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Crianças e seus professores tão cedo compreenderam que se engajar em atividades

artísticas, fossem elas desenho ou música, poderia devolver um pouco daquilo que os nazistas

estavam a todo custo tentando arrancar de cada prisioneiro do campo: seu senso de humanidade.

Por meio da arte, eles se mantiveram vivos no sentido mais profundo do termo. Jogos e esportes

também contribuíram na preservação psicológica das crianças.

[Franta]80: [...] quando as portas se fechavam depois das 18 horas e os últimos raios

de sol se escondiam e todos os 40 meninos estavam em seus beliches, eu começava a falar com eles e lhes dizer que nada, nem muros, nem insultos, nem decretos de

Nuremberg [...] poderia separá-los de sua humanidade (GRUENBAUM, 2004, p. 169, tradução nossa).

Apesar do pesadelo vivido por todos os detentos em Terezín e de seus destinos

involuntários, Friedl organizou algumas turmas para o curso de artes visuais e ensinou centenas

de crianças. Ela foi a única artista visual que optou por ensinar em vez de usar seu talento para

prestar testemunho do campo. Friedl era reconhecida e seus métodos de ensino emergiam de

sua própria experiência com a arte.

Segundo Erna Furman, aluna de Friedl, em Terezín havia muitos especialistas famosos

de diversas áreas do conhecimento. Eles ministravam palestras e seminários em troca de pão.

Friedl era a única que ensinava sem pedir nada em troca (MAKAROVA, 1999).

[Kikina]: Muitas pessoas se concentraram em sua própria sobrevivência, mas algumas se concentraram em ajudar as crianças (GRUENBAUM, 2004, p. 73, tradução nossa).

De acordo com os relatos de Eva Stichová-Beldová e Helga Polláková-Kinsky, alunas de

Friedl em Terezín, ela era uma mulher pequena (várias crianças eram mais altas do que ela),

com cabelos muito curtos, grandes olhos cor de avelã, amigável, de voz suave, com grande

energia e determinação e era adorada pelas crianças. Raja Engländerová-Zákníková81 se lembra

de que Friedl era alegre, muito gentil e paciente. Sempre as elogiava e falava com elas como se

fossem adultos. Nunca as repreendia ou as pressionava, antes incentivava-as a expressarem-se

criativamente. Friedl não falava checo muito bem, mas estava sempre procurando deixar as

crianças calmas (RUBIN, 2000).

De acordo com Eva, Friedl trazia os materiais e alguns alunos os distribuíam. Ao final,

esses mesmos ajudantes os recolhiam e preparavam todas as coisas para a próxima turma. As

turmas eram formadas por 12 a 15 crianças. As aulas eram ministradas no alojamento para

meninas (L410). Helga Polláková-Kinsky se lembra de que havia apenas uma mesa no quarto

28, sendo assim, as garotas desenhavam em seus beliches ou solicitavam que alguém ficasse

parado e utilizavam seus joelhos como apoio. Segundo Eva, que foi ajudante de Friedl por dois

meses, antes de sua deportação para Auschwitz, Friedl ensinou também em outros prédios,

provavelmente no prédio dos doentes e nos lares das crianças menores, que ainda não viviam

nos prédios L417 ou L410 (MAKAROVA, 1999).

Suas aulas mantinham as crianças ocupadas e mentalmente distantes dos problemas

cotidianos do campo e da saudades do lar. Nos poucos momentos de criação, as crianças

retornavam à sanidade e à beleza do mundo, o que lhes permitia certo conforto espiritual. A

elas também foi permitido expressar seus medos, o que as ajudou a lidar melhor com eles.

Naquele tempo, ela estava ensinando em Terezín, seu objetivo havia se tornado um apoio para as crianças na sobrevivência psicológica da guerra. Nesse sentido, Dicker- Brandeis havia usado as aulas de arte para ajudar seus estudantes a construir a coragem, a veracidade e a imaginação que eles precisavam em face das experiências do campo. Encorajando-os a confiar em suas próprias imagens e desenvolver suas próprias formas artísticas, ela ajudou-os a encontrar recursos internos, reconhecer seu senso de realidade, criando um espaço psicológico de fortalecimento, significado e liberdade em meio à terrível opressão e aos horrores diários (WIX, 2010, p. 19, tradução nossa).

