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CAPÍTULO 2 O LEPROSÁRIO SÃO FRANCISCO DE ASSIS E OS SEUS INTERNOS

2.2 Situação social e profissional dos internos

A partir do ano de 1931, no processo de entrada no Leprosário São Francisco de Assis, os indivíduos foram classificados a partir de elementos mais específicos, como a condição social, as atividades realizadas, o tipo de habitação em que residiam, a instrução e a religião professada. Essa forma de registrar a vida pessoal do interno possibilitou conhecer os leprosos presentes no estado e traçar características referentes à situação profissional e social dos doentes recolhidos no estabelecimento. Neste trabalho, os dados analisados contemplaram somente os doentes ingressos até agosto de 1936, devido ao grande volume de informações, como foi retratado no início deste capítulo.

Um dos elementos que caracterizou os internos ingressantes nesse período foi o estado econômico dos leprosos. Eles foram classificados entre pobre, abastado, mediano e detentor de pequenos recursos. De forma geral, os internos do Leprosário São Francisco de Assis eram provenientes de condição social pobre e detentora de pequenos recursos. Entre esses pacientes estava a interna Joana Francisca de Souza. Isolada em vinte e nove de agosto de 1931, com sessenta anos, solteira, de cor preta e residente no município de Macaíba, realizava atividades domésticas como lavadeira, cozinheira e engomadeira. Foi internada com manchas na parte superior da face e zonas de anestesia nas mãos e nos pés. Seus sintomas datam de 1924, permaneceu no isolamento até o ano de 1939, momento do seu falecimento, devido a uma hemorragia176. Também posso citar o leproso Pedro Antônio Ferreira, residente em Ponta Negra. Foi internado no isolamento em vinte e três de novembro de 1931, aos quarenta e três anos de idade, com dores reumáticas e zonas de anestesia nos punhos e nas pernas. De condição social

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pobre, exercia a profissão de pescador e lavrador onde residia. Acometido por doenças como reumatismo, varíola e sífilis177.

Entre os internos, dois pacientes se destacaram devido ao seu estado econômico, Virginia Wanderley Dantas, com estado econômico mediano, e o paciente José Rocha Gurgel com estado econômico abastado. Esses indivíduos eram a exceção no Leprosário São Francisco de Assis. Assim, posso concluir que o isolamento potiguar era destinado a receber os doentes carentes do Estado. A ausência de internos abastados e medianos nessa instituição indica que o isolamento domiciliar foi presente entre as famílias abastadas do Estado.

A interna Virginia Wanderley Dantas, moradora da cidade do Natal, de estado econômico mediano, foi internada em quinze de outubro de 1931, aos quarenta e nove anos de idade. Filha de Luiz Carlos Wanderlley e Maria Carolina Wanderlley, tinha quatro irmãos, Luiz Carlos Wanderlley, João Ezequiel e Manoel Segundo Wanderlley, Benjamin Cicinato e Virgilio. O seu mal foi contraído através do contato com o seu irmão Luiz Carlos Wanderlley. Casada com Virgilio Ribeiro Dantas, os sintomas iniciaram no segundo semestre do ano de 1931, com obstrução nasal e manchas eritematosas na face. Foi internada logo após o surgimento dos primeiros sintomas, indicando que a família não optou pelo isolamento domiciliar e que foi internada em bom estado de saúde. Não foi possível determinar o período em que esteve isolada no leprosário178.

José Rocha Gurgel, internado em dezembro de 1935, aos dezessete anos de idade, apresentava situação econômica abastada. Era proveniente da cidade de Mossoró, estudante do seminário de Natal entre os de 1931 até 1935. Filho do comerciante Sebastião Fernandes Gurgel e Elisa Rocha Gurgel, relatou que não teve contato íntimo com nenhum leproso, apenas contato com os colegas do seminário de Natal. No entanto, na sua família constavam casos de lepra, o seu tio morfético e a sua esposa, ambos falecidos com lepra sem data conhecida179. O início da sua doença ocorreu em 1932, com sintomas de obstrução nasal e corisa. Ao consultar um médico especialista, surgiu a suspeita de possuir o mal de Hansen, logo depois surgiram manchas e infiltrações nas pernas. Nesse período realizou vários exames bacteriológicos, todos apresentaram resultados negativos para o bacilo da lepra. Após dois anos com suspeita do mal, foi internado no Leprosário São Francisco de Assis, permanecendo nessa instituição por um ano. Devido ao

