições (leprosário, colônia e vila) estiveram presentes na história do Leprosário São Francisco de Assis, definindo o seu tipo de isolamento, a sua arquitetura e as práticas médicas desenvolvidas no interior do isolamento.

No primeiro momento, especificamente até o ano de1929, o isolamento para leprosos no Rio Grande do Norte, foi chamado de Leprosário São Francisco de Assis, por médicos, pelos jornais e na documentação oficial da instituição. Essa nomenclatura se relacionou com dois elementos principais: a estrutura arquitetônica do isolamento e a concepção profilática praticada. O isolamento era formado por dois pavilhões divididos por sexo, sem atividades de lazer e trabalho para os doentes, sem a presença de médicos ou outros profissionais, a sua função era isolar e retirar os leprosos do convívio da sociedade. Não existia nenhum tipo de prática profilática, como visitas médicas e utilização de remédios, os doentes ficavam reclusos no isolamento, sem qualquer tipo de esperança de voltar ao convívio com os demais.

A partir da construção de novas instalações, principalmente da edificação de grupos de casas durante o ano de 1928, o nome leprosário foi substituído por Colônia São Francisco de Assis, sobretudo na fala dos líderes políticos e da classe médica. Contudo, essa nomenclatura só se tornou presente na documentação administrativa do espaço hospitalar a partir do ano de 1930.

O modelo de isolamento dos leprosos baseado nas colônias agrícolas foi sugerido por Osvaldo Cruz, em relatório apresentado em 1904, para ele o caráter crônico da lepra e a sua lenta evolução exigiam um tipo de isolamento apropriado em que os leprosos desenvolvessem atividades de diferentes naturezas. Para Castro, os médicos e os líderes políticos pensavam essas intuições como lugares em que os internos pudessem ter uma vida semelhante à das pessoas sadias. Essas instituições, “[...] ao mesmo tempo em que preservariam a população sadia, trariam dignidade e respeito ao doente obrigado à segregação, proporcionando dentro de seus muros uma

122 AURÉLIO. Dicionário do Aurélio on-line. Disponível em: <https://dicionariodoaurelio.com/vila›>. Acesso em:

vida completa”123

. Assim, a proposta nacional era isolar os leprosos, não mais em leprosários, mas em colônias agrícolas que permitissem ao interno uma vida minimamente condizente com a vida anterior que possuía.

A partir das Diretrizes Nacionais de combate a lepra , o Leprosário São Francisco de Assis sofreu diferentes intervenções físicas, adequando-se às normas e aos preceitos médicos propostos. No momento inicial o isolamento contava com apenas dois pavilhões, com a expansão territorial, novas edificações foram realizadas no sentido de garantir ao interno uma vida completa mesmo estando dentro de uma instituição médica. O isolamento dos doentes que antes era realizado nos antigos pavilhões do Isolamento São Roque foi substituído por grupos de casas, que, segundo o Diretor do Departamento de Saúde, Varella Santiago, a ideia desse tipo de construção era proporcionar aos internos uma sensação de habitar uma vila, uma cidade. A partir da estrutura física de grupos de casa e do discurso do seu diretor, o Leprosário São Francisco de Assis recebeu a denominação de Vila São Francisco de Assis, como retratou o Dr. Varella Santiago Sobrinho em entrevista concedida ao Jornal do Brasil em três de julho de mil novecentos e vinte e nove: “[...] o nome do Leprosário que concorreria para lembrar-lhes o mal de que são victimas, substitui pelo de Villa. Realmente, é esta a denominação mais própria pois o seu aspecto nada tem de hospitalar, mas de aprazíveis confortáveis vivendas”124

.

Seguindo Varella Santiago, a denominação leprosário, antes utilizada para designar a instituição de isolamento, referenciava o grande mal e o infortúnio que os indivíduos estavam designados a viver. Para o médico, o nome vila seria a denominação mais correta, já que o isolamento para ela não constituía uma instituição hospitalar, mas era a própria casa e a cidade desses indivíduos leprosos.

O isolamento e a organização dos internos nas edificações do leprosário seguiram esse conceito de criar uma vila de leprosos. Foram edificados três grupos de casas, o primeiro grupo com dez casas com capacidade de abrigar dois ou três internos. Já os dois grupos de casas inaugurados após o ano de 1929 eram formados por duas unidades, também destinadas a grupos de internos ou famílias. A ideia do grupo de casas era recriar a disposição física de uma cidade, os internos ocupavam as suas próprias casas, e não apenas um quarto ou uma cama, como ocorria

123 CASTRO, Elizabeth Amorim. O Leprosário São Roque e a modernidade: uma abordagem da hanseníase na

perspectiva da relação espaço-tempo. 2005. 100f.Dissertação (Departamento de Geografia) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005. p. 59.

no hospital de isolamento. A ideia era que o interno desenvolvesse o sentimento de pertencer ao lugar como morador e não como um cativo.