Em seu depoimento, Marta Fröhlichová82 disse: “Até hoje sou grata por tudo o que ela

me ensinou. Aprendi a olhar conscientemente à minha volta, a enxergar algo em tudo e a dar

forma às coisas. Friedl me ensinou a trabalhar com afinco e dedicação, e também me ensinou a finalizar um trabalho uma vez iniciado” (BRENNER, 2014, p. 222).

De acordo com Salamon (2004), Friedl dedicou seus dois últimos anos de vida

convencendo as crianças de que a arte poderia ajudá-las a resistir, se não sobrepujar, a

incomensurável miséria a qual todas estavam submetidas.

Segundo Makarova (1999), Friedl ensinou as crianças como desenhar, observar e

perceber as coisas e a pensar espacialmente. Seu intuito não era transformá-las em artistas, mas

despertar sua imaginação e desenvolver sua percepção do mundo.

Como as aulas foram realizadas no último piso do edifício L410, as crianças podiam

desenhar a partir da vista privilegiada da janela: o céu, as montanhas e a natureza. Os materiais

de pintura eram muito escassos, trazidos por Friedl em sua pequena bagagem, e os papéis eram

improvisados a partir de desenhos técnicos antigos, formulários do campo e pilhas de papel

usado.

Friedl contava histórias fantásticas para as crianças e depois as convidava a desenhar. Ela

também trabalhou com ditados: a partir de uma lista de objetos que era lida em voz alta, as

crianças deveriam escolher aqueles de certo tamanho e superfície e desenhá-los numa

composição. Em outra situação, a lista consistia em objetos que possuíssem relação como, por

exemplo, um martelo, um prego e uma lima. As crianças deveriam incorporar esses objetos em

seus desenhos, inventando histórias sobre eles.

Os temas dos trabalhos geralmente eram familiares às crianças e faziam parte de seu

universo. Friedl costumava solicitar que desenhassem suas vidas antes da perseguição e da

deportação, focando em todas as coisas das quais elas se lembravam. Observando os desenhos

é possível perceber flores, borboletas, animais, paisagens, casas (partes interna e externa),

retratos de família, feriados judaicos, circos, parques, carrossel etc. Ela também definia temas

como animais numa paisagem ou circunstâncias como tempestade, vento, noite.

Friedl trazia para as aulas tintas, pincéis, lápis, papéis, livros de arte e objetos que serviam

como modelo: vasos com flores, um tamanco holandês de madeira, um bule de chá, copos,

garrafas etc. Algumas vezes ela simplesmente dizia para as crianças desenharem ou pintarem

livremente aquilo que tivesse importância para elas ou apenas dizia para olharem pela janela e

representarem o que viam.

De acordo com Eva Stichová-Beldová e com a entrevista concedida por Dita Polachová-

Kraus, Friedl designava um tema e depois convidava as crianças a desenharem sem nenhuma

interrompia para mostrar ou explicar algo, depois o trabalho era retomado. Segundo Helga

Polláková-Kinsky, Friedl diversificava a técnica a cada aula: primeiro colagem, depois

aquarela, em seguida desenho a lápis.

[Helga Polláková-Kinsky]: Eu ainda posso ver a mesa no meio do quarto, com lápis sobre ela, pincéis, tintas e papel. O papel era de baixa qualidade, muitas vezes resíduos de papel ou sobras de algum velho pacote. Cada criança podia desenhar livremente de acordo com sua imaginação e desejos. Isso era extraordinário. Isso nos deu uma vida diferente, outra atmosfera.

Às vezes ela trazia vários papéis e eu fazia colagens. Nós frequentemente pintávamos com aquarelas ou simplesmente fazíamos esboços. Ela trazia regularmente livros de arte e também cartões postais com trabalhos de arte e nos pedia para copiar pinturas famosas, através de colagem ou aquarela. Ou ela trazia flores ou qualquer outro item – alguns potes ou alguns sapatos de madeira. Uma vez ela nos disse para pintarmos uns aos outros ou pintarmos alguma coisa que era especialmente importante para nós. Ela muitas vezes nos dava temas específicos, temas designados para desenharmos. Mas também pedia que usássemos nossa imaginação com liberdade, solicitando que simplesmente desenhássemos o lugar onde desejávamos estar naquele momento. Ou pintar o que desejávamos. Então, é claro, cada criança pintava alguma coisa diferente (THOMSON, 2011, p. 41, tradução nossa).