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desaparecimento dos seus sintomas, recebeu alta do isolamento. Após a sua saída não temos dados do seu destino, se retornou ao seminário de Natal ou se foi residir com os seus pais na cidade de Mossoró.

Entre os internos do leprosário existiam os classificados como detentores de pequenos recursos. Geralmente, esses internos se dividiam em pequenos agricultores e pequenos comerciantes. É importante destacar que todos esses pequenos comerciantes eram classificados como brancos e todos eram homens; apenas um mestiço foi classificado como detentor de pequenos recursos, Francisco Correia de Lira. Foi internado em trinta de outubro de 1934, com quarenta e três anos de idade. Morador da cidade de Gaiuba, na Paraíba, seus sintomas iniciaram com uma ferida no dedo do pé e infiltração nas orelhas. A sua história no leprosário foi marcada por entradas e saídas, após sua transferência para o isolamento na Paraíba retornou ao leprosário em vinte e quatro de abril de 1942. Permaneceu na instituição por mais três anos, quando se evadiu do isolamento180.

Entre os internos que se denominaram pequenos agricultores estavam Olegário Rodrigues Campos, Antonio Fernandes de Melo e Bento Antônio Oliveira. Dentre eles, destaco a história do leproso Bento Antonio Oliveira,viúvo, internado no Leprosário São Francisco de Assis em sete de janeiro de 1936, com sessenta e seis anos de idade.Exerceu a profissão de pequeno comerciante até o ano de 1926, quando se tornou pequeno agricultor e criador na fazenda São Lazaro, na cidade de Caraúbas. Seu mal iniciou em 1929, a partir do contato com a esposa leprosa Delmira Oliveira, por mais de dez anos, seus principais sintomas foram mancha erimatosa e dormência nas mãos e braços. Faleceu de lepra após seis meses do seu ingresso no isolamento, em julho de 1936181. A partir dos dados retratados na ficha do interno, constatamos que Bento Antônio Oliveira era comerciante na cidade de Mossoró e, com o surgimento dos primeiros sintomas da doença na esposa, mudou-se com toda a família para a sua fazenda, abandonando seu comércio e se transformando em pequeno agricultor. A partir da trajetória desse interno, posso inferir que o isolamento, bem como a presença dos sintomas no corpo, não era bem aceito pela população de uma forma geral.Os contaminados pelo bacilo de Hansen procuravam sair da convivência com muitas pessoas e se abrigavam em lugares mais distantes, evitando a denúncia e o isolamento compulsório. Esse elemento corrobora a ideia de que muitos doentes de

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lepra se internavam de forma involuntária e compulsória. Bento Antônio Oliveira procurou o isolamento somente após aproximadamente dez anos do surgimento dos sintomas e após o falecimento da sua esposa, que também era leprosa.

Já os doentes enquadrados como estado econômico pobre correspondem a maior parcela dos internos do isolamento potiguar. Apresentavam características semelhantes em relação às profissões, à falta de instrução e ao tipo de habitação em que residiam. Os internos não possuíam instrução mínima, sobretudo aqueles classificados com situação econômica pobre. Já os internos que declaravam ter alguma instrução pertenciam ao grupo dos doentes detentores de poucos recursos ou abastado. Apenas dois leprosos identificados como estado econômico pobre tinham instrução, João Ferreira Nunes e Antônio Osório. O primeiro interno, João Ferreira Nunes, de cor mestiça, casado, foi isolado aos trinta e três anos de idade, em dez de abril de 1935. Seu primeiro sintoma foi um tumor no nariz. Residia na cidade de Ceará-Mirim com a sua esposa, Maria Matias, de trinta e três, anos exerceu a profissão de carregador de água e logo depois operário de padaria. Após três anos com o tumor no nariz e fazendo uso do óleo de chaulmoogra, foi internado no Leprosário São Francisco de Assis, permanecendo nesta instituição até o seu falecimento, nos anos 1940 182.