Além dos aspectos físicos das acomodações dos doentes, o leprosário contava com outras instalações e serviços que objetivavam recriar o aspecto de cidade. Entre eles, posso citar a presença de cemitério, sistema de esgoto, cinema, escola profissional, bangalô para as irmãs de caridade, igreja, creche, telefone, sala de jogos, sala de leitura e aparelho de rádio, espaços destinados para o lazer dos doentes. Esses elementos que foram instaurados no leprosário tinham dupla função: a primeira função era dotar o isolamento de todos os elementos da cidade moderna, com a presença da luz elétrica, de rádio, telefone. Elementos que caracterizavam os novos tempos e a modernidade. Além da presença desses elementos, a própria acomodação dos internos refletia essa preocupação com os novos preceitos científicos e higiênicos do período. A mensagem do Presidente do Estado de 1928 apresentou as instalações físicas do leprosário como construções de primeira qualidade, com piso de concreto revestido de mosaico, com instalações sanitárias individuais.125

Ainda no sentido de tornar o isolamento uma cidade com todas as suas características, implantou-se algumas atividades manuais. Os internos eram incentivados a trabalhar no interior do isolamento, como se pode observar nesta mensagem do Presidente do Estado: “O diretor do serviço procura sempre dar occupação aos seus enfermos válidos e essas occupações consistem, sobretudo na cultura dos terrenos do estabelecimento”126

. Ainda sobre o trabalho realizado na colônia, o Diretor, o Dr. Varella Santiago, afirmou que: “Há uma área para os trabalhos agrícolas onde os que foram homens do campo cultivam como se estivessem nas fazendas, revertendo-se o produto do seu trabalho em beneficio do Leprosário”127

.

A partir da documentação analisada, o trabalho realizado no leprosário era geralmente agrícola, somente a partir dos anos de 1930, foram instaladas oficinas para o ensino rudimentar de atividades profissionais. Esses cursos abrangiam o curso rudimentar de letras e oficinas de sapateiro, barbeiro, funileiro e marceneiro. Até a finalização desta pesquisa, não foi possível identificar quem eram os professores dessa escola e como funcionava o ensino no interior da

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RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada pelo Presidente do Estado do Rio Grande do Norte à Assembleia Legislativa e lida na abertura da primeira sessão da décima quarta legislatura, em 01 de outubro de 1928. Natal: Imprensa Oficial do Estado, 1928, p. 32.

126 RIO GRAND E DO NORTE. Mensagem apresentada pelo Presidente Juvenal Lamartine de Faria à Assembleia

Legislativa, por ocasião da abertura da primeira sessão da décima quarta legislatura. Natal: Imprensa Oficial, 1930, p. 68.

instituição, se todos os internos participavam e se existiam oficinas específicas para mulheres e para homens. A partir da realização dessas atividades, o Dr. Varella Santiago defendia a nomenclatura de Vila São Francisco de Assis, já que oferecia a seus internos elementos materiais e imateriais necessários a sua vivência, bem como uma estrutura “confortável” e “prazerosa”.

No entanto, o Leprosário São Francisco de Assis, apesar de oferecer diversos serviços, lazer e trabalho aos seus doentes, continuava sendo uma instituição total, como designado por Goffman.128 Era um local de reclusão de indivíduos que ameaçavam a comunidade, com normas rígidas, condutas uniformes e vigilância. Apesar de o diretor dessa instituição defender a denominação de vila para o isolamento potiguar, a partir do ano de 1936, o modelo arquitetônico utilizado para construir novas acomodações para os leprosos utilizou o modelo pavilhonar. Essa estrutura arquitetônica caracterizava-se por uma série de edificações isoladas com a função de abrigar as atividades desenvolvidas no seu interior, diferindo da estrutura utilizada no início da sua edificação.

Dessa forma, as diferentes denominações recebidas ao longo da trajetória do Leprosário São Francisco de Assis representaram a trajetória dessa instituição, que adquiriu diferentes aspectos, estrutura física, concepções e objetivos médicos. Este espaço não possuiu uma trajetória uniforme ao longo do seu período de funcionamento, assim como os seus internos não vivenciaram o isolamento da mesma forma.

Ainda de acordo com a ideia de que o Leprosário enquanto instituição adquiriu características diferentes, referentes à sua estrutura e as suas práticas médicas, é importante compreender quem eram os internos que formavam essa instituição de isolamento, quem eram os indivíduos que davam vida e ditavam as trajetórias da instituição. Assim, é importante compreender os atores sociais que formavam e praticavam o espaço do Leprosário São Francisco de Assis. Os próximos capítulos deste trabalho abordam os atores sociais que tiveram as suas vidas marcadas pelo isolamento.

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