Friedl também ajudou as crianças a trabalharem em meio à escassez. Ela organizava

grupos de trabalho e dividia as tarefas: uma criança era responsável pelos materiais, outra

manteria um diário de pinturas, outras ajudariam a pintar ou a fazer esboços. A cada aula as

atribuições de tarefas eram diferentes, fazendo com que todas as crianças pudessem participar

ativamente das aulas. Segundo Makarova (1999), esses trabalhos coletivos eram parte da

tradição da Bauhaus incorporada por Friedl. Como na Bauhaus, depois que os trabalhos eram

finalizados, Friedl convocava seus alunos a discutirem os resultados. Isso era uma parte

importante de sua abordagem pedagógica, pois ensinava tolerância às crianças. De acordo com

Rubin (2000), discutir os trabalhos ajudava as crianças a manterem-se calmas e devolvia-lhes

a esperança.

É melhor trabalhar em grandes grupos: as crianças inspiram umas às outras, um ambiente mais estável é criado [...]. As crianças conseguem utilizar as ideias umas das

outras. Apenas o fato de o professor não estar sobrecarregando as crianças com sua atenção faz com que elas confiem mais em si mesmas e umas nas outras. [...] Nesta situação, elas estão sempre preparadas para superar as dificuldades que surgirem com a escassez de materiais, para ajudar uns aos outros e manter a ordem entre elas mesmas (MAKAROVA, 1999, p. 207, tradução nossa)83.

De acordo com Brenner (2014), em 24 de agosto de 1943 chegou a Terezín um grupo de

1.260 crianças provenientes do gueto da cidade polonesa de Bialystok84. Elas estavam

traumatizadas, enfermas e desnutridas. Durante o verão, os SS haviam exterminado

sistematicamente quase todos os adultos do gueto. Após chorar, Friedl pediu que as crianças

lavassem as mãos e trouxe tintas e papéis. Imediatamente, as crianças ficaram fascinadas. Friedl

também ensinou na ala de isolamento do alojamento Hamburgo, sem medo de ser infectada.

Em julho de 1943, depois de sete ou oito meses ministrando aulas no campo de Terezín,

Friedl organizou uma exposição com os desenhos das crianças no porão do prédio L417. Sobre

a exposição, Egon Redlich, diretor do Departamento do Bem-Estar da Juventude do campo, escreveu: “Os problemas de Terezín haviam encontrado expressão nos desenhos das crianças” (MAKAROVA, 1999, p. 32, tradução nossa)

[Raja Engländerová-Zákníková]: Nós estávamos quase mortos de fome, doentes, e desenhávamos mesmo nestas condições... (Ela nos dizia), “não pense em nada – apenas desenhe. Você está feliz agora”. E naquele momento nós nos sentíamos verdadeiramente felizes (Ibid., p. 215, tradução nossa).

Os desenhos, pinturas, colagens e bordados produzidos pelas crianças foram guardados

por Friedl em duas malas. Raja Engländerová-Zákníková encontrou-as no sótão do prédio L410.

Ela as entregou para Willy Groag, responsável pelo alojamento. No final de agosto de 1945 os

trabalhos foram transportados por ele para o Centro Comunitário Judeu de Praga e encontram-

83 Trecho retirado da palestra ministrada por Friedl Dicker-Brandeis, em julho de 1943, no porão do prédio L417,

i tituladaà Sobre arte infantil . O manuscrito da palestra sobreviveu à guerra.

84Oàa tistaàLeoàHaasà ealizouàu aào aài tituladaà Oà o oioàdasà ia çasàdeàBial stok .àáào aàe o t a-se no

se atualmente no Museu Judeu de Praga e no Museu de Terezín, instituído dentro do antigo

campo.