Além desse interno, destaca-se o leproso Antônio Osório183, internado em dez de fevereiro de 1935, aos vinte e três anos de idade. Pequeno comerciante na cidade de Natal, branco, solteiro, foi internado inicialmente no leprosário de Recife por dois anos e depois transferido para o Leprosário São Francisco de Assis, em 1935. Conviveu com o irmão leproso e seus sintomas iniciais foram edemas nos pés e nas mãos. Apesar dos seus sintomas, seu teste bacteriológico não comprovou a presença do bacilo de Hansen no seu organismo. Após quatro anos no leprosário, fugiu em 1939.

Diferenciações entre o caso de José Rocha Gurgel e Antônio Osório são perceptíveis. Ambos possuíam sinais de lepra, segundo a visão dos médicos, mas apresentavam exame bacteriológico negativo para o bacilo de Hansen. No entanto, José Gurgel, abastado de família importante na cidade de Mossoró, obteve alta devido ao desaparecimento de alguns sintomas, já Francisco Osório, pertencente a uma família simples da cidade de Ceará-Mirim, foi obrigado a permanecer no isolamento por vários anos. A partir dessas informações, posso inferir que a

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situação social dos indivíduos leprosos interferia na permanência ou não no Leprosário São Francisco de Assis.

A situação econômica dos internos era um fator importante no processo de admissão, pois influenciava a distribuição deles no interior da instituição, como demonstrou o médico Varella Santiago em entrevista concedida ao Jornal do Brasil em três de julho de 1929. Segundo ele, os leprosos não podiam ocupar qualquer área da instituição, mas se organizar de acordo com as condições sociais, por sexo e pelos laços matrimoniais.

[...] sendo os isolados pessoas de várias categorias, da alta e da baixa sociedade, em vez de uma vida em comum, que seria desigual e humilhante para os de educação e tratamento, occupam estes habitações correspondentes ao seu estado social. Para as camadas inferiores, como para as altas, há não só a devida separação de sexos, categoria, como o alojamento em commum de doentes com pessoas da família ou ligadas por matrimônio184.

Como enunciado no acima, os leprosos ocupavam diferentes cômodos, conforme a posição social que ocupavam na sociedade. Para o médico, a convivência íntima sem respeitar as diferenciações de classe representava humilhação. Assim, posso inferir que os internos mais abastados ocupavam áreas diferentes dos demais internos do leprosário, classificados como pobre e com pequenos recursos.

Os internos isolados no Leprosário São Francisco de Assis desempenhavam atividades ligadas a trabalhos manuais. Entre essas atividades, destacaram-se os serviços domésticos: empregada doméstica, lavadeira, cozinheira, costureira, exclusivamente desenvolvidas pelas internas, e atividades de lavrador, pescador, pintor, comerciante ambulante, realizadas pelos homens. De forma geral, a ocupação mais comum entre os internos era o trabalho na agricultura, como lavradores. Seguindo as recomendações da Diretriz Nacional de Combate à Lepra, os leprosários e colônias deveriam possuir no seu interior atividades manuais que proporcionassem ao interno trabalhar, ser útil para o isolamento. Dessa forma, no isolamento potiguar o trabalho agrícola foi implantado pelo seu diretor, o médico Manoel Varella Santiago, como retratou em entrevista ao Jornal do Brasil: “Há uma área para os trabalhos agrícolas onde os que foram homens do campo cultivam como se estivessem nas fazendas, revertendo-se o producto do seu trabalho em beneficio do Leprosário”185. Assim, parte dos internos, continuou realizando as atividades profissionais que exerciam antes do recolhimento na instituição. É

184 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 03 de julho de 1929. 185 JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 03 de julho de 1929.

importante destacar que a atuação profissional desses internos dependia da gravidade da doença, apenas os doentes que apresentavam bom estado de saúde realizavam os trabalhos manuais na colônia.

Apesar de a profissão de lavrador ter sido a mais presente entre os isolados, outras profissões também foram visualizadas. O paciente José Vasconcelos Chaves, internado em quatro de novembro de 1932, se identificou como funcionário público. Permaneceu no leprosário por quatro anos, até cinco de agosto de 1936. A sua doença foi contraída a partir do contato com o irmão leproso não identificado no momento da internação186. A partir da organização proposta pelo diretor Varella Santiago, posso inferir que, José Vasconcelos, ao ser recolhido, dividiu a habitação com outros internos na mesma situação econômica que a sua, ocupando as casas inauguradas no ano de 1929 classificadas como tipo B. Essas casas apresentavam melhores acomodações, físicas e sanitárias, e tinham mais conforto para os doentes, como retratou a mensagem do Presidente do Estado lida na Assembleia Legislativa no ano de 1929187.

Ainda sobre o perfil social e profissional dos internos, observei que ao relacionar as profissões exercidas pelos internos e as suas classificações étnicas, não visualizei uma diferenciação entre esses dois elementos. A maioria dos pacientes que tinham pequenos recursos eram agricultores, indicando que tinham pequenos lotes de terras. Esses homens eram brancos ou pardos.

No processo de registro dos internos, os médicos também indicavam o tipo de habitação em que os leprosos residiam. De forma geral, os enfermos residiam em três tipos de casa: operário, familiar e taipa. As casas do tipo familiar eram construções feitas com tijolo e telha, já as casas de tipo operário tinham diferenciações, eram agrupadas em casas de taipa, cobertas com telhas ou casas de palha com ou sem cobertura de telhas. De forma geral, dezoito doentes isolados no leprosário depois dos anos 1930 residiam em casa do tipo familiar e dezoito doentes residiam em casas de taipa com cobertura de telhas. Apenas dois doentes residiam em casas feitas de palha, os pacientes Luísa Carolina de França188 e Pedro Antônio Ferreira189.

186 CENTRO INTERNACIONAL DE LEPROLOGIA. Ficha Clínica nº 172.

187 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada pelo Exmo. Dr. Juvenal Lamartine de Faria, Presidente do

Estado do Rio Grande do Norte, à Assembleia Legislativa, por ocasião da abertura da terceira sessão da décima terceira legislatura. Natal: Imprensa Oficial, 1929.

188 CENTRO INTERNACIONAL DE LEPROLOGIA. Ficha Clínica nº 201. 189

A preocupação com o tipo de habitação ocupada pelos internos tinha ampla relação com o estado sanitário que os doentes viviam. Existia grande preocupação com o abastecimento de água, a incidência de áreas alagadas e a presença de mosquitos sugadores. Alguns médicos defendiam que a transmissão da lepra ocorria por meio de mosquitos, assim, a partir do tipo de habitação e a área em que os leprosos residiam poderia contribuir para o contágio de outros indivíduos. As condições sanitárias dos indivíduos também influenciavam na decisão do médico de permitir o tratamento do leproso no seu domicilio ou a reclusão no isolamento.

No que diz respeito à religião, todos os internos se declararam católicos, apenas uma interna afirmou professar a religião presbiteriana. Isso demonstra a ligação que existia entre os elementos religiosos e científicos, tão presentes desde o início do processo de construção do Leprosário São Francisco de Assis e evidenciado no funcionamento da instituição. O isolamento potiguar era um espaço voltado para atender os interno de forma material e espiritual. A presença da igreja católica foi visualizada em diferentes momentos, como: na presença das irmãs de caridade, na fundação da capela no interior do leprosário, na pratica cotidiana das missas e nos eventos religiosos ocorridos dentro do isolamento.

Ao analisar os dados dos internos do Leprosário São Francisco de Assis, é importante retratar que esses doentes apresentaram muitas outras doenças antes da internação, entre as quais se destacam: impaludismo, sífilis, varíola, sarampo. Essas doenças também constituíam preocupação por parte do governo e da classe médica.